Os gastos com saúde crescem em quase todo o mundo. Entre eles, os gastos com medicamentos, que de acordo com o IBGE, representam 30% do gasto familiar com saúde e são também uma grande fonte de despesas do SUS. A maioria das análises mostra que dentre as inúmeras causas desse crescimento está a intensificação da dinâmica tecnológica em saúde, especialmente a alta de preços dos medicamentos. Ao mesmo tempo, vivenciamos o desabastecimento de medicamentos e outros produtos essenciais para a saúde antigos e eficazes, porém de menor valor comercial. Tais situações foram agravadas ainda mais pela pandemia da Covid-19.
Os países que possuem sistemas de saúde universais há muito desenvolveram mecanismos para a regulação de preços de medicamentos. Com o recrudescimento da tendência de alta, em muitos casos estão sendo aperfeiçoados, com a utilização de avaliação de tecnologias em saúde e outros mecanismos, como na Alemanha, Canadá, França, Reino Unido, entre outros. A Organização Mundial da Saúde recomenda a regulação de preços de medicamentos com o objetivo de garantir o acesso equitativo aos medicamentos pelos usuários e sistemas de saúde. Considera-se fundamental também que seja garantido o estímulo à inovação, ao mesmo tempo em que se garantam preços justos para os medicamentos e outras tecnologias.
Um argumento abundantemente utilizado contra a regulação de preços de medicamentos é que as empresas sofrem com ela. No Brasil, pelo contrário. Neste século, com as políticas de regulação existentes a partir da CPI dos medicamentos (1999), a indústria farmacêutica esteve entre os segmentos que mais cresceram, resistindo ao desastre observado em outros segmentos a partir de 2014. De 2015 a 2019, houve um aumento de 9.8% no número de empresas e de 33.3% no faturamento do setor farmacêutico brasileiro.
Entre nós, lamentavelmente, está sendo construída uma proposta que fragiliza a regulação de preços de medicamentos e que terá certamente um impacto para as famílias, governo e saúde suplementar. Acaba de ser formalizada a “Consulta Pública SEAE nº 02/2021 – Critérios para Precificação de Medicamentos” oriunda do Ministério da Economia, que carece de uma fundamentação técnica de análise de impacto regulatório e deixa inúmeras brechas para aumentos de preço.
É, sem dúvida, positivo estimular a capacidade inovativa da indústria farmacêutica brasileira, intenção aparente do texto apresentado, bem como incorporar jurisprudências já consolidadas. Dentre as alterações propostas pela consulta pública está a de bonificar medicamentos que apresentem “inovações incrementais” acima dos preços já praticados no mercado. Entretanto, o conceito mais disseminado de inovação incremental, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apresenta grandes indeterminação e elasticidade de suas fronteiras. Podem ser focadas em produtos, processos, marketing, design, mudanças organizacionais etc. Os critérios estabelecidos para a bonificação na consulta pública são vagos e abrem portas para “inovações” supérfluas, sem quaisquer impactos sanitários para os usuários.
Ao mesmo tempo, circula na imprensa projeto que enfraquece a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), transferindo da ANVISA para o Ministério da Economia a sua Secretaria Executiva (SCMED). Na economia brasileira, preços são, de modo geral, controlados pelo mercado. Dentre as exceções, para corrigir falhas de mercado e por razões sanitárias e de proteção da economia popular e do SUS, está o controle de preços de medicamentos. Portanto, não há qualquer razão para que a Secretaria Executiva saia da esfera de competência da saúde (ANVISA), onde desenvolve um trabalho técnico altamente especializado, interagindo com outros órgãos e sistemas da Agência para o Ministério da Economia.
O sucesso da regulação sanitária e econômica no Brasil deve-se ao seu caráter intersetorial e de políticas de Estado, com os diferentes ministérios atuando dentro de sua esfera de competência. O grande prejuízo da implementação dessa proposta é o esvaziamento da ANVISA, com o deslocamento de um tema da ordem sanitária para a órbita econômica. É fundamental recuperar a capacidade técnica da SCMED para que continue desempenhando seu papel de suporte técnico à CMED. A regulação deve garantir um equilíbrio entre o estímulo à inovação, competitividade e a garantia do acesso e da sustentabilidade do SUS. Quando um destes pilares é retirado, quem sofre é a população. Esse é mais um desastre à vista que pode ser evitado.
Rio de Janeiro, 09 de agosto de 2021
Assinam essa nota:
Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva
ABEn – Associação Brasileira de Enfermagem
Asfoc-SN – Sindicato dos Servidores de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública
Associação da Rede Unida
Cebes – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Fenafar – Federação Nacional dos Farmacêuticos
SBMFC – Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade
ABrES – Associação Brasileira de Economia da Saúde
Sobrasp – Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente
Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
SBRAFH – Sociedade Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde