A Abrasco subscreveu a Nota Pública da Frente pela Ampliação da Rede de Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, na Bahia. O texto fala sobre a crise atual relacionada com o fechamento de hospitais e o avanço de práticas comerciais em saúde mental – “Ora, estamos em uma encruzilhada. Se o governo recua no fechamento de hospitais que têm, sucessivas vezes, sido acusados de grandes maus tratos aos seus pacientes, ele é conivente com esse tipo de atendimento que não respeita os direitos humanos e produz iatrogenia. Por outro lado, se ele os fecha sem que crie as condições necessárias para que essas pessoas sejam assistidas em outros serviços, ele próprio passa a ser o responsável pela desassistência”, diz o texto.
Confira a Nota Pública ‘Pela ampliação e fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial da Bahia’:
O que acontece com a Bahia? Onde está a Bahia vanguarda em saúde mental da década de 1980? A Bahia que foi uma das precursoras na criação de um Centro de Saúde Mental Comunitário chamado Mário Leal, que se transformou em um manicômio? O que acontece com a Bahia que, na primeira década dos anos 2000, implantou uma das maiores redes de CAPS do Brasil, mas que não emplaca a Reforma Psiquiátrica? Se consultarmos os dados disponíveis no Ministério da Saúde (BRASIL, 2014), veremos que a cobertura de Centros de Atenção Psicossocial ‐ CAPS no estado da Bahia é igual àquela encontrada em Minas Gerais, ou seja, ambas de 0,95. O detalhe é que, enquanto Minas Gerais, modelo de gestão em saúde mental do país, tem 12 CAPS III e 10 CAPS ad III, a Bahia tem 03 CAPS III e 2 CAPSad III. E a Bahia tem aproximadamente o mesmo número de CAPS III que Sergipe, sendo que temos uma população sete vezes maior. Por que esse destaque ao CAPS III? Porque se sabe que, de todos os equipamentos da rede de atenção psicossocial, os únicos capazes de substituir o hospital psiquiátrico no que diz respeito à hospitalidade noturna e à hospitalidade de final de semana de pessoas com transtorno mental e dependentes de álcool e outras drogas em crise são o CAPS III e leitos de saúde mental em hospital geral. Por que então, até hoje, não implantamos os CAPS III e deslocamos os recursos humanos dos hospitais psiquiátricos para esses serviços?
E por que defendemos os CAPS III, e não o hospital psiquiátrico? Porque os CAPS III funcionam pela lógica da atenção psicossocial, uma lógica comunitária, acolhem integralmente os/as usuário/as e familiares que já acompanham, ou desenvolvem um trabalho de coresponsabilização com as equipes de outros CAPS que acompanham usuários que necessitam de hospitalização, dando continuidade ao projeto terapêutico singular já em curso, além de entenderem as crises das pessoas como parte da vida daqueles sujeitos que, em um dado momento, necessitam da intensificação de cuidados sem que, para isso, uma ruptura seja produzida. Para constatar isso, é só visitar cidades brasileiras, como Campinas, Aracaju, ou Belo Horizonte.
Os hospitais psiquiátricos, diferentemente, trabalham em uma lógica manicomial, onde as pessoas tendem a ser dessubjetivadas, isoladas do seu território de vida, perdem autonomia (não apenas por estarem em crise, mas por perderem o poder de vocalização), são submetidas a uma rotina vazia, estereotipada, típica de instituição total. Esse tipo de funcionamento manicomial não é coisa do passado, já que continua sendo identificado, através de sucessivas avaliações realizadas nos mesmos hospitais psiquiátricos na Bahia, que já foram notificados diversas vezes, sem que nenhuma melhora tenha sido empreendida.
