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O Estado controla o controle?

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Este ano fez três décadas que o projeto do SUS foi desenhado na 8ª Conferência Nacional de Saúde. O contexto era outro: o país saía de um longo período de ditadura civil-militar, havia uma intensa e organizada mobilização pela democracia e, no campo da saúde, o movimento pela Reforma Sanitária vivia seu momento de maior força. Passados 30 anos (e reconhecendo que o SUS atravessa hoje sua crise mais alarmante), esta é uma boa hora para recuperar os temas daquela Conferência e analisar onde conseguimos avançar — e onde falhamos.

A discussão que elegemos evidenciar em primeiro lugar diz respeito ao controle social, ideia que praticamente foi inaugurada naquele encontro em 1986. Apesar de ter ‘8ª’ no nome, ela foi uma conferência inédita: pela primeira vez, os debates e decisões foram movidos por participação popular. Até então, as conferências eram protagonizadas por técnicos da área da saúde. Porém, naquele ano, foram convocados delegados de entidades que representavam os mais diversos interesses da população. Mas, como lembra o professor Cornelis van Stralen, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), não foi só isso: “Havia cerca de mil delegados, mas ‘apareceram’ outras três mil pessoas vindas de sindicatos, movimentos sociais e associações diversas, que não haviam sido convocadas como delegadas mas também reivindicaram participar. E participaram. A partir de uma negociação interna, essas pessoas também se reuniram em grupos de trabalho e suas discussões foram contempladas no relatório final”, lembra.

E elas saíram do relatório final para a lei: o documento gerado pela 8ª subsidiou o trabalho da assembleia constituinte e foi assimilado, praticamente na íntegra, pelo capítulo sobre saúde na Constituição, que institui o SUS. Suas contribuições também aparecem nas leis 8.080/90 e 8.142/90, que regulamentam o sistema.

Sobre poder e controle
Quando a Carta Magna diz que “todo o poder emana do povo”, não se refere só ao direito que esse povo tem de participar de plebiscitos, referendos e eleições diretas bianuais. Ela se refere também à possibilidade de as pessoas participarem na formulação e fiscalização de políticas públicas por meio do controle social, justamente como aconteceu na 8ª. Ele deve estar presente em vários campos — como saúde, educação, agricultura, moradia, assistência social, segurança pública, esporte e cultura, por exemplo — e está garantido não só na Constituição como em leis específicas sobre esses setores.

As instâncias criadas para garantir o controle social são muitas, e incluem orçamentos participativos, consultas e audiências públicas, ouvidorias e mesas de diálogo. Porém, as principais são os conselhos e conferências, que existem em diversas áreas e nos três níveis de governo. A saúde é um dos campos em que essa estrutura está mais organizada. Seus conselhos foram desenhados de modo a privilegiar participação de usuários e, por isso, funcionam de forma paritária: 50% das vagas são reservadas a quem usa o SUS, 25% aos trabalhadores do sistema e 25% a representantes governamentais. O Conselho Nacional de Saúde, de caráter permanente e deliberativo, tem as funções de formular, fiscalizar, monitorar e acompanhar as políticas públicas brasileiras.

Hoje, além do Conselho Nacional, há 27 estaduais e mais de 5 mil municipais, e as conferências nacionais se realizam a cada quatro anos — sempre precedidas por etapas nos estados e municípios.No artigo Efetivar a reforma sanitária por meio da participação social, Sarah Escorel resume bem a ideia que fundamenta a existência desses espaços: “O desenho inicial dos conselhos, a amplitude de suas funções, a paridade de representantes de usuários em sua composição, tinham por objetivo permitir que as necessidades e demandas de saúde da população penetrassem o aparelho de Estado e interferissem na direcionalidade das políticas públicas. Dessa forma, conselhos e conferências seriam canais de expressão, de pressão, de influência e de controle, para que a burocracia não se limitasse a atender seus próprios interesses e sua autorreprodução. Sobretudo seriam momentos e espaços nos quais se buscaria o ‘bem comum’, o ‘interesse geral’, algo que, transcendendo os interesses particulares, mas sem ignorá-los, seria uma fonte de propostas de diminuição das iniquidades sociais e de saúde”.

