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NOTA 'Estudos científicos e conflitos de interesse: por uma ciência a favor da vida'

Recentemente, alguns veículos de imprensa têm buscado focar o debate público sobre a questão do controle do Aedes aegypti, do Zika vírus e da microcefalia no ataque ao que seriam posições “oportunistas” não baseadas em evidências ou certezas científicas, contrárias ao progresso científico e ao uso de inseticidas no controle dos mosquitos. Esse debate ofusca questões de fundo apontadas anteriormente pela Abrasco como o saneamento básico, as desigualdades sociais e a reforma urbana. Para avançarmos na compreensão de qual modelo de ciência é importante para a defesa da saúde da população e do meio ambiente é necessário esclarecer alguns pontos cruciais sob a ótica da Saúde Coletiva.

Antes da liberação para uso, os inseticidas, larvicidas ou agrotóxicos em geral passam por alguns testes laboratoriais em animais visando cumprir exigências legais estabelecidas pelas agências regulatórias para o registro de uso. A partir dos resultados desses testes realizados pelos fabricantes, é definido um valor de quanto um produto químico pode contaminar um alimento ou a água para consumo humano. Depois da liberação, as incertezas sobre eventuais danos à saúde serão esclarecidas somente após anos ou décadas de estudos clínicos e epidemiológicos sobre situações reais de exposição em seres humanos. Até lá, o preço das incertezas, da falta de evidências e da ignorância científica pode ser pago com o adoecimento, o sofrimento e a morte de seres humanos.

Porém, estudos científicos nacionais e internacionais, em geral realizados por pesquisadores não vinculados às empresas, têm mostrado que substâncias utilizadas com frequência para o controle de insetos têm alto risco de induzir doenças graves como o câncer. Por exemplo, em 2015 a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) da Organização Mundial da Saúde (OMS), após extensa revisão de estudos científicos publicados, classificou o inseticida Malathion, usado atualmente no Brasil para o controle do Aedes, como provável cancerígeno para seres humanos.

Sistematicamente, os grandes fabricantes de agrotóxicos e inseticidas, bem como seus porta-vozes, constroem dúvidas, ocupando as mídias e espaços onde as grandes decisões são tomadas para reafirmar a “segurança” dos seus produtos pela falta de evidências ou provas em contrário. “Divergência de opinião” também é observada quando pesquisadores da área da Saúde Coletiva e aqueles indicados pelas empresas produtoras ou setores usuários dessas substâncias químicas confrontam suas posições. Embora cada parte com motivações distintas, enquanto a primeira está dedicada em proteger a saúde e o meio ambiente, a segunda se empenha em descaracterizar a nocividade dos produtos fabricados.

Existem inúmeros exemplos na história das indústrias química e petrolífera, de grandes mineradoras e fabricantes de medicamentos em que os discursos buscam amenizar os danos, mesmo quando tragédias muito graves acontecem ou são anunciadas. Décadas atrás a indústria do tabaco negava a relação com o câncer falando da “falta de evidências” ou apresentando estudos “científicos” e pareceres de pesquisadores “confiáveis”. Hoje sabemos que fumar aumenta o risco de ocorrência de câncer e de outras doenças. Outro exemplo ilustrativo é o do benzeno, que mesmo considerado um cancerígeno para humanos por todas as ag6encias reguladoras do mundo, a Corte Americana decidiu em favor das indústrias pela manutenção por mais 12 anos dos valores máximos de exposição a 10 ppm, contrariando assim todas as evidências científicas relacionadas ao desenvolvimento de leucemia em populações expostas.

Apesar dos muitos estudos que mostram os efeitos tóxicos do Malathion, este produto continua sendo aplicado no fumacê em áreas públicas, nos domicílios e peri-domicílios, em alta concentração para surtir o efeito de matar o Aedes aegypti. Mas o cenário de risco ainda pode piorar, pois projetos de lei e propostas elaboradas por representantes do setor do agronegócio e da aviação agrícola querem permitir a pulverização aérea de inseticidas sobre as cidades, especialmente nas áreas mais carentes de saneamento, onde estão a maioria dos criadouros de mosquitos, o que produzirá outras tragédias sanitárias.

O uso de produtos biocidas ou que afetam a biodiversidade sempre deve, ser evitado, pois existem alternativas eficazes de controle vetorial por meio mecânico de proteção e prevenção, de limpeza e de saneamento. A instalação de telas protetoras de janelas, portas e de reservatórios domésticos de água, assim como o fornecimento regular de água e melhorias do sistema de coleta de lixo, a universalização do saneamento básico e a melhoria das condições gerais de vida da população são exemplos de ações duradouras, seguras e eficazes que evitam a proliferação das larvas e o agravamento do problema. Além do que modos alternativos de eliminação dos insetos mediante uso de peixes, ovitrampas podem ser associados sem prezuizo a saúde e ao meio ambiente. Medidas dessa natureza também devem visar à proteção da saúde dos trabalhadores de saúde envolvidos na vigilância e controle de endemias. É fundamental que o controle do vetor esteja vinculado à redução das desigualdades sociais que atingem as populações mais pobres que vivem nas periferias urbanas e são mais vulneráveis a diversas doenças, inclusive as atuais epidemias de Dengue e Zika. O mesmo ocorre com a microcefalia, já que esta possui inúmeras possibilidades causais como a sífilis congênita, toxoplasmose, uso de drogas ou desnutrição grave na gravidez, dentre outras.

