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Novo modelo de financiamento para qual Atenção Primária à Saúde?

Áquilas Mendes e Leonardo Carnut*

Os autores no 8º Congresso Brasileiro de C. Sociais e Humanas em Saúde – 8º CBCSHS – Foto: Kio Lima / Abrasco

Por todos os ambientes de discussão sobre o SUS não se fala de outra coisa que não seja a proposta sobre o novo modelo de financiamento para a Atenção Primária à Saúde, que vem sendo divulgado pelo Ministério de Saúde por meio de apresentações em “power point”, especialmente a partir de setembro desse ano [1,2]. Como já nos deparamos à duas apresentações realizadas desses ‘slides’ e as analisamos, temos plena condições de discutir esse novo modelo, assim como quem ‘assiste à um filme algumas vezes e pode tecer a sua crítica’.

A pergunta que não deixa de ser importante elaborar é: novo modelo de financiamento para uma ‘nova’ ou ‘antiga’ Atenção Primária à Saúde (APS)? Como desdobramento desta indagação, qual concepção de atenção primária está sendo anunciada pelo Ministério da Saúde?

O conceito principal dessa proposta, anunciado pelo Ministério da Saúde, nos primeiros ‘slides’ das suas apresentações, refere-se à um financiamento direcionado à ‘pessoa’ cadastrada na Unidade de Saúde da Família. Na realidade, busca-se a valorização da ‘pessoa’ (indivíduo), identificando a ‘pessoa’ mais pobre, isto é, diferenciando cada indivíduo, principalmente, pela sua condição socioeconômica vulnerável. Relaciona-se essa prioridade a ideia de alcançar maior eficiência dos serviços, focalizando. Não se invoca o coletivo, a população em geral, como os princípios de um Sistema universal de saúde exigem (universalidade do acesso). Ao contrário, e sob um termo capcioso, já amplamente anunciado pelos arautos do capital na saúde internacional, convoca-se a ‘Cobertura Universal da Saúde – (CUS), sob o seguinte argumento: como os recursos são escassos, deve-se garantir cobertura universal da saúde para populações específicas, as mais ‘pobres’[3]. Essa é a questão conceitual chave da nova proposta de financiamento.

Entende-se que essa concepção de Atenção Primária à Saúde anunciada é restrita. Insiste-se na flexibilização da forma como a APS deve ser operacionalizada, limitando-se a um caráter residual (individual) e assistencialista que não assegura em toda sua amplitude as diversas atividades preconizadas para uma APS, de acordo com a idealizada em seus documentos iniciais[4]. Esta concepção vem no bojo do processo de aprofundamento da privatização da saúde no País, num contexto de restrição de direitos sociais pelos governos federais, desde o golpe de 2016 e intensificado pelo governo Bolsonaro, diametralmente oposto à possibilidade de consolidar a APS como um potente ordenador do sistema de saúde, concretizando os princípios de universalidade, integralidade e equidade do SUS.

Sob essa visão restrita de Atenção Primária à Saúde que adota o governo federal, compreende-se que não se deve analisar o novo financiamento da APS sem perder de vista o conjunto de medidas que vem sendo anunciadas nesse campo: a Medida Provisória n. 890, que cria a Agência para o Desenvolvimento da APS (ADAPS), com atribuição de prestação direta da APS por meio da contratação de prestadores privados, o Programa Médicos pelo Brasil, que rompe com a exigência de residência médica e a Consulta pública para carteira de serviços da APS, com a definição da proposta da lista de serviços básicos para a construção de uma classificação taxonômica preliminar padronizada. Principalmente, essa carteira de serviços, uma lista com rol de procedimentos e o número de ‘pessoas’ cadastradas a cobrir pelas unidades de saúde (pagamento por capitação, como veremos com o novo financiamento) constituem instrumentos necessários para o estabelecimento de contratos com qualquer prestador, seja público ou, especialmente, privado, como prefere a proposta desse governo. Todas essas medidas se alinham à concepção ‘mercantilizada’ do SUS que vem sendo preconizada pelo governo, principalmente declarada quando os dirigentes do MS pronunciam, em reuniões públicas, que a “universalidade é coisa do século XX”, portanto “ultrapassada”.

Não abordaremos todas essas medidas nesse texto, o que exigiria muito espaço para discussão. Nos limitaremos a examinar o sentido da proposta de financiamento da APS.