Hoje, a informalidade da 8ª ficou pra trás. Porém, se por um lado a institucionalização dos instrumentos de controle social garante sua existência, por outro, a importância de suas atividades na formulação de políticas públicas parece ter diminuído nos últimos 30 anos. É fácil exemplificar esse tipo de problema examinando rapidamente alguns dos principais debates recentes. Quando o Conselho Nacional reprovou, em 2007, o modelo das fundações estatais de direito privado para a gestão na saúde, o então ministro José Gomes Temporão ignorou a decisão e declarou: “Quem governa é o governo”. Em 2011, uma das principais decisões da 14ª Conferência Nacional foi instituir que a União passaria a investir em saúde no mínimo 10% de suas receitas correntes brutas; menos de uma semana depois o Senado aprovou uma proposta que contrariava essa resolução, deixando de fortalecer o financiamento do setor.

Hoje, o Conselho Nacional de Saúde tem se posicionado fortemente contra aprovação da PEC 241, que congela gastos nas áreas sociais. No início do mês (6/10), seus representantes chegaram a entregar a lideranças da Câmara uma carta pedindo a rejeição da proposta — que, no entanto, foi aprovada em primeiro turno menos de uma semana depois, por 366 votos a 111.

Exemplos como esses se repetem o tempo todo. O pesquisador Domício Sá, da Fiocruz Pernambuco, que integra a RedEscola, lamenta: “Muitas vezes, o relatório da Conferência diz uma coisa, mas os planos municipais, estaduais e nacional de saúde só incorporam aquilo que interessa, que já estava decidido a priori. É claro que algumas propostas são coincidentes, mas outras são esquecidas”. Para ele, isso é um contrassenso, já que as políticas de saúde, em todos os níveis, deveriam incluir o que é discutido nos conselhos e nas conferências. A própria lei 8142/90 diz, em seu artigo 1º, que as conferências devem “avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes”. No parágrafo 2º, ela afirma que os conselhos de saúde têm caráter permanente e deliberativo, atuando “na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros”, e que suas decisões devem ser “homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo”.

O Estado controla o controle
Um dos problemas, para Domício, é que a própria legislação não estabelece nenhum tipo de penalidade para gestões que desrespeitem as decisões do controle social. “Os espaços existem e as conferências são realizadas pro forma, mas a gestão e o poder legislativo não estão dispostos a considerar as decisões do relatório. Sem uma regulamentação da lei 8.141 que dê conta disso, fica difícil. Não há nenhum respaldo legal para que se cumpram as decisões”, afirma o pesquisador. Ele avalia que a 14ª, por exemplo, foi ‘dominada’ pelas orientações do Ministério da Saúde. Na época, o então ministro Alexandre Padilha havia quebrado um acordo tácito que estava estabelecido desde 2006, quando o Conselho definiu que seus presidentes passariam a ser eleitos. Até então, a presidência era assumida pelos ministros da saúde, mas, a partir daí, entendeu-se que gestores não se candidatariam ao cargo.

Padilha o fez, foi eleito e presidia o CNS à época daquela conferência. “E o grupo gestor conduzido por ele foi quem deu todas as cartas durante o evento. Embora a comissão organizadora fosse presidida por um conselheiro que não era o ministro, quem dava as diretrizes era a secretária executiva, que era do governo. E nem houve espaço para debate realmente”, critica Domício, presente ao encontro. “O que mais me entristeceu foi perceber que o plano nacional de saúde já estava elaborado e finalizado antes da conferência. Isso era um absurdo, fazia com que o encontro não tivesse sentido. Se a ideia da conferência é recolher propostas, ela tem que ser elaborada um ano antes da elaboração do plano. Geralmente acontece no mesmo ano, ou seja, o plano já está feito. Por isso as proposta não são adotadas”, ele completa.

O que se vê nas etapas nacionais parece ser a síntese daquilo que já ocorre, com frequência, nos conselhos e conferências municipais, como tem sido demonstrado em diversos estudos sobre o tema: “Não são os movimentos sociais que pautam o poder público, mas o contrário”, diz Domício. Segundo Cornelis, em todas as esferas, o bom funcionamento dos conselhos depende de certa boa vontade do poder executivo. “Prefeitos, secretários de saúde, governadores e presidente precisam estar interessados em ouvir o conselho. Alguns o fazem; outros promovem e apoiam as reuniões, mas não levam os conselhos em consideração”.

