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Nota do GT Gênero e Saúde sobre os recentes ataques às evidências científicas acerca das estimativas do aborto provocado no Brasil

Vilma Reis com informações de GT Gênero e Saúde

Dados sobre a magnitude do aborto no Brasil viraram uma querela nos últimos dias. A audiência pública realizada no STF nos dias 03 e 06 de agosto trouxe para a cena um debate sobre os números de aborto provocado no país. Todavia, algumas notas/ notícias veiculadas nestes últimos dias tentam claramente desqualificar as mais recentes estimativas apresentadas pelos especialistas na ocasião, inserindo elementos falsos e especulativos neste debate.

Introdução

Dados científicos apresentados por palestrantes de diversos campos do conhecimento na Audiência Pública sobre a ADPF 442 no STF foram objeto de questionamento por diferentes atores. Parece ter se instaurado uma “guerra dos números” – que pode ser assim qualificada por alguns mais apressados – ou um “ataque” às melhores evidências científicas produzidas e aos esforços envidados para construir o panorama sobre o aborto provocado no Brasil. Neste cenário, a presente nota visa resgatar o caráter científico do debate, com base nos dados publicados em periódicos científicos no Brasil e no Mundo.

Vale ressaltar dois pontos centrais para o debate:

1- A criminalização do aborto causa subnotificação e viés nos dados oficiais.

Há um desafio metodológico para a mensuração da ocorrência e das circunstâncias do aborto clandestino no Brasil. Não existe notificação dos abortos provocados e, portanto, todas as estatísticas são estimativas. Além disso, por se tratar de prática criminalizada e passível de estigma nos serviços de saúde, não há incentivo para que as mulheres que passaram pelo procedimento, ou seus familiares, o declarem abertamente no momento do atendimento nas unidades de saúde. Muitas vezes, os próprios profissionais evitam identificar o procedimento nos prontuários para não expor as mulheres às consequências da criminalização. Este é um dos motivos que nos permite afirmar inequivocamente que há subnotificação nos dados sobre aborto registrados nos diversos sistemas de informação do DATASUS.

No contexto de criminalização, os dados sobre aborto serão passíveis de imprecisão independentemente da sua fonte ou técnica de produção.

Mesmo dados sobre óbitos decorrentes do aborto, considerando ser a morte evento único e o sistema de registro no país o de maior cobertura e qualidade, são sujeitos à subnotificação. Os médicos que preenchem a Declaração de Óbito, ao não registrarem o aborto corretamente no documento, impedem sua identificação como causa básica ou contribuinte para a morte. Isto tem sido fartamente identificado no trabalho de investigação da Vigilância do Óbito Materno e analisado por Comitês de Mortalidade Materna.

Também os dados sobre internação hospitalar na rede pública de saúde (própria e conveniada ao Sistema Único de Saúde), a partir dos quais algumas estimativas da ocorrência do aborto se baseiam, são relativos apenas a uma parte dos eventos, os mais graves, aqueles que complicam e obrigam as mulheres à hospitalização. Ficam de fora os casos de abortos completos que não complicam e, portanto, não chegam aos hospitais, além de uma parcela (desconhecida) que é realizada no setor privado.

Mesmo em países onde sua prática é legal, face à natureza sensível do tema, parte das mulheres omite sua realização, ou negando a ocorrência da gravidez ou informando seu desfecho como aborto espontâneo.

Portanto, é necessário utilizar metodologias que permitam estimar a dimensão da ocorrência do aborto no Brasil a partir de fatores de correção aplicados a alguns dos dados oficiais, como, por exemplo, os de internação hospitalar na rede pública; ou em coletas de dados obtidas diretamente junto às mulheres brasileiras, utilizando técnicas como a de urna, que buscam garantir o sigilo e a confidencialidade da resposta ante a entrevistadores/as e assim maior acurácia.

Essa será a realidade enquanto a prática for criminalizada no país: pesquisadores e gestores terão que utilizar metodologias de pesquisa, já validadas em investigações prévias, para estimar o número de procedimentos clandestinos, que certamente é maior do que o registrado nos dados oficiais.

2- Entretanto, tais dificuldades nem invalidam os dados existentes, nem devem ser razão para não os produzir. É imperativo estimar os impactos do aborto clandestino com as ferramentas metodológicas disponíveis.

Tendo em vista as limitações dos dados primários discutidas acima, a comunidade científica tem feito esforços importantes para estimar o impacto do aborto no Brasil, com metodologias ratificadas pela literatura científica internacional e as boas práticas da epidemiologia.

É saudável que novas pesquisas sejam realizadas, por outras equipes independentes, não apenas para verificar a estabilidade dos resultados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) 2016 e dirimir dúvidas como, também, para monitorar anualmente o comportamento do aborto induzido no Brasil, posto que este é um problema de saúde pública relevante.