1 – Motivações do ‘Novo financiamento da APS’
Na exposição de motivos para a reforma do atual mecanismo de transferências federais da atenção primária, o governo federal apresenta cinco objetivos: a) estimular o aumento da cobertura (cadastro) da APS, principalmente entre as populações vulneráveis; b) ressaltar resultados em saúde da população, por meio da valorização do desempenho; c) incentivar avanços na capacidade instalada, organização dos serviços de APS e ações de promoção e prevenção; d) enfrentar a dificuldade de fixação de profissionais; e f) estar em conformidade com a Lei Complementar nº141/2012. Alguns desses objetivos merecem comentários.

É perceptível que o novo modelo de financiamento prioriza a lógica de valorizar maiores recursos financeiros para a ampliação operacional do SUS, por meio de uma atenção associada ao cadastramento dos ‘indivíduos’ mais pobres, diferenciando-os dos cidadãos como um todo. Em termos claros, uma nova focalização (neofocalização), ideia já bem difundida e insistentemente repetida toda vez em que o argumento da “eficiência” reemerge. Os ‘resultados em saúde’ (para o governo, basicamente: ‘número de consultas’), também já bastante discutidos em diversos textos da literatura sanitária[5,6], não são ‘resultados’ esperados dos serviços de saúde em termos epidemiológicos, portanto, repetindo: não são resultados. São apenas ‘processos’ e que tem baixíssimo impacto na capacidade de garantir saúde às populações, além, desses indicadores privilegiarem a ação individual em detrimento das coletivas.

Como se não bastasse esse problema de mensuração em si mesmo, adiciona-se a requentada pauta do ‘desempenho’ que, em última instância visa, por esses indicadores de processo, condicionar o comportamento produtivo dos profissionais de saúde. É essencial lembrar que a lógica de organizar os serviços em função do desempenho é, sempre, garantir uma ‘recompensa’ financeira para quem atinge uma meta atribuída, na maioria das vezes de forma arbitrária (portanto, pouco participativa). A lógica do desempenho visa, ainda, gerar um controle interno do profissional à busca individual pelo alcance da meta, e, claro, não há forma mais convincente de fazê-lo do que ajustar uma remuneração variável ao seu salário em função deste desempenho.

No que tange a capacidade instalada dos serviços, é mais uma vez, a cansada ideia de incentivar as regiões de saúde mais desenvolvidas (‘ilhas de excelência’) deixando-se à míngua as regiões de difícil acesso, os sistemas loco-regionais com pouca capacidade instalada (que escoa muitos pacientes de média e alta complexidade para os grandes centros) e ainda, não desenvolvendo os vazios assistenciais, importantíssimos no que se refere a economia de escala. Afinal, na tensão entre escala e acesso, o acesso sempre deve ser a prioridade.

Ainda, referente a organização da APS e os incentivos às ações de promoção e prevenção, mais uma vez, há o reforço das ações restritas à prestação direta de serviços (academia da saúde e programa saúde na escola). Mesmo considerando a importância destas duas ações, restringe-se, mais uma vez, às ações de prevenção e de promoção, esquecendo-se das mais potentes que são às ações de vigilância em saúde nos territórios. A Atenção Básica à Saúde (nomenclatura que devemos defender) não se restringe às ações realizadas pelas unidades básicas de saúde (ou ainda estratégias de saúde da família). Contudo, esse entendimento tacanho vem se perpetuando, não de agora, mas sempre prejudicando a sinergia entre as ações de atenção.

No que se refere ao enfrentamento das dificuldades de fixação de profissionais, de fato, esse é um tema espinhoso, e que, quaisquer medidas requerem articulações políticas cautelosas com as categorias profissionais especialmente a médica. Na proposta, ‘a formação e residência médica e multiprofissional’ nas regiões de baixa densidade de médicos requer muito mais que incentivos (que certamente, aumentará ainda mais a disparidade salarial entre os profissionais das equipes). Raramente se ‘toca na ferida’ e reconhecem que o incentivo federal não deve ser usado para pagar a folha de pessoal, sendo necessária a articulação de diversos elementos que envolvem: a formação de profissionais de saúde, a carreira SUS, a valorização através de concurso público e plano de carreiras, afora o enfrentamento necessário à alocação de recursos financeiros em saúde por ‘necessidade de saúde’ (e não ‘necessidade de profissionais de saúde’).

