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O desafio é fortalecer a cooperação para promover a saúde da população

Gisele Arantes / editoria de Opinião do jornal A Gazeta, do Espírito Santo

À esquerda, a pesquisadora e conselheira da Abrasco, Cristiani Vieira Machado

A Saúde aparece como maior preocupação enfrentado pela população, em pesquisa realizada pelo Ibope no mês passado. Ao menos 70% dos eleitores de todos os Estados declararam que esse é o maior desafio que os próximos governantes enfrentarão. É fácil de entender o porquê de tamanha preocupação. Cenas de filas em postos de atendimento e de macas em corredores de hospitais, por exemplo, são recorrentes apesar de desumanas. Mesmo tido como modelo de universalização do acesso à Saúde, o Sistema Único de Saúde – SUS enfrenta desafios tão grandes quanto a sua dimensão. Esses desafios passam pela carência de recursos e pela má gestão, problemas comuns a diversos setores da administração pública, mas também por questões estruturais, entre elas as políticas públicas para o setor. Entre os aspectos que precisam ser revistos, segundo os especialistas ouvidos por A Gazeta, a pesquisadora e conselheira da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, Cristiani Vieira Machado e a integrante do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Bioética, Elda Coelho Bussinguer, estão o equilíbrio de responsabilidades entre as esferas federal, estadual e municipal. Confira mais detalhes na entrevista a seguir:

A Gazeta – Filas em hospitais, macas em corredor, carência de médicos e equipamentos sucateados são, infelizmente, comuns na saúde pública brasileira. O problema é a falta de recursos ou de qualidade na gestão?

Cristiane Machado – O SUS é uma conquista da sociedade brasileira, pois se baseia no reconhecimento da saúde como direito de todos, ou seja, visa atender mais de 200 milhões de pessoas, de acordo com suas necessidades, independente de renda, idade e condição de saúde. Mas o bom funcionamento de um sistema dessa dimensão requer recursos suficientes. O financiamento do SUS sempre foi aquém do necessário. O gasto público em saúde no Brasil nunca ultrapassou 4% do PIB, o que é bem abaixo de países que tem sistemas de saúde abrangentes, cujo gasto público às vezes ultrapassa 8% do PIB. O gasto público em saúde também é baixo em termos per capita. Em todo o período de implantação do SUS, os recursos disponíveis sempre estiveram abaixo do necessário tanto para investimentos (expansão do serviços, obras, equipamentos) como para o custeio (pagamento de pessoal, funcionamento dos serviços). Isso prejudica muito a expansão do acesso e a qualidade desejável para os serviços e explica em grande parte os problemas observados.

Além disso, é também importante qualificar a gestão pública, o que requer investimento em carreiras públicas no SUS, voltadas para profissionais de saúde e gestores em saúde, de forma que os cargos de gestão não sejam ocupados por pessoas em contratos temporários ou cargos comissionados. Para ter sistema público forte, precisamos de servidores públicos bem formados e bem remunerados na gestão e na prestação de serviços também. Acrescente-se a importância de haver mecanismos de avaliação dos serviços e de prestação de contas à população.

Em resumo: o financiamento é muito insuficiente para dar conta das necessidades de atenção à população; e a gestão pode melhorar, mas isso requer investimentos também na gestão pública. Em situações de muita contenção de recursos, os resultados de saúde e a eficiência do sistema podem piorar. Então, as duas dimensões – financiamento adequado e gestão pública profissionalizada – precisam estar articuladas.

A Gazeta – Com a crise financeira, milhares de usuários migraram dos planos de saúde para o SUS. Quais as saídas para gerir um sistema em que os gastos só crescem?

Cristiani Machado – Os gastos em saúde tendem a crescer em todo o mundo porque a população envelhece, os problemas de saúde se tornam mais complexos e também em função da descoberta e incorporação de novas tecnologias médicas, algumas de custo elevado. Os sistemas de saúde que tem um setor privado forte como o dos Estados Unidos, em que o segmento dos planos e seguros de saúde se destaca, tendem a ser ainda mais caros e com piores resultados de saúde em comparação com países que têm sistemas públicos fortes e bem organizados, como os da Inglaterra, Suécia, Canadá. Isso ocorre porque as empresas visam lucro. Os planos de saúde querem clientes em boas condições de saúde, tendendo a cobrar mensalidades altas e/ou a negar atendimento a idosos ou pessoas com doenças que requerem tratamentos de alto custo. As indústrias produtoras de insumos e tecnologias querem vender seus produtos. Então o Estado precisa regular o setor privado e priorizar o sistema público de atenção à saúde.

Sistemas públicos bem estruturados têm condições melhores de oferecer de forma planejada ações de promoção de saúde, prevenção e atenção básica em saúde de boa qualidade (o que resolve parte importante dos problemas de saúde), com encaminhamento para os demais níveis de atenção especializada e hospitalar, incluindo o tratamento de doenças de alto custo, quando for necessário. As saídas envolvem aumentar o investimento no sistema público e reduzir os subsídios do Estado ao setor privado; fortalecer a atenção básica em saúde, fortalecer a pesquisa e a produção nacional de medicamentos e outros insumos para assegurar a sua disponibilidade gratuita e regular a incorporação de novas tecnologias.