O próprio Ministério da Saúde tem feito esforços significativos para melhorar a coleta de dados nas unidades de saúde, incentivar a investigação das mortes de mulheres em idade fértil para identificação de mortes maternas não registradas e, desse modo, corrigir as informações oficiais e validar os dados em suas bases de dados. Estes esforços se dão em intercâmbio contínuo com a comunidade científica e através de pesquisas financiadas ou incentivadas pelo Ministério da Saúde.

A persistência das altas taxas de mortalidade das mulheres em idade fértil e da mortalidade materna no Brasil, incompatíveis com a nossa renda per capita e demais indicadores sociais, e a criminalização das mulheres em todo o país, são sinais de alerta importantes e conclamam a comunidade científica a buscar caracterizar o ônus dos abortos inseguros para a saúde das mulheres brasileiras. Só assim as políticas públicas podem ser planejadas com base em evidências e de forma adequada. Mas é imprescindível fazê-lo com o arcabouço científico adequado, com transparência metodológica e submetendo os dados a publicações científicas onde passam pelo crivo científico dos pares.

A querela dos números na mídia

Há diversas incorreções e pressuposições falsas em textos que vem sendo circulados nos últimos dias em diversos espaços, inclusive na mídia. Recuperamos abaixo alguns números e questões metodológicas importantes na produção das estimativas apresentadas na audiência pública, a partir da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) 2016 e outros estudos:

• A estimativa da PNA 2016 é de que, em 2015, entre as mulheres alfabetizadas do Brasil, cerca de 420 mil realizaram aborto; 67% das mulheres que abortaram em 2015 foram internadas por algum tipo de complicação do aborto, o que representaria cerca de 279 mil internações por aborto. Extrapolando para todo o Brasil, isto é, incluindo mulheres da zona rural e analfabetas, o número de abortos seria de 503 mil e o número de internações de 337 mil se, e somente se, as mulheres rurais e analfabetas tivessem o mesmo acesso ao sistema de saúde que as demais mulheres. Entretanto, mulheres com 40 anos ou mais e aquelas com menos de 19 anos não foram incluídas no estudo de 2016, o que pode ter subestimado as estimativas de aborto no país. Dados sobre gravidez e aborto na adolescência mostram que estes eventos são frequentes entre elas.

• A construção de argumentos com base em afirmações de que profissionais de saúde, sobretudo os médicos, a partir de suas experiências práticas, poderiam afirmar que a magnitude de abortos provocados não passa de 25% das internações por aborto, é absurda e sem qualquer base científica. Médicos, a partir dos casos que atendem, não são capazes de estimar dados populacionais. Essa estimativa de proporção não pode ser considerada. Só seria possível fazer essa estimativa a partir de uma investigação com amostra representativa de mulheres (tal como a Pesquisa Nacional de Aborto), que verifique os números de aborto induzido e espontâneo, o que infelizmente, até o presente momento, não foi realizada.

• Até o momento a PNA 2016 fornece a melhor estimativa existente sobre a magnitude do aborto no Brasil. Seus dados foram coletados por uma equipe independente do IBOPE e auditados dentro das normas ISO de qualidade; a técnica de coleta usada, a Técnica de Urna, está entre as melhores técnicas disponíveis para a coleta de informação sigilosa.

• A PNA 2016 explicita claramente os limites da técnica de coleta usada pelo IBGE para registrar aborto induzido. Esta última é realizada por meio de entrevistas feitas por equipe formada de homens e mulheres, com respostas sobre aborto dadas de forma direta a estes/as. Pesquisas realizadas com entrevistas face a face tendem a produzir dados menos acurados do que aquelas que utilizam técnicas que propiciam o sigilo da informação no momento da resposta a entrevistadores/as. Do mesmo modo, o sexo do/a entrevistador/a pode influenciar a declaração do tipo do aborto. É razoável aceitar que isso produz uma subestimação severa da indução de abortos no país. A PNA 2016 buscou incorporar procedimentos (método de urna e composição da equipe exclusivamente por mulheres), de modo a favorecer o relato das entrevistadas.

• Há distinções metodológicas e de objetivo importantes entre a PNA e as estimativas apresentadas pelo Ministério da Saúde em Nota Técnica divulgada em torno da Audiência Pública no STF. É importante assinalar que comparações diretas entre tais estimativas são indevidas: cai-se numa falácia ao se comparar dados de internação anual a partir das bases de dados do Ministério da Saúde com os dados de prevalência identificados pela PNA. Os números apresentados são próximos (vão numa mesma direção), pois ambos buscam retratar as consequências do cenário comum subjacente, a saber, o da ilegalidade da prática do aborto no país, mas jamais poderiam ser totalmente equivalentes, por sua natureza metodológica diversa.

