Nós, organizações da sociedade civil que compõem a coalizão Reforma Tributária 3S – Saudável, Solidária e Sustentável, vimos a público manifestar nosso repúdio aos ataques que o Imposto Seletivo vem recebendo de setores da indústria amparados por alguns representantes no Congresso Nacional.
Diversos setores empresariais do Brasil, preocupados com a regulamentação do Imposto Seletivo na Reforma Tributária, organizaram-se em torno de Frentes Parlamentares na Câmara dos Deputados para realizar debates e propostas que descaracterizam e enfraquecem seus objetivos voltados à promoção da saúde e proteção ao meio ambiente.
Em 1° de março, esses setores realizaram um Seminário para discutir o Imposto Seletivo, em que atacaram a taxação de produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, como tabaco, álcool e alimentos ultraprocessados, associaram a tributação desses alimentos à insegurança alimentar e alegaram que o consumo controlado do álcool deve ser feito exclusivamente por meio de políticas de conscientização. Em 19 de março, decidiram não seguir o comando constitucional, que atribuía ao Executivo a apresentação de propostas para regulamentar a Reforma Tributária, e optaram por apresentar um projeto de lei complementar sobre o Imposto Seletivo. O PLP 29/2024 foi proposto pelos deputados Luiz Philippe De Orleans e Bragança (PL/SP), General Girão (PL/RN), Evair Vieira de Melo (PP/ES) e Rosângela Moro (União/SP) e esvazia completamente os objetivos de proteção à saúde e ao meio ambiente que estão no cerne da concepção do Imposto Seletivo.
Dentre as descabidas previsões da normativa, destacam-se: 1) a instituição da figura da Lei Complementar Específica, que define que se proponha um projeto de lei para cada item que se quer tributar. Essa proposta complexifica um sistema cuja reforma busca simplificar e cria dificuldades para se alcançar um conjunto amplo de produtos nocivos, como agrotóxicos e ultraprocessados, bem como para a fiscalização e o controle da tributação; 2) a instituição de mecanismos de incentivo, incluindo redução de tributos, para quem promover ações de mitigação ou prevenção relativas ao consumo mais saudável e sustentável; 3) o estabelecimento de metas anuais que, caso não alcançadas, suspenderiam a incidência do imposto; 4) a avaliação dos resultados seria realizada por comissão especial do Senado Federal, proposta que esvazia o caráter técnico necessário e pode enviesar as decisões.
O consumo de tabaco, bebidas alcoólicas e alimentos ultraprocessados são reconhecidamente fatores de risco para o desenvolvimento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNTs), como é o caso de doenças cardiovasculares, diabetes e câncer. As DCNTs são responsáveis por 75% das mortes no Brasil, o que significa um impacto enorme na saúde da população. No Brasil, 161 mil pessoas perdem suas vidas todos os anos devido ao consumo do tabaco e os custos com os efeitos do cigarro chegam a R$92 bilhões por ano no país, entre tratamento e perda da produtividade. O consumo abusivo de álcool está associado a mais de 200 problemas de saúde, além de gerar problemas como a incidência de violência e diminuição da renda. Em 2018, os gastos com tratamento de cânceres associados ao consumo de álcool foi de R$1,7 bilhões, e em 2019 seu consumo foi responsável por 75 mil mortes.
Somando-se ao desmonte proposto pelo PLP 29/2024, em 2 de abril, o setor de supermercados entregou ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, uma nova proposta de composição da Cesta Básica Nacional de Alimentos e da lista de produtos a receberem desoneração de 60%. Formulada pela Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), a proposta amplia os itens ultraprocessados na Cesta e inclui centenas desses produtos na lista de itens a serem beneficiados pela desoneração fiscal. O documento ainda inclui bebidas alcoólicas e produtos altamente nocivos ao meio ambiente, com os mesmos princípios ativos dos agrotóxicos. Vale lembrar que, de acordo com a emenda constitucional aprovada, os produtos que receberem desoneração de 60% não poderão ser taxados pelo Imposto Seletivo. Ou seja, a proposta visa conceder benefícios a produtos nocivos ao mesmo tempo em que esvazia por completo o Imposto Seletivo.
