Rio de Janeiro, 14 de março de 2022
Despejos, remoções e desocupações têm grande relação com impactos à saúde das populações afetadas.
A pandemia da Covid 19 intensificou as desigualdades sociais de gênero, raça e as iniquidades em saúde [1] pré-existentes nas condições de vida da população brasileira, o que leva à necessidade de esforços dos governos, em todos os níveis, para fortalecer ações na perspectiva dos determinantes sociais da saúde.
As condições sociais, econômicas, sanitárias e ambientais são determinantes sociais da saúde, materializados nas condições de moradia, transporte, saneamento, alimentação e nutrição, trabalho, renda, educação, ambiente físico e social de apoio às famílias e grupos, incidindo de forma direta nos processos de adoecimento e morte das pessoas no território onde elas vivem.
O quadro sanitário da pandemia da Covid-19 potencializou e foi potencializado pela crise econômica, política e social em que o Brasil está imerso, consequência da crise global do sistema produtivo. Nesse contexto, milhares de famílias ficaram sem ter onde morar o que as colocou em condições ainda mais vulneráveis às doenças. Houve aumento de mais de 300% de famílias despejadas em 2021 em relação ao ano anterior, cujos reflexos foram diretamente observados no âmbito da saúde pública, tornando urgente e necessárias políticas e ações públicas de enfrentamento.
Esse significativo aumento de famílias despejadas adensou o fenômeno social de pessoas em situação de rua. Tais indivíduos, invisibilizados nas cidades, estão localizados, em sua maioria, nas grandes metrópoles, como apontado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea (2020)[2], e sua taxa de crescimento populacional foi de 165% no período de setembro/2012 a março de 2020. Note-se que não há atualização disponível dessas informações para o período da pandemia.
Segundo o IPEA (2020), a população em situação de rua teve uma taxa de crescimento em território nacional, entre setembro de 2012 e março de 2020, de 140%. O que corresponde ao número de 221.869 pessoas em março/2020. No entanto, cabe salientar que tais dados correspondem ao que o poder público consegue visualizar a partir do Censo SUAS[3], dos registros mensais de atendimento socioassistencial (RMAs) e, nos últimos anos, da crescente inserção no Cadastro Único (CadÚnico) (IPEA, 2020). Logo, pressupõe-se que este quantitativo seja bem maior, algo que se confirma na fala de profissionais e movimentos da sociedade civil que atuam diretamente com essa população.
Estimativas e levantamentos censitários mais recentes, como os realizados na cidade São Paulo[4] e do Rio de Janeiro[5], apontam, respectivamente, um quantitativo de 24.344 e 7.272 pessoas em situação de rua. Números expressivos, mas que tangenciam a realidade do fenômeno, posto que, para além dos limites descritos acima e da identificação no território, já que nesses montantes não consta o número de indivíduos afetados ao longo dos 2 anos de pandemia da Covid-19, cuja intensificação é possível constatar ao caminhar pelos centros urbanos. Ademais, observa-se um novo perfil composto por famílias – que conjugam 2 a 3 gerações, em sua maioria com crianças – que nunca vivenciaram “estar sem teto” e “carregar consigo”, como parte de seu corpo, o máximo de pertences que conseguiram preservar da antiga moradia, e a esperança da saída das ruas.
O crescimento expressivo dessa população tem como determinantes sociais a crise econômica, o aumento do desemprego, as ações de remoções, despejos e desocupações, bem como a condição de pobreza.
Atrelada a essas condições, a atual crise sanitária em conjunto com as ações desarticuladas, dos governos federal, estaduais e municipais, no enfrentamento à pandemia fez com que famílias inteiras vivenciem situações de riscos e vulnerabilização da vida. Entretanto, não está sendo realizada, pelo Poder Executivo federal, a coordenação nacional necessária para o enfrentamento de tão grave crise, o que aumenta a importância da vacina[6].
Evidências científicas relatadas pela Organização Mundial da Saúde, mostram que a moradia insegura, seja por localização em áreas de risco e/ou ausência/insuficiência de saneamento, seja por questões relacionadas à acessibilidade ou à posse, é estressante para os seus residentes[7].