• O Ministério destacou as metodologias utilizadas para as estimativas na nota técnica submetida ao STF, utilizando fatores de correção propostos na literatura científica internacional. Na Nota Técnica, o Ministério descreve “No esforço de estimar, o Ministério da Saúde também corrigiu o número de mulheres hospitalizadas por aborto induzido, considerando a população usuária do SUS e da Saúde Suplementar. Assim, foram estimadas 285.000 e 278.000 hospitalizações/ano, de mulheres brasileiras, por complicações causadas pela interrupção da gestação, para os anos de 2008 e 2017, respectivamente”.

• É possível questionar ou debater as estimativas propostas pelo Ministério da Saúde, ou os dados da PNA, mas apenas dentro dos limites do debate científico, considerando as escolhas metodológicas apontadas na nota técnica e na publicação da pesquisa respectivamente.

Conclusão:

Com base nas dezenas de pesquisas científicas de qualidade realizadas e publicadas no país, não é possível negligenciar a magnitude do aborto inseguro no Brasil, embora seja um desafio propor um número preciso para a sua frequência.

As estimativas citadas acima (e outras que utilizam metodologia científica clara e validada) apontam que há centenas de milhares de abortos provocados clandestinamente no Brasil. Uma magnitude que não pode ser ignorada e exige uma resposta na forma de políticas públicas adequadas. Ainda que os números fossem mais baixos do que a PNA 2016 aponta – e não há evidências científicas de que sejam – abortos inseguros implicam complicações à saúde, internações hospitalares, sequelas pouco conhecidas e mesmo morte, além dos elevados custos ao sistema de saúde, todos em condições plenamente evitáveis, com sofrimento de mulheres e famílias envolvidas.

Usar estimativas com base em especulação e silogismos, sem qualquer fundamentação teórica ou científica, não representa uma contribuição legítima aos esforços para a discussão da magnitude do aborto ao Brasil. Um debate qualificado é necessário sobre os números do aborto pelo seu imenso ônus para a saúde e sobrevida das mulheres. No entanto, a querela em torno dos números, instaurada desde a audiência no STF, busca desacreditar a ciência quando ela é mais necessária.

Estranhamente, tanto a confusão sobre os números quanto as barreiras para ações efetivas em saúde reprodutiva têm sido sistematicamente promovidas por organizações religiosas ou seus representantes em diferentes espaços, no nível federal, estadual e municipal (vide Contracepção, sobretudo de emergência, e serviços de aborto legal).

Ressalte-se ainda, que toda a produção científica brasileira no campo da saúde coletiva, ao buscar caracterizar o aborto como problema de saúde pública, elenca uma série de medidas que deveriam compor as políticas públicas para redução do aborto: educação sexual, garantia de acesso à contracepção, inclusive de emergência, melhoria da atenção ao aborto, e ampliação dos serviços de aborto legal.

Por fim, a Abrasco reitera seu apoio à ADPF 442 e à descriminalização do aborto no país, como registrado no Amicus Curiae submetido ao STF em 2017 e na Moção aprovada no 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva.

 

Referências:

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Martins EF, Almeida PF, Paixão CO, Bicalho PG, Errico LS. Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais, Brasil, 2000-2011. Cad Saude Publica. 2017;33(1):e00133115.

Menezes M, Aquino EML. Pesquisa sobre o aborto no Brasil: avanços e desafios para o campo da saúde coletiva. Cad Saúde Pública. 2009; 25 Sup 2:S193-S204.

Monteiro MFG, Adesse L, Drezett J. Atualização das estimativas da magnitude do aborto induzido, taxas por mil mulheres e razões por 100 nascimentos vivos do aborto induzido por faixa etária e grandes regiões. Brasil, 1995 a 2013. Reprod Clim. 2015;30(1):11–18.

OMS. Organização Mundial da Saúde. Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde – 2a ed., 2013. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/70914/7/9789248548437_por.pdf. Acesso em janeiro de 2018.

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Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Ciência e Tecnologia. – Brasília: Ministério da Saúde, 2009

Sedgh G, Bearak J, Singh S, et al. Abortion incidence between 1990 and 2014: global, regional, and subregional levels and trends. Lancet. 2016;388(10041):258-67.

Singh S Trends in hospitalization for abortion-related complications in Brazil, 1992-2009: why the decline in numbers and severity? Int J Gynaecol Obstet. 2012;118 Suppl 2: S99-106.

World Health Organization. Department of Reproductive Health and Research. Studying unsafe abortion: a practical guide. Available from: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/63596/1/WHO_RHT_MSM_96.25.pdf

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