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O aparente dilema implicado pela pandemia da COVID-19: salvar vidas ou a economia?

Foto: Frente de Mobilização da Maré

Confira mais um artigo sobre bioética publicado no Observatório Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, debatendo questões relevantes sobre o contexto da pandemia de Covid-19. Neste artigo, os autores, que em grande parte compõem o GT de Bioética da Abrasco também, apontam “que o problema entre salvar vidas ou a economia é um falso dilema, pois o isolamento das populações pode ser visto, sobretudo, como um ato de responsabilidade”. Além disso, apontam a necessidade de medidas como a renda básica para os que vivem em situação de vulnerabilidade.

O conjunto dessas produções tem sido liderados por Sergio Rego, pesquisador da ENSP/Fiocruz e coordenador do Grupo Temático Bioética da Abrasco, e estarão também disponíveis na área do GT em nosso portal.

O aparente dilema implicado pela pandemia da COVID-19: salvar vidas ou a economia?

(Schramm, Borges, Fortes, Gomes, Marinho, Narciso, Palácios, Rego, Santos, Siqueira-Batista, Thomé, 2020)

A pandemia do novo coronavírus pode ser vista como uma situação trágica se considerarmos que “tendemos a recusar fatos negativos e repugnantes, cujo impacto sobre nós é tão perturbador que nos leva a negar a realidade”1. Pode ser vista também como um dilema no qual a humanidade teria que enfrentar a alternativa entre escolher a vida e suas qualidades ou a economia e a produção, o que constitui, aparentemente, uma escolha impossível pois a qualidade de vida implica sua sustentabilidade pela produção de bens e serviços e a produção precisa de consumidores de tais bens. Por isso, a solução atualmente vigente consiste em salvar vidas e sustentar os serviços sanitários graças ao confinamento geral da população ou, pelo menos, das populações consideradas mais vulneráveis.

De fato, a maioria dos Estados tem e adotado a estratégia do confinamento (que pode ser vista como um “remédio”) – cujo lema difuso é “fiquem em casa” -, pois esta escolha parece funcionar, sendo que a maioria dos profissionais de saúde (como os médicos) parece defender sua prorrogação até que o número de casos não ultrapasse a capacidade de oferta de cuidado dos sistemas de saúde. Entretanto, a produção de bens dos Estados envolvidos parece estar minguando, o desemprego aumentando e os salários diminuindo. Com efeito, parece que a escolha tem sido optar, por enquanto, e prioritariamente, pela saúde pública, deixando a economia na expectativa. Escolha compartilhada até por alguns bancos, como é o caso do Crédit Suisse, cujo presidente no Brasil afirmou em 4/4/2020 que “pagar a conta da pandemia fica para depois” e que “o grande objetivo” dos governos deve ser “garantir que a população mais vulnerável atravesse a crise”, sendo que o debate entre salvar vidas ou a economia “é um falso dilema”, visto que o Estado deve se endividar e prover recursos para “aqueles que mais precisam”, sabendo que permitir a infecção “em massa pode desorganizar completamente a economia e o sistema público de saúde”2.

Mas, de acordo com o debate virtual “E agora, Brasil?”, frente a um cenário adverso de recessão profunda e duradoura é “preciso fugir à tentação de transformar em permanentes os gastos emergenciais que a pandemia exige, mas superando as deficiências em matéria de saúde, saneamento e inclusão que ela escancara”, sendo que tal desafio extrapolaria “os limites da economia, exigindo transformações no próprio tecido social: empresas mais solidárias; uma classe política mais madura e aberta ao diálogo; um país menos desigual”, pois a pandemia “ressalta mazelas de um país desigual, com saneamento escasso e informalidade que abarca 40% dos trabalhadores, dificultando a implementação de medidas de socorro”, devendo-se destacar a necessidade de “muito diálogo e solidariedade”3.