Essa crítica é ressaltada por Sarah Escorel, em Conselhos Municipais de Saúde do Brasil: um debate sobre a democratização da política de saúde nos vinte anos do SUS: “As Secretarias Municipais de Saúde, que representam o poder executivo, além de serem os únicos atores cujas prerrogativas e obrigações legais exigem a participação em todas as etapas do processo decisório, são também responsáveis por proverem condições adequadas ao funcionamento dos conselhos municipais de saúde (CMS), principalmente infra-estrutura, recursos humanos e financeiros, o que indica uma concentração de poder similar à que Abrucio classifica como “ultrapresidencialismo” (…) [Quando] o poder executivo (…) é o principal agente em todas as etapas do processo de governo, relegando a assembleia legislativa a um plano secundário(…) os mecanismos de controle do poder público (são) pouco efetivos, tornando o sistema político um presidencialismo sem checks and balances”, escreve Sarah, citando Fernando Luiz Abrucio.

No mesmo artigo, a pesquisadora mostra que os conselhos mais fortes são os das cidades maiores, com mais de 250 mil habitantes. Os piores, por sua vez, estão nas cidades com menos de 50 mil pessoas. Cornelis van Stralen concorda: “Em geral, nas cidades grandes, eles são de fato mais representativos, as entidades são mais ativas. Nas cidades no interior, em muitos casos os conselhos são totalmente dominados pelos prefeitos e seus grupos políticos”.
Ele exemplifica com uma observação pessoal, de quando participou de um projeto nacional de capacitação de conselheiros entre 2003 e 2004. “Na época, vimos que vários conselhos existiam só no papel. O livro-ata não era representativo das reuniões: na medida em que o conselho deveria aprovar normas ou relatórios de gestão, fazia-se a ata e a prefeitura colhia assinaturas”, denuncia. Ele acredita que a própria capacitação ajude a dar conta de diminuir esse tipo de problema. “Em muitos municípios onde trabalhamos, as pessoas não tinham nem noção do que era um conselho. Essa capacitação deu pelo menos uma introdução, e as pessoas se conscientizaram mais de sua responsabilidade”.

Burocratização
O fato de não haver punição para quem não ouve conselhos e conferências é um problema, mas, para Cornelis, outro contratempo está na burocratização dos processos. De acordo com ele, a institucionalização dos mecanismos de controle social é uma via de mão dupla: garante que exista participação social, mas, ao mesmo tempo, a restringe. Um exemplo disso é o da própria organização do processo. “Na época da 8ª, em vários lugares do país foram realizadas conferências antes da nacional, e eram espaços muito abertos de discussão. Elas eram convocadas e todo mundo que julgasse importante poderia ir. Agora isso não é possível. Existe todo um procedimento burocrático que impede essa abertura: é necessário primeiro participar da conferência municipal, depois da estadual, depois são eleitos os representantes que irão enfim à nacional. Este processo burocratiza”, avalia.

A estrutura também prejudica, segundo Domício Sá, a qualidade dos debates. De acordo com ele, temas importantes ganham uma discussão menos profunda do que mereceriam: “Hoje os delegados vão à conferência nacional como se precisassem construir toda a discussão durante aqueles dois ou três dias. Chegam com um documento orientador, mas sem uma articulação prévia suficiente, inclusive porque boa parte do tempo das conferências municipais e estaduais é gasto com eleições para decidir quem serão os delegados da próxima etapa; acabam ficando de lado as ideias e propostas da própria CNS”, critica. “Seria interessante um modelo no qual os segmentos pudessem discutir as propostas com antecedência e a conferência fosse um espaço para aprovação delas”.