Exemplo disso é o que resulta no anúncio do fechamento de três hospitais psiquiátricos do nosso estado, tornado oficial pela Secretaria Estadual da Bahia e encaminhado, sob a forma de ofício (DGC no. 09/2017), para diversas instituições e grupos. A principal razão alegada para justificar esse fechamento é o fato desses hospitais terem alcançado uma nota inferior àquela exigida para o seu credenciamento pelo PNASH, que é de 61%, enquanto os valores obtidos por esses hospitais foram abaixo de 40%. Por outro lado, temos a informação de que a gestão estadual “adotará as providências necessárias para a efetivação do processo de desinstitucionalização e de substituição do modelo de atenção com base nas diretrizes e pontos da Rede de Atenção Psicossocial”. No entanto, desse anúncio realizado até os dias atuais, não foi feita nenhuma apresentação pelo Estado de qual plano real guiará a efetivação desse processo de desinstitucionalização e, mais sério ainda, nenhum plano de saúde mental do governo foi apresentado e orçado para que se possa assegurar a população de que esse fechamento não resultará em terrível desassistência. Essa, inclusive, tem sido uma das razões pelas quais alguns grupos começaram a se mobilizar defendendo o não fechamento desses hospitais e, em Vitória da Conquista, o Ministério Público tenha chegado a interpor um recurso com essa finalidade.
Ora, estamos em uma encruzilhada. Se o governo recua no fechamento de hospitais que têm, sucessivas vezes, sido acusados de grandes maus tratos aos seus pacientes, ele é conivente com esse tipo de atendimento que não respeita os direitos humanos e produz iatrogenia. Por outro lado, se ele os fecha sem que crie as condições necessárias para que essas pessoas sejam assistidas em outros serviços, ele próprio passa a ser o responsável pela desassistência, o que envolve, não apenas as pessoas que se internam e são atendidas na emergência desses serviços, mas de um número aproximado de 8.000 pessoas em tratamento ambulatorial e de em torno de 40 moradores, só quando se soma o Hospital Mário Leal ao Juliano Moreira, sem falar nos “quase moradores”, aquelas pessoas que são reinternadas com uma enorme frequência, e em um intervalo curtíssimo de tempo, no que se chama do fenômeno da porta giratória.
Evidentemente que se sabe também que a responsabilidade por essa rede de assistência inclui o nível municipal, principalmente das cidades de maior porte na Bahia, onde se encontra o maior número de casos. Visto desse prisma, o problema só aumenta quando se observa em Salvador, o maior município do estado, o nível de sucateamento da rede de serviços de saúde mental e a precarização dos ambientes de trabalho. A isso se soma uma das piores coberturas de unidades de saúde da família do país, o que torna a questão da desassistência ambulatorial particularmente grave se contarmos que essas unidades poderiam funcionar no atendimento de casos mais leves de transtornos mentais, enquanto que outra parte desses usuários poderiam ser distribuídos pelos CAPS já existentes, ou nos novos que serão necessários de ser implantados.
Mas como fechar hospitais psiquiátricos sem criar desassistência? Primeiramente, defendendo o Sistema Único de Saúde, ou seja, entendendo saúde realmente como prioridade. Além disso, utilizando bem os recursos que já são destinados ao hospitais psiquiátricos, que é um valor bastante alto (segundo informações disponíveis, em torno de dez milhões de reais por mês), realocando‐os integralmente no campo da saúde mental em equipamentos mais eficientes e movidos por uma lógica onde o usuário é o centro do cuidado. Na Inglaterra, por exemplo, um estudo de cinco anos acompanhou mais de 95% dentre 970 pacientes cronificados e não demenciados que tiveram alta de Hospital Psiquiátrico, e encontrou, entre várias outras evidências, que: “(…) Houve pouca diferença entre os custos das intervenções hospitalar e comunitária, mas a avaliação econômica sugere que a atenção comunitária é melhor em termos de custo‐benefício do que a internação psiquiátrica de longo prazo, porque houve maior eficácia” (Thornicroft e Tansella, 2008, p.16). É necessário, portanto, por parte dos governos estadual e municipais, a disposição em investir, de fato, na rede de atenção psicossocial e na qualificação dos seus trabalhadores de saúde mental. Pode‐se fazer a hipótese, por exemplo, de que, a despeito de a Bahia ter realizado a expansão da rede de CAPS de forma importante, o baixo investimento em formação de pessoal, além de uma precarização de vínculos empregatícios, tenha sido responsável por uma atuação desses serviços abaixo da sua capacidade. Ou seja, serviços não funcionam sem profissionais qualificados e valorizados.