A proposta prevê a desoneração de inseticidas, rodenticidas, fungicidas, herbicidas e outros produtos, cuja toxicidade exige uma série de medidas voltadas a diminuir as chances de ocorrência ou de agravamento dos casos de intoxicação decorrentes do contato com esses produtos. Outros danos decorrentes incluem contaminação da água da chuva, rios e mortes de polinizadores. Produtos que carregam esses princípios ativos devem ter o uso rigidamente controlado e não estimulado.
Com relação aos alimentos ultraprocessados, atores da indústria tentam interferir na regulamentação do Imposto Seletivo, questionando inclusive a definição baseada nos níveis de processamento. A classificação NOVA, que embasa as informações sobre os riscos dos ultraprocessados no consumo humano, é reconhecida internacionalmente e adotada em países como Uruguai, Canadá, México e Equador. O Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, se baseia nessa classificação e se tornou uma referência de relevância e reconhecimento mundial para a garantia da alimentação adequada e saudável.
Da mesma forma, esses setores utilizam a problemática da fome como um elemento de pressão pela retirada dos ultraprocessados da lista do novo tributo. Entretanto, o consumo de ultraprocessados colabora com a dupla carga de má nutrição, pois são pobres em nutrientes e ricos em gorduras, sódio, açúcar e aditivos industriais. Uma consequência direta é a coexistência da desnutrição com sobrepeso/obesidade. No Brasil, ao menos seis em cada dez adultos e um em cada três crianças apresentam excesso de peso. Nesse contexto, estima-se que 57 mil mortes prematuras tenham ocorrido em 2019 por conta do consumo de ultraprocessados. Cabe assinalar que entre 2006 e 2022 o preço dos alimentos saudáveis apresentaram uma elevação três vezes maior comparado aos ultraprocessados, contribuindo para torná-los mais acessíveis.
Os alimentos ultraprocessados, em sua maioria, vêm em embalagens de plástico de baixa ou nenhuma reciclabilidade, contribuindo para a poluição, riscos para a saúde humana, e onerando o sistema de gestão de resíduos, especialmente as cooperativas de reciclagem. A inclusão do plástico descartável e não reciclável no escopo do imposto seletivo da reforma tributária, é uma medida que pode desencorajar o consumo e favorecer matérias primas mais sustentáveis. Até 2018, 29 países já tinham taxas sobre produtos e/ou embalagens plásticas, como a Tunísia, Índia, Reino Unido e Jamaica.
Temos a oportunidade, até mesmo, de dar um passo decisivo na ampla reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis. Esperamos que a regulamentação da Reforma tributária traga, obrigatoriamente, a transformação dos regimes tributários que beneficiam o setor de Óleo & Gás, e isso irá reconfigurar grande parte dos subsídios destinados a esse setor. De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), entre 2018 e 2022, foram concedidos R$ 246 bilhões em subsídios à produção de Óleo & Gás no Brasil, dos quais 83% se deram por meio de renúncias fiscais. Do valor total em renúncias, a exploração de Óleo & Gás recebeu 70%, ou R$ 194,4 bilhões, por meio dos Regimes Especiais de tributação que beneficiam o setor, e uma parte importante se deve à não cobrança das Contribuições Sociais, como o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
A regulamentação da reforma tributária no Brasil é, talvez, a maior oportunidade que temos para garantir que os incentivos à economia nacional estejam alinhados aos princípios de saudabilidade e sustentabilidade, conforme preconizado pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), compromisso internacional firmado pelo país. A reforma tributária deve incentivar o que faz bem à saúde das pessoas e do planeta, e desestimular aquilo que faz mal. Nesse sentido, o Imposto Seletivo ganha enorme centralidade no debate, pois pode desincentivar o consumo de produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente ao fazer com que seus preços reflitam os custos sociais que acarretam. Assim, governo e Congresso Nacional têm o dever de usar o instrumento do Imposto Seletivo adequadamente, tributando bens e serviços nocivos e protegendo a saúde e o meio ambiente, sem ceder à pressão de interesses que visam exclusivamente o lucro.
Assinam:
1. ACT Promoção da Saúde
2. Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco
3. Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN
4. Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
5. Ação Cidadania
6. Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
7. Instituto Democracia e Sustentabilidade – IDS
8. Gestos
9. Oceana Brasil