Ao mesmo tempo, indicadores relacionados à Covid-19 (adoecimento, mortalidade, sequelas, cobertura da população com vacinação e realização de testes) expõem o cenário das desigualdades sobre a incidência da doença e seus efeitos nos diferentes extratos sociais e territoriais da população brasileira. A recomendação técnica[8] é que sejam elaboradas estratégias e colocadas em plano de ação a realização de testes em massa e priorização da cobertura de vacinação por meio de identificação de territórios com maiores índices de infectados para que suas populações possam ser priorizadas, conforme apontado pelo estudo do LabCidade/FAU/USP[9]. Essa medida constituiria um planejamento de impacto populacional com maior potencial de minimizar a transmissão do que pelo critério de faixas etárias e, assim, constituir grupo e espaços coletivo de imunidade que certamente garantiria a proteção necessária às populações mais vulnerabilizadas.
Populações em condições de pobreza urbana e populações tradicionalmente vulnerabilizadas como negra, indígena e carcerária, têm sido afetadas de forma iníqua, com taxas de incidência, hospitalizações e mortalidade muito mais altas que outros grupos populacionais. São as pessoas mais vulnerabilizadas, em termos das condições de vida, as que apresentam os piores indicadores de Covid-19 quanto ao adoecimento, internações[10], mortalidade e cobertura vacinal[11]. São justamente essas pessoas, submetidas ao racismo ambiental[12], que estão mais expostas ao risco de contaminação, exigindo uma estratégia urgente e efetiva que integre ações e políticas públicas de saúde, habitação e renda.
Além de sofrerem com os impactos da crise sanitária, social e econômica associada à Covid-19, essas populações mais vulnerabilizadas tendem a ser as mais afetadas pelas consequências negativas das mudanças climáticas, motivos pelos quais urge reconhecer que o Estado, por meio dos governos e instituições em todos os níveis de gestão, deve promover políticas de promoção da saúde e proteção à vida de todas as pessoas, em particular daquelas mais expostas aos efeitos das desigualdades sociais, como no caso do Brasil. Esses “condenados da terra”[13] – moradores de favelas, cortiços, ocupações, acampamentos, sem-terra e sem teto – estão em maior risco de adoecer e morrer, dado o estado de necessidade, privação material e moradia precária ou improvisada[14].
A pandemia não acabará nos próximos meses, e mesmo que acabasse, as condições de vida dessas pessoas exigem ações da saúde pública articuladas com as demais políticas de proteção social. As remoções, os despejos e as desocupações aumentam a situação de vulnerabilidade dessas pessoas e afetam suas condições de saúde. A suspensão de remoções, despejos e desocupações é uma questão de segurança sanitária, para além de segurança social (e é preciso que o prazo seja estendido).
A aplicação dos conceitos de exposição e risco em epidemiologia são mais adequados para populações por proporcionar abordagem coletiva, e devem estar associados ao de vulnerabilidade que acrescenta elementos contextuais e condições singulares de indivíduos e grupos. A exposição ao risco de contaminação, do ponto de vista da ciência da epidemiologia, não representa uma situação pontual de cada pessoa, mas uma experiência continuada com variações de intensidade, frequência e duração ao longo do tempo. E o risco é a probabilidade de um membro da população desenvolver a Covid-19 num período de tempo, diante da magnitude da exposição ao coronavírus. Assim as populações mais vulnerabilizadas são comumente as mais expostas ao risco de contaminação e transmissão do vírus quando comparadas às populações com moradia, saneamento, emprego, melhor mobilidade e com possibilidade de distanciamento, o que reforça a necessidade de o Estado garantir políticas públicas para atender às necessidades básicas da população que possa lhes assegurar bem-estar e dignidade de vida.
Cabe ressaltar que a moradia está no rol de direitos fundamentais da Constituição Federal, com a edição da Emenda Constitucional n. 26. Além disso, o Brasil é signatário do Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (PIDESC, ONU, 1996) com destaque para o direito à moradia. Direito esse presente também nas seguintes convenções: Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação da Mulher (1979); a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); a Convenção dos Trabalhadores Migrantes (1990); e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais (1989). Além do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001).
Destaca-se ainda a Recomendação n.90, de 2 de março de 2021 (CNJ) que recomendou a avaliação criteriosa das remoções coletivas, bem como o cumprimento da resolução 10/2018 do CNDH.
No campo internacional, a ONU divulgou o documento “Covid-19 Guidance”[15], e no capítulo “housing”, que indica o especial cuidado para evitar que a população fique desabrigada durante a pandemia, recomendando um esforço dos governos nesse sentido.
A ONU-Habitat, o programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos e que está presente no Brasil há mais de 20 anos, fez uma declaração com uma série de recomendações aos governos locais, tendo em vista a situação dos despejos forçados durante a pandemia[16]. Nesse documento a ONU-Habitat recomendou fortemente que os Estados-membros parassem os despejos e remoções, expondo também argumentos, como os trazidos aqui, de saúde pública e de garantia dos direitos fundamentais.
