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Novo modelo de financiamento do SUS: Concepção e diretrizes – Artigo de Erika Aragão

Desde 2020, a partir da crise sanitária provocada pela Covid-19, economistas de todos os matizes são obrigados a examinar mais do que nunca como a política econômica e a política de saúde podem sobredeterminar as causas de morbimortalidade de uma sociedade.

David Stuckler e Sanjay Basu deram uma contribuição importante nesse sentido: em 2013, publicaram um livro intitulado The body economic: Why austerity kills, no qual criticam e demonstram os efeitos negativos das políticas de austeridade fiscal sobre as condições de vida e saúde das populações.

Desse modo, para capacitar o Estado a responder aos desafios da retomada do crescimento e da redução da desigualdade, diversos países pretendem ampliar o gasto público no período pós-pandemia. Ademais, em várias nações, as regras fiscais seguem suspensas desde o advento da pandemia.

Entretanto, o Brasil segue em sentido oposto: apesar da aplicação dos créditos extraordinários para o enfrentamento da pandemia – que não foram contabilizados no teto de gastos – o governo federal aprofundou a política de austeridade fiscal, decerto seletiva, que atua em favor da redução dos direitos sociais, na contramão do que foi estabelecido na Constituição de 1988 (Moretti, Funcia e Ocké-Reis, 2021). Nesse contexto, o problema do SUS é frequentemente reduzido à falsa dicotomia financiamento versus gestão, e, definitivamente, sem recursos financeiros adicionais, não há como melhorar sua gestão.

Superadas as regras do atual regime fiscal, caso se queira melhorar as condições de saúde e assistência médica da população brasileira, é preciso debater um novo modelo de financiamento do SUS, bem como aumentar a participação do gasto federal nos próximos dez anos, priorizando a contratação de profissionais e gestores de saúde; a capacitação e expansão das unidades públicas de saúde da administração direta; e o fortalecimento das redes regionalizadas com ênfase no papel da atenção primária em saúde como principal porta de entrada e coordenadora do cuidado.

Foi, nesse sentido, que a ABrES preparou um documento preliminar, para discutir com as entidades da reforma sanitária, coordenada pelo seu vice-presidente Francisco Funcia, e que conta com a presença dos economistas Bruno Moretti, Carlos Ocké, Mariana Melo e Rodrigo Benevides, com o objetivo de conferir estabilidade ao gasto público federal em saúde no longo prazo, a partir da seguinte regra de piso: com base na despesa empenhada ou liquidada do último orçamento, repor a inflação do período anterior (IPCA), acrescida da taxa de crescimento da população idosa (proxy da transição demográfica) e de um fator de correção de iniquidade no acesso à saúde – garantindo que os valores federais aplicados em saúde cresceriam, no mínimo, a uma taxa relacionada à evolução real dos gastos tributários associados a despesas médicas no Imposto de Renda da Pessoa Física, verificada no passado, inclusive, de modo a considerar as demais pressões sobre o sistema (vazio assistencial, incorporação tecnológica etc.).

Para seu êxito é fundamental revogar a Emenda Constitucional 95, de um lado, aprovando medidas que tenham previsão constitucional para definir uma regra de piso menos sensível ao ciclo econômico, de outro, determinando o crescimento real per capita do gasto público federal em saúde, conferindo uma evolução sustentável no longo prazo. Para tanto, é preciso adotar uma regra acíclica para evitar queda do gasto público de saúde, quando há desaceleração da economia e a demanda por serviços de saúde tende a aumentar. Finalmente, parcela dos recursos adicionais para a saúde resultaria de uma reforma para ampliar a progressividade do sistema tributário, taxando renda, patrimônio e riqueza financeira, bem como revendo gastos tributários regressivos da saúde.

Além das mudanças estruturais que vigorariam a partir de 2024, a atual crise econômica, sanitária e social exige, para 2023, a previsão constitucional da ampliação emergencial de despesas com elevados efeitos multiplicadores e redistributivos, não computadas nas regras fiscais vigentes. Convém lembrar, o orçamento de 2023 será elaborado em 2022, sob o atual arcabouço fiscal, razão pela qual é necessária alteração à Constituição para viabilizar a flexibilização fiscal, autorizando gastos fora do teto, da regra de ouro e da meta de resultado primário. Os valores emergenciais, no caso da saúde, poderiam ser equivalentes ao montante previsto, nos termos da regra de piso proposta para 2024, caso ela já se aplicasse para o próximo exercício.

De modo geral, o foco em gastos sociais e investimentos públicos poderá aliviar os efeitos sociais da crise, bem como apoiar a retomada da economia, criando um círculo virtuoso, em que o próprio crescimento do PIB contribuirá para a sustentabilidade fiscal no médio e longo prazos.