A Gazeta – Cada vez mais pessoas buscam o Judiciário para conseguir medicamento ou tratamento negado pelo Estado, o que desequilibra ainda mais o orçamento. Como conter a judicialização sem ferir garantias fundamentais?

Cristiani Machado – Uma primeira questão a ser considerada é se as pessoas estão conseguindo acesso adequado e oportuno a medicamentos e outros tipos de tratamentos que já são reconhecidos como eficazes e já estão incorporados ao SUS. Nesses casos, o importante é assegurar a produção nacional ou a compra desses insumos pelo Poder Público, sua distribuição e sua provisão adequada na rede pública. Outra questão é quando as pessoas acionam o sistema judicial para ter acesso a medicamentos ou outros tipos de terapias que ainda não foram incorporados formalmente ao SUS, por motivos de dúvidas quanto à sua efetividade (em comparação com tratamentos já disponíveis) ou por questões de segurança (considerando a sua adoção em larga escala). A incorporação de novos medicamentos e tecnologias ao sistema público requer análise cuidadosa por especialistas e elaboração de protocolos clínicos. Nesse âmbito é importante o diálogo e a articulação entre os gestores públicos, os membros do Ministério Público e do Judiciário para que todos atuem no sentido de aprimorar o funcionamento do sistema público e assegurar o cumprimento do direito à saúde, considerando as necessidades de saúde da população, mas também as recomendações científicas quanto à eficácia e à segurança dos tratamentos.

A Gazeta – Governo federal, Estados e municípios dividem responsabilidades para o funcionamento do SUS. A relação entre essas esferas é equilibrada ou existem desajustes?

Cristiani Machado – A descentralização da saúde no Brasil foi muito voltada para os municípios, que em sua maioria são de pequeno porte e não dão conta, sozinhos, de garantir o acesso e o cuidado em saúde aos seus munícipes. O papel do governo federal e dos estados também é muito importante. Por exemplo, o governo federal tem um poder de indução de políticas, é responsável por uma parte importante do financiamento, pela regulação do sistema e também precisa estar voltado para a redução das desigualdades em saúde no território nacional. Os estados são importantes para promover o planejamento regional e a articulação entre municípios, entre muitas outras responsabilidades. Por isso, existem mecanismos e esforços de articulação entre as esferas de governo, como as comissões intergestores no âmbito federal, no âmbito estadual e mesmo em regiões dentro de cada estado. Essas comissões são importantes para definir prioridades, fazer pactos relativos à descentralização e à transferência de recursos entre esferas de governo. São também muito importantes para planejar e coordenar os processos de organização das redes integradas de serviços de saúde, visando garantir o acesso das pessoas aos serviços de diferentes tipos e complexidades, quando for necessário. O desafio é fortalecer a cooperação e articulação entre esferas de governo, considerando a especificidade do papel de cada uma, para promover a melhoria de situação de saúde da população.

A Gazeta – O governo federal criou o programa Mais Médicos para suprir a carência de profissionais nos municípios do interior e nas periferias das grandes cidades, ampliando o atendimento básico. A medida cumpre seus objetivos ou deveria ser revista?

Cristiani Machado – Antes mesmo do Mais Médicos, o SUS favoreceu uma expansão expressiva dos serviços de atenção básica, estima-se que as equipes de Saúde da Família abrangem mais de 50% da população brasileira, ocorre que em áreas remotas sempre houve dificuldades de lotação e/ou de fixação de médicos. O Mais Médicos foi proposto compreendendo três vertentes: a lotação de médicos em áreas de alta vulnerabilidade social; a abertura de novas Faculdades de Medicina em regiões com poucos médicos, a expansão de vagas em faculdades já existentes e mudanças na formação dos médicos. No que diz respeito à primeira vertente, pode-se dizer que foi bem sucedido, houve polêmicas, mas o fato é que a abertura de vagas do programa foi feita primeiro para os brasileiros e os médicos estrangeiros só foram chamados para onde os brasileiros. As outras vertentes precisam ser mais bem estudadas.

A Gazeta – Muitos governos têm entregado a gestão de hospitais a entidades privadas certificadas como organizações sociais (OS), modelo que é apontado como caro e ineficaz por setores da sociedade. Qual a sua opinião?

Cristiani Machado – O modelo das Organizações Sociais foi inicialmente proposto no contexto da reforma do Estado dos anos 1990 preconizava a retração da atuação do Estado da prestação direta de serviços  O SUS estava se expandindo sob restrições para a contratação de pessoal, impostas pela Lei Camata (de 1996) e depois a Lei de Responsabilidade Fiscal (de 2000). A demora do Supremo Tribunal Federal em julgar a constitucionalidade do modelo também favoreceu essa proliferação; no caso de hospitais, especialmente os de grande porte e maior complexidade, observa-se que que o modelo tradicional de gestão é inviabilizado pela LRF, Lei 8.666 e demais restrições impostas à administração direta. Há controvérsias sobre o tema entre os especialistas, uma alternativa seria restringir a adoção desse modelo a situações específicas ou a alguns tipos de serviços mantendo as responsabilidades de planejamento, gestão e coordenação da rede com o Poder Público.

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