De fato, pode-se razoavelmente sustentar que, no campo da saúde, há sempre mais necessidades que recursos, sendo que, por isso, muitos pacientes não recebem todos os cuidados de que precisam. Este é o caso, por exemplo, das UTIs, nas quais os profissionais responsáveis devem fazer escolhas em situações nas quais o conjunto das pessoas que precisam de terapia intensiva é maior que o de vagas disponíveis; ou seja, em que a escassez afeta esses julgamentos, fazendo com que a insuficiência de vagas torne os critérios de admissão mais rigorosos, sobretudo quando o que pode ser oferecido a cada um é condicionado pelo necessário para salvar o maior número de vidas. Por isso existem normas para ter acesso à UTI que em princípio devem evitar a alocação de leitos baseada apenas em ordem de chegada ou urgência, que nem sempre são os critérios mais corretos para orientar as decisões, evitando também o favorecimento a pessoas de determinada classe social ou grupo étnico-racial.

Com efeito, de acordo com a Resolução 2156/16 do CFM, que “estabelece os critérios de admissão e alta em unidades de terapia intensiva”, o critério para distribuir vagas é a “necessidade de suporte para as disfunções orgânicas e monitoração intensiva”4, levando em conta a necessidade de intervir no suporte à vida e a probabilidade de recuperação quando não houver limitações no suporte terapêutico, mas limitando ou suspendendo procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente incurável e em fase terminal. Ademais, em situações consideradas de “desastre”, a orientação é que se deve preferir aqueles pacientes para os quais “se prevê uma alta mais rápida”, o que em princípio “permite maior rotatividade na UTI e, consequentemente aumenta o número de pessoas que podem se beneficiar”5, o que não impede que, na prática, a decisão esteja, muitas vezes, influenciada por valores pessoais do agente, que podem ser vistos como não sendo republicanos.

Entretanto, devemos distinguir entre “negar acesso a um recurso devido à escassez” e “abandonar o cidadão”, sendo que “as atenções primária e secundária também precisam ser capazes de cuidar daqueles em situação menos grave para que não venham a necessitar de UTI, sem esquecer as medidas de prevenção”, que constituem “a melhor resposta para a pandemia.”6

De fato, pode-se dizer que o problema entre salvar vidas ou a economia é um falso dilema, pois o isolamento das populações pode ser visto, sobretudo, como “um ato de responsabilidade”7.

Também para o FMI e a OMS o suposto dilema entre salvar vidas e salvar empregos é falso e deve-se dar apoio financeiro prioritariamente aos mais necessitados. Podendo-se acrescentar a instauração de uma renda básica universal e de um imposto progressivo.

O país que parece enxergar a pandemia não como dilema é a China, pois, apesar de sua atual desaceleração econômica, as autoridades chinesas pretendem segurar a economia enquanto houver risco considerável à saúde pública, sendo que “os empregos perdidos serão recuperados mais à frente”; em suma, “a escolha da China é simples: saúde acima de tudo, porque um dos valores mais caros ao Partido Comunista é a ordem social”, sendo que “o papel do governo é proteger a vida das pessoas”8.

Voltando ao Brasil, para o líder indígena Ailton Krenak9, que considera que as autoridades que insistem que devemos retomar a rotina econômica em meio da pandemia a partir do pressuposto de que “a economia não pode parar”, para podermos, depois, voltar a uma suposta “normalidade”, erram, pois “voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando”, podendo se concluir que somente “governos burros acham que a economia não pode parar”. Perguntado sobre a mobilização social para ajudar populações vulneráveis, afirma que “devemos expandir o sentido de solidariedade” e “abandonar o antropocentrismo”, sendo que “o contágio pode se espalhar de forma muito mais fácil numa aldeia.”

Devemos também lembrar, como exemplo da precariedade vivenciada por parte da população, os moradores de favelas, cujas casas, não raro, têm muita gente, são pouco ventiladas e “quando tem luz, não tem água; quando tem água, não tem luz.” Nestas condições, o morador doente “não tem a opção de se isolar” e o risco de infectar a família é grande. Além disso, ele tem que trabalhar. Mas não devemos tampouco esquecer que os moradores da favela se deslocam para “dar expediente como porteiro, empregada doméstica, atendente de farmácia, caixa de supermercado”. Entretanto, apesar desses serviços prestados, tal cidadão “não recebe os cuidados que merece”, pois “a reivindicação por saneamento básico na Rocinha é feita há mais de 50 anos”. Assim sendo, pergunta a autora da entrevista, “dá para convencer uma pessoa a ficar dentro de casa sem água, sem luz, sem comida, sem trabalho? Como conscientizar essa gente?” E conclui “fica um discurso vazio”, pois “o governo sabe subir a favela para levar caveirões, mas se esquece da água e do esgoto.”10

Finalizando, fala-se muito que a COVID-19 estaria transformando o mundo, fortalecendo a solidariedade entre pessoas e organizações, mas, pelo menos no Brasil, os sinais mais fortes ainda são os do descaso com as populações vulneradas, que são as que tem menos condições de se proteger. Atuar prioritariamente na proteção dos mais desamparados poderia ser uma esperança de mudança para o nosso país.

