Tramita no Congresso Nacional, e em relativo silêncio, a PEC 10/2022, um projeto de Lei que põe em risco o fornecimento de sangue e seus derivados no país ao torná-lo um produto passível de venda. O projeto propõe uma alteração no art. 199 da Constituição Federal sobre as condições e os requisitos para a coleta e o processamento de plasma humano por empresas privadas. Enquanto o mundo comemora o dia Mundial do Doador de Sangue, vemos o projeto de Lei pôr em cheque a forma como nos relacionamos com o corpo humano, olhando com estranheza a possibilidade de se comprar e vender plasma de pessoas.
Ao mesmo tempo em que celebramos as políticas para garantir acesso seguro aos componentes de sangue – em especial concentrado de hemácias, plasma e concentrado de plaquetas – para quem precisa, a data é marcada pela homenagem aos que comparecem aos bancos de sangue para salvar vidas de pessoas desconhecidas. É este espírito solidário que garante, em nosso país, o funcionamento de uma rede que abastece os hospitais e demais serviços de saúde em todo o território nacional com os produtos necessários.
O plasma, além de ser usado diretamente, é também matéria-prima para indústrias, que obtêm do seu processamento subprodutos. São os fatores de coagulação, a albumina e as imunoglobulinas, essenciais para o tratamento de algumas doenças, como a hemofilia, distúrbio genético que leva a sangramentos graves que podem até mesmo provocar a morte.
O Ministério da Saúde fornece tais medicamentos, denominados hemoderivados. Graças a um esforço iniciado há mais de vinte anos pelo Sistema Único de Saúde, o plasma obtido pelos principais bancos de sangue do país é congelado a -70°C, armazenado e transportado em condições adequadas para ser enviado para indústrias produtoras contratadas para o processamento.
Até o início da década de 1980, e infelizmente esta memória parece apagada, era permitido vender sangue no país. Tornaram-se tragicamente famosas as práticas de empresas que compravam sangue de quem precisava do dinheiro para comer. Desnecessário contar como ficava a saúde destas pessoas. Naquela mesma época, tornou-se pública a gravidade da transmissão de doenças por transfusão, em particular a AIDS e as hepatites B e C. Este cenário mudou, graças à proibição da comercialização de sangue, tecidos e órgãos e também às medidas adotadas pela Vigilância Sanitária, como a fiscalização de condições de funcionamento dos serviços de hemoterapia e seus processos de trabalho: triagem clínica, o uso de testes, controles e tecnologias indicadas para assegurar qualidade.
Ignorando as lições do passado, a PEC 10/2022, pretende autorizar a remuneração dos doadores (que, no caso, passariam a ser vendedores) de plasma, que passaria, assim, a ser tratado como um produto comercial. Além dos riscos já mencionados aqui para doadores e receptores, o projeto, caso aprovado, significaria uma mudança na ética que envolve o corpo humano. Passaria a ser considerado natural vender e comprar partes ou produtos obtidos de pessoas. Cabe perguntar também se parte dos que atualmente adotam a atitude altruísta da doação de sangue não passaria a preferir os postos de coleta de plasma de empresas de processamento onde seu plasma seria pago, comprometendo a capacidade da hemorrede para fornecer aos hospitais.
É interessante observar também que não há, atualmente, mesmo sem remuneração de doadores, escassez de plasma coletado. O Brasil já conta com uma empresa pública – a Hemobrás – que brevemente será capaz de processar o tecido para fornecer hemoderivados ao SUS, diminuindo a dependência da importação de tais medicamentos, que não são ainda produzidos no país em quantidade significativa.
Este é um dia para agradecer aos doadores e também para refletir. É uma unanimidade que a política de sangue e hemoderivados tem melhorado cada vez mais no Brasil. Um dos marcos do sucesso foi a proibição da doação remunerada; não podemos retroceder e esquecer o que já aprendemos.
*Claudio Maierovitch é vice-presidente da Abrasco e pesquisador da Fiocruz Brasília.