No entanto, em um momento onde a mercantilização da saúde caminha a galope, há o risco sempre maior de que procedimentos de alto custo ou lucrativos ganhem prioridade, a exemplo de intervenções cirúrgicas ou eletroconvulsoterapia, e que a privatização do setor saúde, ou pelo menos a articulação público‐privada, se sobreponha sempre mais, e de modo acrítico e descontrolado, ao caráter público do SUS. Nessa tendência, grupos empresariais e interesses privados passam a disputar esse mercado, como já o fizeram anteriormente, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, quando a saúde mental era um nicho de grandes oportunidades para os que queriam enriquecer com a miséria alheia: era a indústria da loucura. Muita luta e muita estratégia foram necessárias para colocar o Brasil em outro patamar de atenção à saúde mental, com um reconhecimento internacional por esse feito. O que muitas vezes é desqualificado como “ideologia”, na verdade, é fruto de um conhecimento “de dentro”, por parte de muitos profissionais que testemunharam os abusos e violações perpetrados nos manicômios. Ao longo desses anos de Reforma Psiquiátrica Brasileira, esse conhecimento mais empírico passou de uma sabedoria prática para uma ciência engajada, ou seja, para uma ampla produção científica em periódicos de renome, que tem atestado a melhoria das condições de vida e saúde daqueles/as que saíram do tratamento manicomial e puderam desfrutar de serviços comunitários.
Há muitas críticas escritas nesses mesmos trabalhos, como deve ser na boa ciência; o que não há é o travestismo de uma ciência neutra que esconde o lobo na pele do cordeiro. Ou seja, que se utiliza de um discurso científico para esconder interesses mercadológicos. Desse modo, é preciso que fique claro que a Frente pela ampliação e fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial da Bahia defende:
1) Que o governo do estado e municípios da Bahia, especialmente Salvador e os de grande porte, articulem um plano de desinstitucionalização para o estado com a alocação de recursos para a implantação e funcionamento de equipamentos necessários para esse processo: CAPSIII, CAPSad III, Serviços residenciais terapêuticos ‐ SRT, leitos de saúde mental em hospital geral, em número compatível com aqueles verificados de internação e de moradores de hospitais que ocorrem atualmente no estado;
2) Que os espaços que serão alocados para a implantação desses serviços comecem a ser identificados ou construídos;
3) Que um plano de educação permanente voltado para trabalhadores de saúde mental, incluindo a atenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas, da rede SUS da Bahia seja proposto em função das necessidades atuais;
4) Que recursos para a induzir a reinserção social dos usuários sejam alocados, a exemplo do Programa de Volta para Casa, programas de economia solidária, passe livre, entre outros;
5) Que os hospitais psiquiátricos da Bahia sejam completamente fechados até o final da gestão do atual governo do estado;
6) Que o Ministério Público estabeleça um Termo de Ajustamento de Conduta para definir a implantação desses serviços dentro do tempo previsto; 7) Que um grupo executivo seja nomeado para deliberar e monitorar esse conjunto de ações o objetivos.
Salvador, 06 de março de 2017.
São signatários desta nota as seguintes entidades e organizações:
Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES
Associação de Usuários e Familiares do Estado da Bahia – AMEA (Associação Metamorfose Ambulante)
Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial Grupo Tortura Nunca Mais / Bahia
Coletivo Intercambiantes Bahia Mobiliza – RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) – BA
Núcleo para a Superação dos Manicômios – NESM
Núcleo Interdisciplinar em Saúde Mental – NISAM (ISC/UFBA)
Núcleo de Humanização Arte e Saúde/ UFSC
Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial – RENILA