A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), com espanto e indignação, tomou conhecimento do documento oficial “Expansão do programa Auxílio Brasil: uma reflexão preliminar”, assinada única e exclusivamente pelo presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Erik Alencar de Figueiredo.
Na nota questiona-se a alta prevalência da insegurança alimentar no Brasil, com base nos dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) sobre indicadores de saúde. Oferecendo uma análise distorcida da realidade, aponta-se que, apesar de organizações alertarem para o aumento da fome no Brasil, as informações do SIH não registram o avanço da desnutrição, ignorando a complexidade e a determinação social da insegurança alimentar e nutricional. Negar a atual extensão da insegurança alimentar brasileira (principalmente a do tipo grave, referente à fome), além de ignorar uma situação vista diariamente nas ruas, é negar a ciência e tentar criar uma vida imaginária que milhões de brasileiras e brasileiros, infelizmente, não vivenciam atualmente.
Com metodologia e análise robustas em dois relatórios recentes (2020 e 2022), a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) vem apontando um aumento constante da insegurança alimentar no País. A equipe de pesquisadoras da Rede PENSSAN seguiu todo o rigor metodológico para definição da amostra, coleta e análise de dados, que permitem a comparação dos resultados dos seus dois inquéritos com as pesquisas do IBGE (veja nota da Rede PENSSAN). Assim, os últimos dados mostram que, em 2022, 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil. No total, 125 milhões de brasileiros enfrentam algum grau de insegurança alimentar, isto é, precisaram reduzir a quantidade de comida e/ou alterar a qualidade do que comem.
Mensurar e investigar a insegurança alimentar e nutricional são tarefas que requerem uso criterioso de dados e rigor científico em sua interpretação. Neste sentido, as informações do SIH são insuficientes: a Atenção Hospitalar é apenas um dos componentes da oferta de serviços aos casos de desnutrição, para os casos mais graves que, geralmente, se expressam pela associação com outras doenças. É na Atenção Primária à Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) que, de fato, chega a maior parte da demanda para o cuidado em saúde associado à insegurança alimentar e nutricional e à desnutrição. Ademais, os impactos da fome na saúde humana, principalmente na condição clínica e no estado nutricional, são identificados em médio e longo prazos, em especial com expressão nos padrões de crescimento e desenvolvimento infantil. Por isso, o número de internações relacionadas à desnutrição não é um indicador adequado para medir a insegurança alimentar e nutricional. Por fim, é comum que pessoas sejam internadas não diretamente por desnutrição, mas por doenças decorrentes ou a ela associadas, o que torna ainda mais difícil a associação direta com a insegurança alimentar.
Para entender a dimensão do desafio enfrentado pelo Brasil, dispomos de ferramentas de vigilância em saúde que permitem compreender os fenômenos da insegurança alimentar e da desnutrição de forma integrada e responsável. Inquéritos populacionais, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), ambas conduzidas pelo IBGE, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (VigiSAN/Rede PENSSAN) e o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (ENANI-2019, encomendado pelo Ministério da Saúde e conduzido por um consórcio de universidades sob coordenação da UFRJ) são essenciais para esclarecer a situação brasileira.
Com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), do Ministério da Saúde, que registra dados sobre o estado nutricional e o consumo alimentar de usuários da Atenção Primária do SUS, por exemplo, é possível ter acesso a uma realidade não contemplada pela nota do Ipea e que revela uma das diversas consequências da insegurança alimentar: em 2018, 6,3% das crianças de 2 a 5 anos, beneficiárias do Programa Bolsa Família, registravam quadros de magreza ou magreza acentuada, número que subiu para 8,47% em 2021. Levando-se em conta as crianças de 0 a 5 anos, a tendência foi a mesma: também no comparativo entre 2018 e 2021, o salto foi de 6,24% para 8,63%. No SISVAN, cujos dados são públicos, também é possível identificar que o número de pessoas que realizam no mínimo três refeições diárias caiu, sendo, para mulheres gestantes em 2017, 67,4% e em 2021, 35,7%; para crianças entre 2 e 4 anos em 2017, 49,3% e, em 2021, 28% e, para crianças entre 5 e 9 anos, 42,4% em 2017 e 28,9% em 2021.
Este conjunto de fontes de informações tem possibilitado, nas últimas décadas, a construção de séries históricas, permitindo o acompanhamento do estado de saúde e nutrição das populações, bem como o estabelecimento de estudos avaliativos de qualidade no Brasil.
Igualmente é importante lembrar que a insegurança alimentar e nutricional não se expressa apenas mediante marcadores clínicos. Há diversos riscos, ameaças e violações na perspectiva da alimentação como um direito de cidadania, conforme garantido na Constituição Federal, que dialogam diretamente com as políticas públicas. Entre eles: a inflação dos alimentos, dificultando o acesso a alimentos básicos, o maior acesso a produtos alimentícios ultraprocessados, que são mais baratos, o risco de contaminação dos alimentos (agrotóxicos, aditivos, antibióticos etc.), as tensões no contexto das políticas de abastecimento e os conflitos de interesse das corporações que controlam o sistema agroalimentar hegemônico e afrontam a soberania alimentar e, por conseguinte, a autonomia dos povos para a preservação dos valores simbólicos, da diversidade e da identidade cultural alimentar, com equidade e respeito.
Atualmente, o País que, em 2014, comemorou a saída do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas, volta a conviver com uma prevalência preocupante e inaceitável de insegurança alimentar — o prognóstico tampouco é animador. A fome leva à desnutrição, ainda que em médio e longo prazos, — e esta tem efeitos deletérios, especialmente quando atinge as crianças, que passam a ter deficiências graves em seu desenvolvimento, com consequências até mesmo na cognição. São impactos nocivos à saúde humana e à sociedade em seu conjunto: enquanto a insegurança alimentar for alta, teremos o prejuízo de toda uma geração de brasileiros. Relativizar a relevância desse quadro, em um País exportador de alimentos e pleno de riquezas, é ignorar as consequências perversas das significativas desigualdades vivenciadas por milhões de brasileiras e brasileiros. É tempo de olhar para os dados da insegurança alimentar, não para os distorcer, mas para gerar evidências para o estabelecimento de políticas públicas que devolvam a dignidade ao Brasil.
Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2022
Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva