No momento em que o Brasil, assolado pela pandemia, vive o trágico cenário de mais de 430.000 pessoas mortas por Covid-19, a saúde mental de crianças e adolescentes tem sido utilizada como argumento nos debates que envolvem a abertura ou o fechamento das escolas, sob alegações, tais como, as dos prejuízos à saúde mental decorrentes da ausência da convivência social e das aulas presenciais, da maior exposição à violência doméstica e à exploração do trabalho infantojuvenil, além dos efeitos do distanciamento social para a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.
Em todo o mundo, desde março de 2020 e até hoje, grande parte da população estudantil enfrenta interrupções significativas nos períodos letivos. Em diversos países, o fechamento ou a reabertura das escolas têm sido pautadas pela vigilância e pelo monitoramento territorial dos índices de contágio, pelos indicadores do panorama epidemiológico, pelos protocolos de biossegurança e pela capacidade de adaptação das escolas a estes protocolos. Sem tais condições devidamente atendidas, a realização de práticas pedagógicas de forma presencial coloca em risco toda a comunidade escolar.
A função da escola é inquestionável no processo de desenvolvimento e de constituição subjetiva de crianças e adolescentes. Entretanto, para que exerça sua função no amplo espectro da saúde mental da infância e adolescência, especificamente em tempos de pandemia, é necessário que todos os que integram a comunidade escolar – alunado, professorado, funcionários de apoio, responsáveis – estejam em segurança sanitária.
Dessa forma, considerando a gravidade do momento no contexto brasileiro e entendendo que a definição de saúde mental deve partir da compreensão de que ela se realiza dentro dos laços sociais e que todas as ações de cuidado compreendem uma rede complexa de saberes que possibilitam um olhar transversal sobre a pessoa e sua história de vida, temos a manifestar o que segue.
O que é o PL 5.595/2020?
O Projeto de Lei (PL) nº 5.595, de 17 de dezembro de 2020, é uma proposta legislativa de autoria das deputadas federais Paula Belmonte (CIDADANIA/DF) e Adriana Ventura (NOVO/SP), que veta a suspensão das atividades educacionais em formato presencial nas escolas e instituições de ensino superior públicas e privadas.
Apreciado em regime de urgência pelo plenário da Câmara dos Deputados, o texto aprovado foi relatado pela deputada federal Joice Hasselmann (PSL/SP) e seguiu para apreciação do Senado Federal, onde tramita com a seguinte ementa: “Reconhece a educação básica e a educação superior, em formato presencial, como serviços e atividades essenciais e estabelece diretrizes para o retorno seguro às aulas presenciais” (grifo nosso), tendo como relator o senador Marcos do Val (PODEMOS/ES).
Por que somos contra o PL 5.595/2020?
O conceito de serviço essencial está presente na Constituição Federal (Carta Cidadã de 1988), é regulado pela Lei 7.783/1989 e define como essenciais as atividades ou serviços que devem ser assegurados com o fim de “atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”. Ou seja, são serviços ou atividades essenciais aqueles cuja interrupção possa colocar em risco esse atendimento, colocando “em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.
O PL 5.595/2020, alargando esse conceito, advoga a favor do retorno presencial das aulas, independentemente do contexto sanitário e apesar dos riscos apontados para os períodos de enfrentamento da pandemia, emergência e calamidade pública.
O atual governo estabeleceu, por meio da Lei 13.979/2020 (lei de enfrentamento à Covid-19), que a definição de “atividades essenciais” seria dada por decreto pela respectiva autoridade federativa, ou seja, passando a valer critérios técnico-burocráticos para a afirmação do que sejam consideradas atividades essenciais durante a pandemia, deixando ao sabor político do Presidente tal disposição.
É notório que o governo atual não possui rigor e nem respeito aos preceitos científicos, que devem reger os planos e fases de contenção da pandemia e da reabertura dos espaços públicos de lazer, comerciais, dentre outros. Faz uso da régua da economia para tentar incluir no critério da indispensabilidade as mais variadas atividades e serviços, como se fosse possível, ao sabor do momento e do contexto político, ampliar o rol do que são as necessidades inadiáveis da comunidade.
