Por Geniberto Paiva Campos e Vitor Gomes Pinto
Brasília, março de 2013
Dizia um eminente pediatra brasileiro que “a consulta é a alta complexidade do ato médico”.
Ao partirmos desse entendimento, aceitando a frase como premissa, por certo ficam facilitados os esforços para desatar o ”nó da saúde”. Permanente desafio para governantes, gestores, profissionais da área. E motivo de perplexidade, às vezes desapontamento, para o usuário do sistema. Este último, razão de ser da existência dos serviços assistenciais, incapaz de compreender os porquês para tanta dificuldade para uma simples consulta, para o exame mais banal, ou para procedimentos de mediana complexidade no Sistema Único de Saúde/SUS.
Onde, exatamente, localiza-se este nó desafiador do SUS? Qual a mudança estratégica capaz de fazer funcionar plenamente um sistema que se autoproclama universal no acesso, integral no atendimento, como “direito de todos” e responsabilidade do Estado, conforme escrito na Constituição Federal, já lá se vão longos 25 anos – um quarto de século?
Com tanta demora para colocar o sistema nos eixos, a pressa e a impaciência já começam a tomar conta de todos: autoridades, dirigentes, pensadores e teóricos em geral. Soluções mágicas começam a despontar no horizonte. Alguns apontam, com alguma irreverência e indignação, um novo significado para a sigla SUS. E sugerem que, mais adequadamente deveria se chamar “Sistema Ultrapassado de Saúde”. Outros clamam pela necessidade de entregar à iniciativa privada, isto é, privatizar o Sistema, através da ampliação do acesso á magia dos planos de saúde que seriam extensivos às classes C,D e E. Naturalmente com subsídios governamentais.
Foi este o cenário que orientou a recente audiência de representantes do setor privado da saúde com a Presidente da República, na qual a indicação de esquemas privatizantes para o Sistema apareceu como possível solução para desatar os famosos nós da saúde. Talvez, de forma inconsciente, quem sabe ingênua, estabelecendo paralelos com a concessão ao setor privado de aeroportos e rodovias. Este simples indicativo de “solução mágica” provocou fortes e imediatas reações de organizações que, durante décadas, lutaram pelo SUS. Pois viram, com justa razão, com a medida, o caminho sem volta da privatização da saúde. A nota da ABRASCO, carregada de apreensão e indignação, diz claramente que a medida sugerida é privatizante. E até inconstitucional, desde que repassa responsabilidades precípuas do Estado a setores dominados pela lógica do lucro.
Por que a estrutura de organização do SUS não é comparável à de aeroportos e rodovias que, eventualmente, melhoram e se tornam mais flexíveis e funcionais com a concessão?
Voltemos à frase do eminente pediatra brasileiro, que abre este texto: “a consulta é a alta complexidade”. Provavelmente a parte mais nobre de toda a sequência do atendimento. O momento do contato entre os profissionais de saúde e o usuário do Sistema. Que dialogam em busca de sinais e sintomas. A consulta segue com o exame físico do paciente, agora na procura de evidências que possibilitem a formulação de hipóteses diagnósticas. A partir daí são solicitados os chamados “exames complementares” os quais irão confirmar, ou não, as possibilidades diagnósticas.
Acontece que este procedimento, a CONSULTA, foi gradativamente perdendo status, caindo a sua importância na sequência hierárquica da prática clínica. Com a rápida e inexorável incorporação de novas tecnologias que passaram a escrutinar o organismo humano, a consulta foi encolhendo, eliminando-se etapas cruciais do ato médico. A ausculta, a palpação, a verificação de sinais vitais, a própria entrevista com o paciente foram, gradativamente, substituídas pelas máquinas. E com um detalhe perverso, mas irreversível: os exames complementares passaram a ser melhor remunerados do que a “pobre” consulta. Aos poucos, deixaram de ser “complementares…”
Pode-se afirmar que isto afetou o padrão da medicina, cada vez menos clínica e mais tecnológica? Sem dúvida a resposta é SIM. E se o padrão, vá lá, “tecnológico” prevalece sobre o escrutínio clínico no nível primário da atenção à saúde, os resultados poderão ser desastrosos. E tornarão a prática assistencial ineficiente e de custos financeiros explosivos, quase proibitivos.
Na prática, entregar a Atenção Primária de Saúde /APS ao setor privado, onde predomina o objetivo do lucro, é torná-la cara e ineficiente. E às custas do Estado. E qual a importância da APS para a organização da oferta de serviços assistenciais pelo SUS? A APS assume importância essencial, pois é porta de entrada do sistema. E também onde os usuários irão compor a base populacional, dentro de limites geográficos bem estabelecidos. Indo às últimas consequências, pode-se afirmar, com boa possibilidade de acerto, que a criação das Unidades de Pronto Atendimento/UPAs é uma forma sutil de inserir tecnologias, talvez desnecessárias, no mínimo discutíveis, neste nível de atenção. Aumentando os custos financeiros, mas sem aumentar a eficiência e a eficácia assistencial.
É na Atenção Primária onde a Equipe deSaúde resolve cerca de 85% das situações clínicas que se apresentam. E nela, se destaca o papel fundamental do AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE, em contato direto e permanente com os indivíduos e núcleos familiares sob sua responsabilidade. Com esse tipo de organização do sistema, as emergência hospitalares passam a funcionar como tal e a estrutura hospitalar atende as urgências médico-cirúrgicas e os procedimentos característicos da média e alta complexidade.
É preciso cuidar também das travas e amarras impostas à execução das políticas públicas de saúde, por meio de leis e outros impeditivos legais. Urge revisar a atual Lei de Responsabilidade Fiscal/LRF. De correta intenção em sua origem.
E que na sua prática engessa o Sistema, tornando por vezes impossível ao gestor público o pleno exercício das suas funções.
Portanto, é preciso: 1) garantir o acesso dos usuários em todos os níveis de atendimento, assegurando assistência de alta qualidade; 2) dar sequência à Organização dos Serviços de Saúde, colocando a APS em prioridade; 3) assegurar o fluxo do Financiamento do Setor; 4)implementar uma Política de Recursos Humanos para todos os níveis de atenção, criando a carreira de Estado para os profissionais da saúde; 5) finalmente, promover avanços nas complexas relações dos setores Publico e Privado da Saúde, lembrando, sempre, a condição de complementaridade do sistema privado, expressa constitucionalmente. E que essa mesma norma constitucional coloca responsabilidades intransferíveis ao setor público de saúde.
Lembrar, por último, mas não menos importante, que o SUS vem sendo construído, com esforço e imaginação criadora, pelos diversos grupos que, na diversidade, mas de forma unificada, compõem o atual Sanitarismo Brasileiro, digno dos seus mais ilustres pioneiros das primeiras décadas do século passado. Cujo objetivo primordial é fazer valer o mandamento constitucional: “A SAÚDE É UM DIREITO DE TODOS OS BRASILEIROS”.