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O dia depois ao ‘fim do mundo’

Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz

O dia amanheceu com aquela sensação de gosto amargo na boca e preguiça da existência digno das ressacas. Não foram poucos os que descreveram a sensação que experimentavam naquela manhã em Cuiabá como “depressão”. A notícia da aprovação em primeiro turno pela Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241 que estabelece um teto para os gastos públicos por 20 anos atingiu em cheio os participantes do 7º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. O assunto dominou as mesas e debates do evento organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). O Portal EPSJV conversou com pesquisadores e militantes da reforma sanitária para tentar apreender suas impressões e análises neste dia depois do ‘fim do mundo’ – como a PEC vem sendo chamada – e acompanhou o ato político que recarregou as energias para a luta.

“A minha sensação é que foi instaurado um estado de sítio fiscal que vai condenar e comprometer o futuro de gerações. O discurso deles é de responsabilidade fiscal, mas, na verdade, se trata da expressão mais bem-acabada de irresponsabilidade social”, afirmou Alcides Miranda, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao fim de uma mesa que discutia justamente o processo de desmonte da proteção social no país. “E é uma sensação ruim, mas ao mesmo tempo não pode anestesiar a gente. Não pode nos deixar impotentes. Aí a gente tem que reagir não só a essa questão mais pontual da tramitação que segue mas temos que ser mais incisivos na contestação e apresentação de alternativas. Inclusive para a opinião pública”, completou.

O resultado da votação na Câmara – 366 deputados a favor, 111 contra a PEC – não surpreendeu o presidente da Abrasco, Gastão Wagner. Militante histórico do SUS, Gastão diz não esperar nada de um Congresso “composto pelos setores mais ricos e corrompidos” da sociedade brasileira. “A aprovação da PEC do teto de gastos públicos é a tentativa de considerar que os privilégios da elite são direitos e que os direitos da maioria da população, dos trabalhadores, das pessoas que dependem do Sistema Único de Saúde, da educação pública – que são 90% dos brasileiros – são privilégio. É uma inversão total, como se o mercado, os empresários, os banqueiros fossem os únicos atores sociais com direito à proteção social. É um desrespeito”, criticou. Gastão não acredita que a medida vá durar os 20 anos propostos: “Não vai durar tanto quanto a ditadura militar. Vai ser o caos, vai morrer gente. Com certeza a sociedade vai mudar isso”.

Essa também é a opinião de Luis Eugenio Portela, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ex-presidente da Abrasco. Para ele, o apelido ‘PEC do fim do mundo’ apesar de chamar atenção da sociedade para a importância do que está em jogo com a aprovação da emenda constitucional não ajuda tanto na luta. “Eu acho que é o fim de um mundo, início de outro mundo. Estou confiante na nossa capacidade de resistência. O movimento social, as classes trabalhadoras resistirão. Não aceitarão passivamente esse assalto, essa ameaça aos direitos sociais e também aos direitos políticos. Essa agenda do governo Temer foi derrotada nas eleições mais de uma vez. E na medida que os efeitos dessa agenda forem sentidos pela população a reação será forte”.

Para o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Nilton Pereira Jr., se a PEC é de morte, “a gente não pode morrer calado”. “Vamos continuar lutando com as nossas armas. Com produção de conhecimento, com evidências científicas. Demonstrar para a sociedade de que formas a política piora a vida das pessoas”. Para isso, Abrasco e Opas vão elaborar um sistema de avaliação que vai medir com indicadores epidemiológicos como acesso, assistência, quais serão os impactos da PEC do ajuste fiscal na vida das pessoas. “Como a gente considera que a saúde é determinada socialmente, vai piorar o nível do saneamento básico, vai piorar transporte púbico, uma série de políticas sociais de acesso à renda, moradia, terra. Tudo isso recai sobre a saúde, impactando a vida das pessoas, com aumento da morbidade, mortalidade, aumento de doenças. Com a degradação do padrão de vida das pessoas, elas vão precisar de mais assistência à saúde. A demanda vai ser maior, evidências internacionais demonstram isso”, diz.

Representante da Abrasco no Conselho Nacional de Saúde, Nilton conta que os conselheiros fizeram uma bateria de visitas aos parlamentares e repetirão a dose com os senadores. “A estratégia desse governo, desse modelo de Estado é muito clara: tentar resolver a crise às custas da força de trabalho, dos direitos de cidadania que ainda estavam em consolidação no Brasil. Estávamos longe de ter direitos amplos, plenos. Esse revés é brutal porque algumas políticas que estavam começando a se consolidar, como educação pública por exemplo, vão sofrer um impacto muito grande. Com certeza vai ter um retrocesso na capacidade instalada do SUS e com certeza as pessoas vão sofrer. Inclusive eles acrescentaram o salário mínimo nas últimas negociações para aprovação. Agora o salário mínimo só vai ser corrigido pela inflação também”, afirma. Enquanto isso, ele ressalta, a PEC não mexe nem uma vírgula no pagamento dos juros da dívida pública.

Para evitar o fim do mundo

Se manhã e tarde foram melancólicas, a noite reabasteceu as baterias de muita gente. O ato político contra a PEC 241 fechou o dia, reunindo os participantes do Congresso, movimentos sociais e entidades sindicais, que, com energia, advertiram: austeridade faz mal à saúde.

“O Brasil está doente, só nós podemos salvar. Precisamos abrir os olhos pra ver onde o cancro está. Você sabe? Alguém sabe? Eu sei”, cantou dona Palmira Lopes, liderança histórica do Movimento Popular de Saúde (MOPS), que deu seu recado através de versos: “No impeachment ou no golpe que foi dado na nação, só quem perdeu foi o povo com essa situação. E agora outro golpe estão dando: vamos ficar sem dinheiro pra saúde, educação. Coitados dos brasileiros! Coitados dos ‘cidadão’! Vamos se unir meu irmão, vamos defender o SUS e salvar nossa nação. Todos juntos, indo pra rua, gritando libertação!”.

Na melhor tradição da educação popular, Vanilson Torres do Movimento Nacional da População de Rua e conselheiro nacional de saúde usou a paródia musical para denunciar: “sorrateiramente eles tiram os direitos da gente”. E continuou, no ritmo do funk do momento: “Vampiros safados com um congresso e um judiciário engessados aprovaram a PEC 241. Acorda Brasil! Senão pode ser muito tarde. Vamos combater o bom combate. O povo sem oportunidade com a PEC da maldade e o Brasil tá assim [de braços cruzados]. Mas ainda dá tempo de lutar contra esse tormento! Vamos pressionar o parlamento. Pois a força tá aí, pois a força está aqui”.

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