O relatório da Coalizão Global de Educação, plataforma de colaboração e intercâmbio para proteger o direito à educação durante a pandemia, lançado pela UNESCO, adverte que dois terços dos países mais pobres estão cortando seus orçamentos para a educação em um momento em que menos deveriam fazer isso. Deste modo, o surto da Covid-19 está ampliando ainda mais essa enorme lacuna de gasto per capita em educação entre os países ricos e os pobres. No Brasil, a lei orçamentária de 2021, conforme Decreto 10.686/2021, o Ministério da Educação obteve os maiores cortes e bloqueio orçamentários. O corte representa 18% a menos em relação ao ano anterior.
O PL 5.595/2020, seguindo premissas falsas sobre o estatuto da escola como um serviço essencial, conduz ao erro lógico de fazer equivaler a abertura das escolas ao retorno presencial das aulas, forçando esse processo, a qualquer custo e sem o cumprimento das condições imprescindíveis para que as escolas estejam funcionando, tais como: controle do panorama epidemiológico, condições de implementação dos protocolos de biossegurança, vacinação dos profissionais de educação, alternativas para transporte escolar, aprimoramento das condições de acesso e tecnologias para o ensino remoto, dentre outros. Em suma, maior investimento para a implantação das condições sanitárias e pedagógicas imprescindíveis para o retorno seguro das escolas no contexto de maior controle da epidemia.
O que defendemos!
Reconhecemos os impactos causados pelo fechamento das escolas, incluídos os agravos para a saúde mental de crianças e adolescentes. Contudo, sua reabertura e a retomada presencial das aulas não podem ocorrer baseadas apenas na falsa ideia de que Educação seria um serviço, e, como tal, inserido na lógica do consumo.
A escola é uma instituição estratégica no sistema de proteção e garantia de direitos e para o campo intersetorial responsável pela promoção da saúde mental da criança e do adolescente e, por isso, ela é constitucionalmente um direito social fundamental e não um serviço.
Afirmamos que Educação é um direito constitucional, inscrito no artigo 6º da Carta Cidadã de 1988, que deve ser garantido pelo Estado a todos os cidadãos, tendo, como ponto mais importante de sua incidência, o sujeito que dele desfruta. Portanto, está acima da lógica consumerista e de demandas econômicas que utilizam medidas mercadológicas para velar um direito e fazê-lo parecer um serviço como qualquer outro.
É indeclinável a importância da escola na vida das crianças e adolescentes. E nesse sentido, somos contrários ao PL, nos termos propostos, porque a reabertura das escolas, que é urgente e necessária, só pode ocorrer, não pela sua designação como serviço, via força de lei, mas se de fato a escola e a comunidade escolar se tornarem prioridade nos discursos dos governantes e nos planos regionais de reabertura e nas avaliações de risco sanitário.
Defendemos, portanto, urgência na ampliação dos investimentos públicos na rede de educação e na vacinação de toda a população!!
Assinam o documento:
Rede de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (RPq-SMCA)
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
Sobre a Rede de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (RPq-SMCA)
A Rede de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (RPq-SMCA) do estado do Rio de Janeiro, constituída em julho de 2020, agrega pesquisadores, docentes e discentes de diferentes programas de pós-graduação stricto sensu que têm em comum: a) a defesa da democracia e dos direitos humanos como valores inalienáveis; b) o reconhecimento de que a saúde mental se refere e se dirige a sujeitos históricos, relacionais, imersos na linguagem e sensíveis aos contextos onde vivem; c) a concepção de crianças e adolescentes como sujeitos plenos – psíquicos e de direitos; d) a afirmação do modelo psicossocial e do cuidado em liberdade como fundamentos da política pública de saúde mental; e) o entendimento de que a colaboração intersetorial, o compartilhamento de saberes e o componente da promoção de saúde mental são imprescindíveis para o avanço do cuidado e do sistema de proteção às infâncias e adolescências brasileiras.
Alicerçados nesses pontos em comum, os integrantes da RPq-SMCA vêm manifestar sua oposição ao Projeto de Lei 5.595/20, da Câmara dos Deputados, por razões que serão mais bem descritas adiante. Antes, porém, cabe contextualizar o problema que determinou a manifestação pública desta RPq-SMCA.