Autores:

Fermin Roland Schramm – Ensp/Fiocruz, PPGBIOS. Contato: rolandschram@yahoo.com.br

Luna Borges – UnB, IPPF

Pablo Fortes – Ensp/Fiocruz, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco

Andreia Gomes – UFViçosa, PPGBIOS

Suely Marinho – HUCFF/UFRJ

Luciana Narciso – Nubea/UFRJ e Ensp/Fiocruz/PPGBIOS – GT Bioética Abrasco – Rio de Janeiro

Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Marisa Palácios – Nubea/UFRJ, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco – Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Sergio Rego – Ensp/Fiocruz – PPGBIOS – PQ CNPq – GT Bioética Abrasco – Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Sonia Santos, Faculdade de Educação /UERJ – PPGBIOS

Rodrigo Siqueira-Batista, UFViçosa, PPGBIOS, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Beatriz Thomé, UNIFESP

Contribuições: Fermin Roland Schramm escreveu a primeira versão do texto, que foi debatido com os demais autores e escrito sucessivas versões até chegarmos à versão final.

• Todos os autores participam do Observatório Covid-19, GT de Bioética, organizado na Fundação Oswaldo Cruz.

• Participam do GT de Bioética do Observatório Covid-19 docentes da: Ensp/Fiocruz, Nubea/Ufrj, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de São Paulo, do Programa de Pós-graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS), muitos desses integrantes do GT Bioética da Abrasco e da Rio de Janeiro Unit of the International Network of the Unesco Chair in Bioethics at Haifa.

Notas:

1 Mori, M. Manzoni, la negazione della realtà (della peste), e l’analogo atteggiamento circa le Raccomandazioni Siiarti sull’emergenza Coronavirus, 26/03/2012. http://www.quotidianosanita.it/studi-eanalisi/articolo.php?articolo_id=83114

2 Barbosa, M. ‘Pagar a conta da pandemia fica para depois’. Entrevista José Olympio Pereira, Presidente do banco

Crédit Suisse, O Globo, 4/4/2020. https://oglobo.globo.com/economia/pagar-conta-da-pandemia-fica-para-depoisdiz-presidente-do-credit-suisse-24343046

3Setti, R; Cavalcanti, R; Soares, L. “’E agora, Brasil?’: Futuro pós-crise vai além dos desafios econômicos e exige

mais diálogo e solidariedade. O Globo, 09/04/2020. https://oglobo.globo.com/economia/e-agora-brasil-futuro-poscrise-vai-alem-dos-desafios-economicos-exige-mais-dialogo-solidariedade-1-24360797

5 Wang, DWL & Lucca-Silveira M. Escolhas dramáticas em contextos trágicos. Folha de S. Paulo, 5/4/2010, p.

B14. https://ieps.org.br/wp-content/uploads/2020/03/NT5-IEPS.pdf

6 Ibidem

7 Amir Klink in Niklas, J. Juntos no barco Terra, O Globo. Segundo em quarentena, 7.4.2020, p. 1. https://oglobo.globo.com/cultura/amyr-klink-sobre-coronavirus-estamos-num-barco-chamado-terra-se-temalgum-furo-todos-tem-que-investigar-24354621

8 Ninio Marcelo. Depois do pior da epidemia, China vive ‘novo normal’ e teme surto importado.

https://oglobo.globo.com/mundo/depois-do-pior-da-epidemia-china-vive-novo-normal-teme-surto-importado-24350089

10 Silva M. A favela é o motor da cidade, mas não recebe os cuidados que merece. O Globo, 7/4/2020, p. 18)

https://oglobo.globo.com/rio/com-casos-crescentes-de-coronavirus-comunidades-relatam-tamanho-do-desafio-1-24355769

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