Nos planos teórico e empírico, o Brasil deve se alinhar à experiência internacional no campo das regras fiscais, rumando para um modelo mais flexível, que combine o financiamento de gastos estratégicos ao crescimento com inclusão social e sustentabilidade fiscal. Por exemplo, Orszag, Rubin e Stiglitz (2021) propõem um arcabouço alternativo à adoção de âncoras fiscais rígidas (top-down) – que impactam negativamente o orçamento, especialmente em momentos de crise. Entre os principais elementos dessa abordagem, constam: a) expansão dos estabilizadores automáticos, como a transferência de renda e seguro-desemprego, para fazer frente às incertezas e aos choques econômicos, evitando os efeitos prolongados das contrações; b) a criação de um novo estabilizador automático, referente aos investimentos em infraestrutura (especialmente os relacionados à sustentabilidade), mitigando o caráter pró-cíclico dos investimentos; c) o ajuste de forma automática à trajetória orçamentária de longo prazo dos principais componentes do gasto aos fatores que o condicionam, especialmente para a saúde.

Para os nossos propósitos, o mais relevante é inverter a lógica orçamentária atual, em que uma âncora fiscal estabelece previamente as restrições fiscais artificiais, às quais gastos como os de seguridade social devem se ajustar (no caso do teto, implicando, até 2036, redução da despesa como proporção do PIB e, portanto, dos serviços públicos). Em seu lugar, um regime moderno e flexível conferiria capacidade de ação ao Estado para induzir o crescimento inclusivo e financiar serviços públicos como os de saúde. Neste caso, o gasto público não apenas ampliaria seus efeitos redistributivos, como apoiaria a transição a um modelo baseado no consumo público (Kerstenetzky, 2016), com empregos de qualidade e que reduzam pressões ambientais, próprias do consumo privado.

Dentro deste novo padrão fiscal, despesas estratégicas se ajustariam automaticamente a seus fatores condicionantes, em linha com o anteriormente proposto, em que o gasto de saúde cresceria de acordo com os fatores estruturais de pressão sobre o SUS. O fundamental é que o orçamento tenha estabilidade no longo prazo, atenuando o impacto de regras pró-cíclicas e viabilizando o financiamento adequado do SUS.

Vale dizer, diferente do que é difundido pelo senso comum, não faltam recursos. Não apenas o Estado brasileiro deve contar com receitas tributárias, potencializadas pelo crescimento da economia e por uma reforma tributária progressiva, como, na baixa do ciclo econômico, é possível ao Estado brasileiro emitir dívida soberana, denominada em moeda local, garantindo a continuidade de gastos estratégicos. Ademais, o Tesouro conta com elevado saldo de recursos financeiros apurados em balanço (ativo do governo geral), que pode mitigar a exposição a pressões oriundas do mercado de títulos públicos.

Na prática, financiar parcela dos gastos adicionais com o uso de tais recursos implicaria ampliar os saques da Conta Única do Tesouro, criando liquidez no mercado interbancário e demandando o enxugamento do excesso de reservas pelo Banco Central, para que ele não perca o controle da taxa de juros de curto prazo.

Enfim, a ação integrada das autoridades fiscal e monetária confere ao governo brasileiro as condições de financiar um plano emergencial de combate à crise e instituir regime fiscal compatível com um modelo de crescimento inclusivo, baseado em mudanças produtivas, tecnológicas, sociais e ambientais para as quais o SUS tem papel central.

As restrições fiscais do Brasil têm caráter artificial e resultam de uma visão, inscrita no atual arcabouço fiscal, cuja racionalidade é subtrair capacidade de ação estatal. Em outros termos, os atuais limites não são propriamente financeiros, mas políticos e cognitivos. É urgente superá-los, propondo uma nova concepção de regime fiscal apta a financiar os serviços públicos demandados pela população.

*Erika Aragão é economista e professora adjunta do Instituto de Saúde Coletiva (ISC-UFBA). Atualmente é presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde – ABrES.

 

Referências

KERSTENETZKY, C. L. Consumo social e crescimento redistributivo: notas para se pensar um modelo de crescimento para o Brasil. Revista de Economia Política, v. 3, n. 1 (142), p. 29-45,  2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rep/a/jZZp3KrkpSLSXLPLpkxPbNP/abstract/?lang=pt. Acesso em: 12 mar. 2022. 

MORETTI, B.; FUNCIA, F.R.; OCKÉ-REIS, C.O. Austeridade fiscal e captura do orçamento público no Brasil. Disponível em: https://fonacate.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Cadernos-Reforma-Administrativa-N.-28.pdf.  Acesso em: 28 mar. 2022.

ORSZAG, P. R.; RUBIN, R. E.; STIGLITZ, J. E. Fiscal resiliency in a deeply uncertain world: the role of semiautonomous discretion. Policy Brief No. 21-2. Peterson Institute for International Economics. Jan. 2021. Disponível em: https://www.piie.com/publications/policy-briefs/fiscal-resiliency-deeply-uncertain-world-role-semiautonomous-discretion. Acesso em: 5 fev. 2022. 

STUCKLER, D.; BASU, S. The body economic: why austerity kills. UK: Penguin; 2013.

 

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