Na Nota técnica publicada em fevereiro de 2016, ‘Sobre microcefalia e doenças vetoriais relacionadas ao Aedes aegypti: os perigos das abordagens com larvicidas e nebulizações químicas – fumacê’, o uso do larvicida Pyriproxifen foi citado para sinalizar que todas as principais ocorrências desde 2014 precisavam ser interligadas para a compreensão do surto epidêmico de Zika. Outras questões de contexto, como a Copa do Mundo e a precariedade socioambiental na região de maior incidência em Pernambuco, foram também aventadas. Naquele momento, diversas hipóteses estavam sendo examinadas e é importante em qualquer investigação de surto epidêmico considerar as possibilidades de interações multicausais, pois estamos diante de um evento complexo. Também citamos este larvicida para explicar as sucessivas substituições feitas pelo Ministério da Saúde frente ao desenvolvimento de resistência pelo vetor, tornando o seu uso e o gasto público com inseticidas de baixa eficácia.

A descrição que o Ministério da Saúde faz da toxicidade desse produto no mosquito foi transcrita para esta Nota e é reveladora de efeitos teratogênicos e de desregulação endócrina nesse inseto que merecem atenção. Pelo tipo de ação toxicológica sobre o mosquito tais efeitos teriam que ser levados em consideração na análise de risco que envolve a saúde humana, o que não foi feito em nosso ambiente. Estudos recentes e ainda em fase de publicação do Prof. Antônio Carlos Pavão, pesquisador do Laboratório de Química Teórica e Computacional da UFPE, indicam o potencial carcinogênico do Diflubenzuron e Pyriproxifen comparado a outros compostos, o que reforça a importância da adoção do princípio de precaução. Alertamos ainda para o perigo do uso de qualquer produto que possa ameaçar a potabilidade da água de beber. Por que colocar as pessoas sob riscos ainda desconhecidos? Em situações de incertezas como essa a adoção do princípio da precaução na defesa da vida deveria forçar o abandono de tecnologias potencialmente perigosas e incentivar medidas protetoras e promotoras da saúde.

Estudos recentes vêm apontando a complexidade do problema e inúmeras incertezas associadas, o que reforça uma posição mais precaucionaria. A recente publicação na revista científica The Lancet, do último dia 16 de fevereiro, de uma descoberta da pesquisadora da Fiocruz Constância Ayres Lopes, revelando a presença do vírus da Zika na glândula salivar do mosquito comum conhecido como pernilongo ou muriçoca (do gênero Culex), reforça em muito a assertiva da Nota Técnica da importância das ações de saneamento ambiental para o controle da epidemia. Sabe-se que o Culex é bem menos seletivo que o Aedes para a escolha de seus criadouros, mostrando que os estudos de competência vetorial para a transmissão do Zika podem colaborar com a necessária mudança de paradigma do controle vetorial. Também na mesma Revista The Lancet do dia 1o de março, um grupo de autores da Nota Técnica publicou texto acadêmico sobre os equívocos do Programa de Controle da Dengue do Ministério da Saúde do Brasil focado no controle químico, deixando o saneamento em segundo plano ao longo de décadas.

Os médicos argentinos que estudam efeitos na população exposta aos agrotóxicos naquele país, ao lerem a Nota Técnica, encontraram suporte para muitas observações que vêm realizando em campo, firmando uma posição de nexo causal direto entre microcefalia e Pyroproxyphen que não foi realizado pela Abrasco em sua Nota Técnica. Contudo, reafirmamos nossa oposição à prática de centrar o controle de doenças transmitidas por mosquito mediante o uso de agrotóxicos empregados na agricultura e que são tóxicos. Este é caso do Malathion, provavelmente cancerígeno para humanos. Assim como na agricultura existem as alternativas agroecológica e orgânica para a produção de alimentos saudáveis, da mesma forma na saúde pública inúmeras medidas de promoção da saúde e controle não químico também podem e devem ser preferencialmente adotadas, como a realizada no Município de Pedra Branca – CE, que a 15 anos tem o controle eficaz do dengue no município sem uso de qualquer inseticida químico ou método agressivo ao meio ambiente.

Tais conhecimentos em prol de medidas protetoras e preventivas que defendem a vida legitimam atitudes como a do Secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, João Gabbardo que, como sanitarista, tem a missão de proteger a população, diferentemente de alguns pesquisadores e profissionais técnicos que atuam a serviço de indústrias produtoras dos venenos e biotecnologias, as quais têm por interesse maior o lucro. Os conflitos de interesse na defesa da saúde pública devem ser explicitados por razões éticas e para que, além da necessária transparência, o centro do debate público seja efetivamente a defesa da saúde e do ambiente ecologicamente equilibrado enquanto direitos fundamentais da pessoa humana previstos em nossa Constituição. Este é o compromisso inalienável da Abrasco e deve ser o de todos os profissionais que atuam direta ou indiretamente no campo da saúde.

Rio de Janeiro, 21 de março de 2016.

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