Já no documento “Covid-19 Guidance Note – Prohibition on evictions”[17], indica que os Estados devem parar os despejos, tendo em vista a situação de saúde grave causada pela pandemia.
A vacinação no Brasil foi iniciada em 18 de janeiro de 2021 e as taxas de cobertura vacinal foram ampliadas de forma desigual entre os estados, os municípios e as populações, sendo que aquelas com piores condições de vida tenderam a ter menor velocidade na ampliação da cobertura de vacinação tanto com as 2 (duas) doses como com as doses de reforço. Isso ocorre mesmo tendo sido atribuída prioridade aos grupos mais expostos e/ou vulnerabilizados, pois tais critérios não consideram as desigualdades sociais e territoriais, como por exemplo a distribuição geográfica das unidades de saúde no interior de cada município ou as más condições do transporte coletivo de muitas cidades, que os tornam mais um vetor de transmissão.
Ressalta-se ainda, que nos últimos anos da cena política brasileira, o sub financiamento do Sistema Único Saúde (SUS) e a fragilização dos modelos da Atenção Básica e da Vigilância em Saúde, contribuíram para a precarização e insuficiência da rede de serviços de saúde para enfrentar a estrutural desigualdade socioeconômica brasileira. As consequências da Covid-19, além de afetar as condições de saúde e qualidade de vida da população, interferem na capacidade produtiva e de sobrevivência das pessoas contaminadas trazendo impactos ao próprio desenvolvimento econômico e social do país., influenciando na oferta de testes em massa e a de vacina de forma rápida, segura, sem discriminação geopolítica, étnico/racial, de classe ou de gênero, resultando em menor cobertura vacinal das populações vulnerabilizadas.
O sucesso no enfrentamento desta pandemia para evitar sequelas, casos graves e óbitos, requer diminuir a transmissão na população e reduzir a velocidade da geração de novas variantes do vírus. Só assim poderemos minorar os impactos no sistema de saúde tanto de custos presentes e futuros como de pressão na oferta de profissionais e serviços do sistema.
Apesar da suspensão de “medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia”, cerca de 23.500 famílias, ficaram desabrigadas no Brasil desde o início do levantamento da Campanha despejo zero e continuam sendo removidas, mesmo com o deferimento da ADPF nº 828 em junho de 2021, por parte da Suprema Corte.
Dentre os casos ocorridos e coletados pelo Observatório de Remoções, fica evidente o caráter violento das ações. Há casos em que os despejos não possuíam qualquer processo judicial; medidas administrativas cumpridas por subprefeituras; decisões favoráveis por parte do TJSP, sem qualquer planejamento para o acolhimento das famílias, ou assistência social; casos cujas famílias tiveram seus pertences destruídos ou queimados, lideranças sociais que foram perseguidas, e outras violações. São ações desumanas que desconsideram por completo o estado de emergência sanitária e aconteceram mesmo com a ADPF.
A prorrogação do prazo de vigência é essencial. Neste momento, é uma medida estratégica para a preservação de vidas. Com a chegada da variante Ômicron, voltamos a observar altas taxas de contágio e de mortalidade. Porém, para além da prorrogação do prazo, é necessário garantir a aplicação, além do judiciário, de políticas públicas sociais, de saúde, de moradia para atendimento às famílias. Do contrário, estaremos normalizando ações violentas que oferecem risco à vida, durante a pandemia.
A atual conjuntura demanda iniciativas que assegurem os direitos fundamentais desses sujeitos, sobretudo no contexto da atual crise sanitária – em que os direitos à saúde, à alimentação, à moradia, e, o principal, o direito à vida são sistematicamente ameaçados, mais ainda com a gravíssima crise econômico-social e sanitária.
Esta Nota Técnica resulta de debate com diversas entidades defensoras do direito à saúde, direitos humanos e o direito à cidade. Assinam esta Nota Técnica:
Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES)
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO)
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação em Cidades Saudáveis da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (CEPEDOC/FSP/USP)
Grupo Periférico, trabalhos emergentes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (PPG-FAU/UnB)
Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA)
Frente pela Vida
Instituto Saúde e Sustentabilidade
Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, FAU/USP
Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade FAU/USP)
Laboratório Justiça Territorial (LabJuta/UFABC)
Observatório de Remoções
Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP)
Rede Unida
Transborda: Estudos da Urbanização Crítica da UNIFESP