Por fim, a argumentação que o novo modelo de financiamento busca estar em sintonia com a lei 141 não é plausível. Isso porque o rateio de recursos, estabelecido pela Lei 141/2012, constitui novidade na trajetória histórica das formas de distribuição de recursos para os entes estaduais e municipais, à medida que considera especialmente o critério de “necessidades de saúde” da população, medidas pelas dimensões demográfica, socioeconômica, epidemiológica e geográfica (art.17). O texto da lei se refere às necessidades de saúde da população como um todo e não apenas aquela cadastrada, em destaque para à mais vulnerável, como justifica o novo modelo. Além disso, é importante mencionar que a proposta da Lei 141 está voltada para uma lógica de repasse global, envolvendo uma alocação de recursos que contemple todos os níveis de atenção à saúde e não apenas o foco em um nível de atenção à saúde, como a primária. Portanto, esse novo modelo de financiamento não atende de forma plena o preconizado pela lei, ele se distancia. Na realidade, cabe lembrar que, mesmo depois de 7 anos de edição da Lei 141, não houve governo que tenha adotado seus critérios de rateio, isto é, sua concepção geral de uma alocação baseada em necessidade de saúde da população em geral.

De forma geral, as motivações do novo modelo de financiamento, também, estão muito alinhadas às propostas do Banco Mundial, especialmente, descritas em documento recente intitulado “Propostas de Reformas do Sistema Único de Saúde Brasileiro”[7]. Neste documento fica evidente, entre as várias recomendações, a expansão e fortalecimento à cobertura da APS, principal nível de atenção por meio da definição de um pacote de benefícios a ser coberto pelo SUS, de forma a valorizar a eficiência do sistema, racionalizando os recursos direcionados aos pobres. Tudo isso está incluído nas Recomendações específicas apresentadas pelo Banco Mundial neste documento, especificamente as Recomendação 3, 5, 6, 8 e 9.

2 – Componentes do ‘Novo financiamento da APS’
O novo modelo define a combinação de um conjunto de critérios, agrupados em quatro componentes: 1) capitação ponderada, 2) pagamento por desempenho 3) incentivos a programas específicos / estratégicos, e 4) provimento de profissionais.

Em relação ao componente 1 – ‘capitação ponderada’, propõe-se que o recurso federal a ser transferido seja ponderado pela ‘pessoa’ cadastrada na equipe de saúde da família e atenção primária credenciadas, considerando a sua ‘vulnerabilidade socioeconômica’. Para tanto, assume-se que essa vulnerabilidade deve considerar a proporção de pessoas cadastradas no e-SUS nas Equipes de Saúde da Família (ESF) e que recebam benefício financeiro do Programa Bolsa Família (PBF), Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários-mínimos. A partir daí são aplicados dois ajustes nessa forma de transferência: a) o ajuste demográfico, ajustado por faixa etária com maiores necessidades e gastos de saúde, sendo repassados valores superiores para pessoas cadastradas nas ESF com até 5 anos e a partir de 65 anos de idade; e b) o ajuste do tamanho e distância municipal, classificando os municípios de acordo com a tipologia rural-urbana definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em cinco modalidades: urbano, intermediário-adjacente, rural adjacente, intermediário remoto, rural remoto.

Comentário:
Esse componente ‘capitação ponderada’ corresponderá, sozinho, por 43% do orçamento da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do MS para 2020 repassado pelo novo modelo, conforme anunciado nas apresentações do MS. Esse componente substituirá os recursos atualmente recebidos pelo PAB Fixo, equipes de saúde da família, núcleos ampliados de saúde da família (NASF) e gerentes. De forma direta, ficará decretado o término do PAB Fixo (per capita), que não é vinculado a adesão a programas ou ao cumprimento de metas, o término do pagamento por equipe de saúde da família, um dos principais componentes do PAB Variável, e o término do pagamento por equipe de núcleo ampliado de saúde da família. Adota-se o pagamento central por pessoa cadastrada na APS, conforme vulnerabilidade socioeconômica, a partir de critérios de transferências monetárias para os que recebem o Bolsa Família, BPC e os benefícios previdenciários que recebam até dois salários mínimos. Reconhecemos que a ‘o novo’ modelo será para transferir recursos para uma atenção primária centrada na atenção aos mais pobres, valor essencial de uma concepção neoliberal, que prioriza a eficiência econômica na alocação dos recursos focalizados, ou seja, um ‘SUS para os pobres’. De certa forma, elimina-se a lógica de transferências de um per capita baseado no conjunto da população do município, rompendo o vínculo com o território – população. Neste sentido, dificulta-se o fortalecimento das visitas domiciliares, prejudicando a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde, principalmente pela ausência de recursos globais direcionado à Atenção primária nos municípios.

