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A nudez do sanitarista: Castiel critica cultura neoliberal dos riscos na saúde

Glauber Tiburtino, cobertura colaborativa Abrasco*

Com senso crítico apurado, humor ácido, tiradas cômicas e os inconfundíveis trocadilhos, Luis David Castiel prendeu a atenção da plateia que compareceu ao auditório David Capistrano na manhã de 29 de julho, no último dia do 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva – Abrascão 2018. Na palestra “O sanitarista está nu? Racionalidade neoliberal e o cinismo em saúde”, o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) misturou irreverência e erudição em uma consistente crítica social às práticas capitalistas incorporadas em discursos reproduzidos pela ciência e até mesmo pelo próprio campo da Saúde Coletiva, como o da autogestão dos riscos. “Nos dias de hoje, há uma racionalidade neoliberal econômica e científica usada até na Saúde Coletiva”.

A mediação ficou por conta do médico sanitarista Reinaldo Guimarães, que apresentou Castiel como um “ponto fora da curva” por fugir do chamado “efeito de manada” e trazer um olhar crítico onde muitos outros convergem. “Nós do campo da Saúde Coletiva estamos acostumados a fazer a crítica, mas ele esmiúça esse fazer, questiona o porquê fazer, como fazer e como não fazer. É uma trajetória rara, um intelectual a contrapelo”, completou Guimarães expressando sua admiração. Ao assumir o microfone, o palestrante brincou com a referência feita e disse se enxergar como “curva fora do ponto”, o que segundo ele causa acidentes por compartilhar certos estranhamentos pelo modo de observar o mundo. Em pouco mais de 40 minutos, a sessão convidou os congressistas a repensarem hábitos tradicionais de vida e fórmulas sociais consagradas pelo pensamento hegemônico.

Dividida em duas partes, a apresentação foi aberta com um trocadilho envolvendo o nome do Congresso e o ditado popular ‘o pão que o diabo amassou’, surgindo a expressão “Abras-cão que o diabo amasse”, da qual o pesquisador teceu sua primeira análise. “Descobri que um dos sentidos de Abra é do francês havre, que é baía, enseda, angra, com sentido figurado de refúgio, proteção, abrigo. Minha pergunta é o quanto que a Abrasco ainda vai conseguir – diante dos ventos, terremotos e furacões – funcionar como abrigo? Ou quantos ‘Abrascães’ resistirão às pressões?”, questionou, fazendo referência aos desmontes sistemáticos do SUS e à conjuntura de crise político-social que o país atravessa.

Para completar o trocadilho, a segunda análise foi com base na outra parte da expressão e desmembrada em ‘cão do inferno’, traduzida em seguida na figura mitológica do Cérberus, guardião do mundo dos mortos. Expondo diversas imagens desse mito-fera difundidas na nossa sociedade, como ilustrações da Divina Comédia, de Dante Alighieri, até desenhos da Disney, Castiel expressou a forma como a indústria neoliberal se expande e enraíza, demonstrando que Cérbero também é marca de vários itens de consumo e serviços, como cervejas, consultoria financeira e suplementos vitamínicos. Esse último, ideal “para quem quer se cuidar e fazer aquelas coisas que são preconizadas para as pessoas terem saúde, mas sobretudo terem abdômen tanquinho. Eu faço apologia do abdômen baldinho ou abdômen bacia, que acho menos trabalhoso que o tanquinho”, ironizou, arrancando risos da plateia e dando pistas sobre a mensagem que pretendia deixar.

Ainda construindo sua crítica em relação à hegemonia do discurso capitalista, Castiel citou a obra belga “A feitiçaria capitalista”, da filósofa da ciência Isabelle Stengers e do médico Philippe Pignarre, que narra as estratégias infernais das políticas neoliberais. “Vivemos em um horror econômico, mas só contestar o capitalismo não adianta, porque se adiantasse ele já teria desaparecido. Os autores chamam de capitalismo este sistema que nos domina através de alternativas infernais, do tipo: Se você solicitar direitos adicionais, um aumento de salário, manutenção de previdência social, significa ser a favor da inflação e desemprego? Aí as pessoas são colocadas em certos dilemas e se veem em circunstâncias de endossar certas estratégias infernais, porque caso elas não sucedam, não teríamos escapatória. Como competir com isso?”, refletiu.