Nesta perspectiva, ao se centrar na ‘pessoa’ cadastrada não se adota uma proxy de necessidades que permita dimensionar desigualdades relativas entre condições demográficas, epidemiológicas, socioeconômicas e geográficas das populações, como um todo, dos distintos municípios brasileiros, conforme preconiza a Lei 141. Entendemos que o atendimento às necessidades de saúde deve ser a base do rateio, incorporando, no processo de alocação, as necessidades das distintas classes sociais presentes num território específico e orientando a política pública de saúde no sentido do direito universal.

Ainda, cabe ressaltar a perda de recursos que os municípios terão com essa nova proposta, conforme indicado pelo estudo do Cosems/RJ[8] que realizou na análise do componente ‘capitação ponderada’. Nesse estudo, ficou identificado que 78 municípios, que totalizam 98,3% da população do estado do Rio de Janeiro, perderiam recursos, correspondendo a uma diminuição de cerca de R$ 417 milhões, sendo 62,9% do recurso recebido pelo conjunto desses municípios em 2018, incluindo a somatória do PAB fixo, do custeio ESF e do NASF. Essa situação passa a ser inaceitável num contexto da crise do capitalismo que estamos vivenciando e que assistimos, no âmbito do SUS, uma passagem do subfinanciamento histórico para um processo de desfinanciamento promovido pela Emenda Constitucional n. 95. Os efeitos deletérios dessa EC, desde sua implantação em 2017, apontam um quadro em que o piso federal do SUS totalizará em 2020 perdas acumuladas em R$ 29,0 bilhões (a preços de 2019)[9].

É importante frisar que, neste novo modelo de financiamento, 57% dos valores repassados (segundo a versão ministerial) serão para os outros 3 componentes. Estes componentes irão variar se a APS fizer os seguintes ‘deveres de casa’:

No que tange ao componente 2 – pagamento por desempenho. O município deve alcançar os seguintes ‘indicadores de desempenho’: a) indicadores selecionados com base na relevância clínica e epidemiológica, b) indicadores de processo e resultados intermediários das ESF, c) indicadores de resultados em saúde, d) indicadores globais de APS, e) indicadores de monitoramento quadrimestral (junto aos demais instrumentos de gestão do SUS).

Comentário:
Ora, não há transparência na discussão referente aos indicadores relacionados à essa mensuração dos resultados e, claro, muito menos sobre os parâmetros sobre o desempenho. É sabido que, quando se trata de discussões sobre o desempenho e suas formas de incentivo financeiro, uma forma de fazer o condicionamento ao mais-trabalho funcionar efetivamente é usar a ideia da ‘métrica’, ou seja, mesmo se o desempenho não for alcançado (de uma maneira geral ele é atribuído para não ser alcançado), uma fração de recursos em função da defasagem é repassada. Isto fica evidente quando, na proposta, os responsáveis apontam que “valores ponderados correspondentes à dificuldade de alcance do indicador” serão repassados, através de “metas graduais que consideram o estágio atual da equipe”.

É pertinente alertar que, a inspiração deste modelo advém prioritariamente, da proposta de alocação de recursos desenvolvida no sistema de saúde inglês[10], aperfeiçoado por mais de 40 anos, conhecido como Resource Allocation Working Party (RAWP). Essas medidas elaboradas pelo novo modelo de financiamento da APS no SUS, desconsidera o histórico de aperfeiçoamento desta medida e foca nas implementações finais ocorridas na Inglaterra a partir de 2008 com a ‘alocação de recursos baseada em pessoas’ com pagamentos de captação individual por idade e sexo, e ajustando-os a outros indicadores disponíveis sobre recebimento auxílios ou de diagnóstico prévio de doenças.

É importante atentar que os estudos relativos ao RAWP e sua adaptabilidade a outros contextos, conforme Porto et al[11] e Mendes et al[12], já apontavam limitações importantes como, por exemplo, a característica das desigualdades no Brasil. Além disso, é prudente salientar que o processo de ‘refino’ da equidade apresentado no desenvolvimento desta metodologia tem mais ligação com a incorporação de elementos de mercado no sistema inglês do que, necessariamente, com a preocupação de delimitar melhor a vulnerabilidade dos grupos sociais, focando-se nos indivíduos, e portanto, trabalhando com a ‘priorização’ e não com a ‘equidade’!

No que diz respeito ao componente 3 – ‘Incentivos a ações específicas e estratégicas’, a proposta mantém a lógica de transferências de recursos federais a programas incentivados pelo MS, adotada desde a Nob/96, por meio do PAB Variável. Vale destacar que a proposta chama atenção para programas prioritários como Programa Saúde na Hora, Informatização e formação e residência médica e multiprofissional, além dos programas para a Saúde Bucal, Promoção da Saúde (saúde na escola e academia de saúde) e especificidades (consultório na Rua, equipes ribeirinhas UBS fluviais etc).

Comentário:
Ainda se mantém a vinculação das transferências federais a programas específicos, mantendo o MS como agente definidor da política de saúde no território nacional. Portanto, ratifica-se a lógica fragmentada de pensar a atenção primária. O governo federal continuará inventando uma política e exigindo que os municípios e estados a adotem, recebendo assim incentivos financeiros. No caso do novo modelo, destaque é atribuído ao programa Saúde na Hora, repassando incentivos para a valorização da expansão do horário das Unidades de Saúde da Família que funcionarem 60 ou 75h, com pelo menos 11h ininterruptas e com possibilidade de funcionar aos finais de semana. Nada se comenta sobre a melhoria das condições do trabalhador de saúde, em destaque a remuneração e carreira. Parece que a aposta do novo modelo premiará a intensificação da superexploração da força de trabalho em saúde.

Sobre o componente 4 – Provimento de Profissionais, o novo modelo diz que o município é a base para o ‘provimento profissional’ de seus serviços.

Comentário:
Nesta esteira, o município deverá contar com o ‘Programa Médicos pelo Brasil’ (PMB) preconizado pela Medida Provisória n° 890/2019. Há diversas críticas a esse programa, dentre as mais frequentes está a possibilidade dos médicos não necessitarem ser especialistas na área de “Medicina de Família e Comunidade” (MFC) e serem contratados por uma agência específica em regime CLT, ou seja, uma via de agenciamento centralizada e vertical, sob a égide do Direito Privado[13]. No que se refere à equidade de alocação de recursos, a proposta não está clara, mas subtende-se que, ao destinar mais recursos aos municípios estratificados por dificuldade de fixação regional de médicos (munícipios tipo: ‘intermediário remoto’ e ‘rural remoto’) seria uma forma de alocação ‘equitativa’ do recurso. Contudo, é necessário esclarecer que este tipo de alocação figura iníqua já que é sabido que a grande dificuldade do financiamento (e portanto, da expansão da APS) se dá nos municípios de grande porte (grandes centros urbanos). A fixação dos profissionais em regiões remotas centra mais uma vez o financiamento na presença do médico (já tão combatido em gestões anteriores que atrelavam a transferência de recursos em função da presença deste profissional) e ainda, desta vez, repete-se essa insígnia.

Ainda, nesta proposta se diz que a ‘Formação em Medicina de Família em larga escala e com qualidade’ será priorizada, contudo isto aparece sem maiores explicações. Contrassensos à parte (em função do que já foi explicitado sobre o PMB), parece estranho considerar essa valorização a medida que não há proposta concreta. Ademais, o pagamento por desempenho com mesmos indicadores do novo modelo de financiamento, também exigidos nos termos de dificuldades de fixação parece desconsiderar as especificidades em relação à fixação de profissionais no que tange à rotatividade, permanência nas horas devidas, sem contatar com a construção de vínculos e responsabilização sanitária.