A partir desse ponto, o pesquisador iniciou a segunda parte de sua apresentação, dedicada ao cinismo. Ele apresentou a origem dessa palavra latina – cynismus. “O termo permite fazer referência à insolência, ao descaramento e à falta de vergonha na hora de mentir ou de defender ações que são condenáveis”. E completou: “a palavra tem uma origem etimológica referida a cão. Mas o cão é uma coisa fofa, que as pessoas têm, se apaixonam. Minha questão é o cão como alguém que faz o que quiser na rua, como defecar. Os filósofos do cinismo achavam que o modo que o humano deveria viver era exatamente assim”.

A geração de demandas propostas pela publicidade foi criticada e traduzida como uma dessas formas contemporâneas de expressão do cinismo. “O neoliberalismo tem uma proposta altamente cínica, sobretudo em suas dimensões gerenciais, em que a lógica do mercado invade casa adentro quando, por exemplo, nossos netos ou filhos querem escolher certos produtos porque vão ficar terrivelmente infelizes se não os possuírem, já que seus amigos os possuem”. O pesquisador seguiu seu raciocínio exemplificando outras formas de apropriação do social pelo mercadológico, como o capitalismo socialmente responsável, o capitalismo sustentável e o que chamou de capitalismo com a face humana.

A cultura do risco como camisa de força: Castiel convidou à reflexão sobre o enraizamento do discurso neoliberal nas práticas de saúde pautadas pela responsabilização individual do autocuidado e pela medicalização dos riscos. “Tem que se pensar, qual é a gestão de riscos que faremos. Ela deve ser pensada pela Saúde Coletiva. Não quero abrir mão de fazermos gestão de risco, mas o problema é que ela começa, por vezes, a tomar uma conotação de autocontrole, autodisciplina de uma certa autotirania e que nós não damos conta. Não seguramos a onda. Afinal, a gente não é só consciência”.

Sob essa lógica, segundo ele, “estamos cada vez mais moralistas e vemos cada vez mais fundamentalismo [com base em um pensamento dicotômico do certo e do errado]. A vida é uma perpétua gestão de risco. Menos um pouco, talvez, no fim de semana. E mesmo se alguém quer ter algum prazer, ele precisa ser controlado. Sem excesso, com moderação” versou ele sobre a cultura prescritiva mediada pelos experts, sejam eles médicos, nutricionistas ou o próprio indivíduo do Século XXI. “A essência da gestão de risco consiste em três passos, um não faça nada de errado hoje. Dois, não faça nada de errado manhã. Três, repita”, listou.

Para o pesquisador, a lógica baseada em evidências, taxas biomédicas e manuais prescritivos seriam uma espécie de camisa de força. Castiel critica a lógica exacerbada do controle de risco que cria as definições prévias de sofrimento e privações, como o pré-diabético, pré-hipertenso e o pré-obeso levando as pessoas a mudarem hábitos e passarem a agir como se estivesse doentes, mesmo sem estar, muitas vezes até de forma medicalizada.

Ao adotar e incorporar essa lógica discursiva de maneira menos crítica, os sanitaristas acabam sendo de certa forma ludibriados pela hegemonia neoliberal, tal qual o Rei do traje invisível, personagem do conto do dinamarquês  Hans Christian Andersen. E essa poderia ser a nudez do sanitarista. A explicação é uma possível interpretação para a metáfora que nomeou a palestra, uma vez que em se tratando de Luis David Castiel, nada é corriqueiro ou pré-estabelecido. “Eu vou deixar umas coisas meio enigmáticas para vocês pensarem”, advertiu ainda no início.

Ao concluir a palestra,Castiel  brincou com o cinismo do mercado para fazer uma propaganda irônica de seu novo livro, “À procura de um mundo melhor – Apontamentos sobre o cinismo em saúde”, assinado também por Caco Xavier e Danielle Ribeiro de Moraes, como fórmula para superar as mazelas sociais descritas em sua apresentação, arrancando risadas, suspiros e aplausos ao fim.

“As palestras do Castiel precisam de um tempo para serem processadas. Vamos pensando em tudo o que tivemos o prazer de ouvir nesta manhã”, encerrou Guimarães saudando novamente o palestrante e sua forma peculiar de enxergar o mundo, enquanto a fila dos cumprimentos ao palestrante se formava à frente do palco. Em meio a tantas dúvidas e provocações lançadas por Castiel na manhã de domingo, os congressistas deixaram o local com uma certeza em mente: vale a pena repensar o óbvio.

*Glauber Tiburtino é estudante do Programa de Pós-Graduação de Comunicação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/ICICT/Fiocruz) e está no projeto de cobertura colaborativa para o Abrascão 2018 – Edição: Bruno C. Dias

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