Sobre os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), há a promessa do aumento do piso previsto em lei, contudo, nada mais se fala sobre o assunto. Mas ao que parece, o tema tem assento na proposta de federalização desta categoria profissional que ja vem sendo discutida no âmbito do congresso nacional. O principal argumento levantado tem sido a necessidade trazer ‘segurança jurídica’ (semelhante ao caso do Decreto n. 7508/2011) para os servidores em contrato precário de trabalho. Esta proposta de federalização, além de ser uma tentativa de centralização e verticalização, pode ser o caminho que pavimenta a flexibilização dos vínculos (via CLT), muito semelhante ao que se pretende ao caso PMB.

De tudo que que comentamos, cabe um alerta. Não nos precipitemos em aceitar que o novo modelo de financiamento à Atenção Primária à Saúde se refere à ‘importante iniciativa’ e à uma ‘proposta bem fundamentada’, como alguns gestores podem se apressar a dizer. A cautela é essencial para a ‘saúde’ do SUS. Necessitamos de muita discussão e debate para termos muito claro o sentido e significado desse novo modelo. Será novo?

*Áquilas Mendes é Professor Dr. Livre-Docente de Economia Política da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da PUC-SP; Leonardo Carnut é Professor Adjunto do Centro de Desenvolvimento de Ensino Superior em Saúde (Cedess) da Unifesp. Publicado originalmente na coluna Domingueira Nº 36 – Outubro 2019, do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA. 

 

Referências

1. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Atenção primária à saúde: novo financiamento. Apresentação em “power point” de Daniela de Carvalho Ribeiro da Coordenação Geral de Financiamento da APS. 12 de setembro de 2019.

2. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Novo modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde. Apresentação em “power point” de Erno Harzheim, secretário de Atenção Primária à Saúde. 18 de outubro de 2019.

3. Marques RM, Mendes A. O financiamento do Sistema Único de Saúde e as diretrizes do Banco Mundial. In: Pereira JM, Pronko M. A demolição de direitos: um exame das políticas do Banco Mundial para a educação e a saúde (1980-2013). Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2014, p. -293.


4. Mendes A, Carnut L, Guerra LDS. Reflexões acerca do financiamento federal da Atenção Básica no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, v. 42, p. 224-243, 2018.


5. Carnut L, Narvai PC. Avaliação de desempenho de sistemas de saúde e gerencialismo na gestão pública brasileira. Saude soc. 2016; 25(2):290-305.


6. Carnut L, Mendes A. Capital-Estado na crise contemporânea: o gerencialismo na saúde pública. Argumentum (Vitória). 2018; 10(2):108-121.


7. Banco Mundial. BIRD/AID. (02 de 07 de 2019). Propostas de Reformas do Sistema Único de Saúde Brasileiro. 2019 Disponível em: http://pubdocs.worldbank.org/en/545231536093524589/Propostas-de-Reformas-doSUS.pdf . Acesso em: 2/07/2019.


8. Cosems. Rio de Janeiro. Análise da proposta de mudança na modalidade de transferência de recursos para Atenção Primária à Saúde apresentada pelo Ministério da Saúde. Documento para discussão, outubro de 2019. Disponível em: http://www.cosemsrj.org.br/proposta-do-ministerio-da-saude-de-mudanca-na-modalidade-de-transferencia-de-recursos-para-a-atencao-primaria-a-saude/ Acesso em: 18/10/2019.


9. Funcia F. Projeto de lei orçamentária 2020 da união: a combinação da EC 95 com a política econômica de Guedes faz muito mal para a saúde (1ª Parte). Domingueira da Saúde, n.32, setembro de 2019. Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-32-setembro-2019. Acesso em 14/10/2019.


10. Smith PC. Resource allocation and purchasing in the health sector: the English experience. Bull World Health Organ. 2008; 86(11): 884-8.


11. Porto S, Martins M, Travassos C, Viacava F. Avaliação de uma metodologia de alocação de recursos financeiros no setor saúde para aplicação no Brasil. Cadernos de Saúde Pública. 2007; 23(6): 1393-1404.


12. Mendes A, Leite MG, Marques RM. Discutindo uma metodologia para a alocação equitativa de recursos federais para o Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade. 2011; v. 20, n. 3, p. 673-690.


13. Miranda, AS. “Médicos pelo Brasil”: simulacro reciclado e agenciamento empresarial, 2019. Disponível em: https://abrasco.org.br/outras-noticias/sistemas-de-saude/medicos_brasil__bolsonaro_alcides_miranda/42108/ . Acesso em: 20, out. 2019.

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