Para Cornelis, outra questão importante é a composição dos conselhos. “Eles têm 50% de representantes de usuários, o que é uma coisa boa. Porém, em vários municípios já estão definidos quais são as entidades que serão representadas. Isso acaba fazendo com que, para outras entidades, seja difícil o acesso, e os debates e decisões ficam limitados a certos grupos”, diz. Ele afirma ainda já haver observado, ao longo de seu trabalho, a existência de associações que existem formalmente, mas não têm atuação real. “Nesse caso o conselho teoricamente representa setores importantes da população, mas, na prática, nem sempre é assim”, diz ele. E existe ainda a representação de entidades que não necessariamente fazem uma defesa consistente do SUS: “Temos, por exemplo, uma representação sempre ativa nos conselhos da CUT, que, como sabemos, apoia formalmente o SUS. Mas o que em geral os movimentos sindicais defendem, na prática, são planos de saúde coletivos para trabalhadores. Na verdade, a ideia de que os trabalhadores estejam representados é boa. E, se convidados a falar, os sindicatos farão uma fala de defesa do SUS. Acontece que, em sua prática diária, não existe de fato esta defesa”, critica. Mudar isso — sem perder a vantagem de se garantir um percentual mínimo de usuários — não é simples. “Mas temos exemplos muito claros de como esse engessamento é prejudicial”, avalia Cornelis.

Quem conhece?
Em maio 2014, o governo da então presidenta Dilma Rousseff promulgou o Decreto 8.243/14, que instituía a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social. Ele não promovia grandes mudanças, mas regulamentava os espaços de controle social já previstos na legislação. Ainda assim, a enorme resistência ao documento — um rechaço que veio de grandes mídias e encontrou coro em boa parte da população — mostrou que a própria existência de controle social é pouco (ou quase nada) conhecida. Na época, veiculou-se a ideia de os conselhos seriam uma novidade criada pela política — e que o decreto, qualificado como ‘bolivariano’, iria ferir a democracia. O texto foi derrubado em cinco meses pela Câmara dos Deputados. “Isso foi emblemático porque o decreto apenas formalizava o que já existe, mas para muitas pessoas o país ia virar a Venezuela. Certamente um dos maiores problemas dos conselhos é que a maioria da população não os conhece”, diz Cornelis.

Uma explicação para isso está na falta de divulgação por grandes meios de comunicação, e isso nem sempre foi assim: a própria 8ª CNS chegou a ser anunciada em horário nobre global na novela Roque Santeiro. Cornelis lembra que, no princípio, a imprensa costumava se interessar pela atuação dos conselhos, mas isso minguou. “Aqui em Belo horizonte, apareciam jornalistas em todas as reuniões. Agora, nunca mais vem nenhum. Na realidade, isso faz sentido, na medida em que fica claro o poder de decisão dos conselhos. Quando se percebe que na realidade as grandes questões não passam tanto por eles, é compreensível que os jornalistas deixem de procurar essas pautas”, afirma.

O desconhecimento sobre as atividades está até mesmo dentro de conselhos e fóruns, e Domício assinala que a capacitação dos conselheiros é outro entrave ao seu bom funcionamento. “Os atores que poderiam contribuir com isso — as instituições de ensino, por exemplo — acabam se afastando do processo, não tendo a paciência histórica de fazer parte daquele momento de construção”.

Segundo Sarah Escorel, as pessoas mais pobres são as que mais desconhecem os conselhos e, portanto, estão mais distantes da participação neles. “Os setores inseridos e organizados deveriam, portanto, representar também os setores desorganizados e sem voz ativa na esfera pública. Porém, é pouco provável que o cidadão incluído e organizado em seu sindicato ou associação de categoria ocupacional consiga representar interesses tão distintos dos seus como os demandados pelos excluídos. Possivelmente, os excluídos integrem apenas a oratória dos incluídos ampliando, dessa forma, a legitimidade desses interesses”, escreve ela, no primeiro artigo citado nessa reportagem.

Para Cornelis, a falta de articulação com as bases é um dos pontos em que defensores do SUS precisam fazer autocrítica. “Depois de criado o SUS, nos preocupamos pouco em manter a mobilização. Há sempre muita luta no interior no movimento, mas com pouca preocupação em envolver o resto da população. Somos em defesa do SUS, mas normalmente apenas entre profissionais e pesquisadores”, critica.

(Acesse o original em https://medium.com/@redescola/o-estado-controla-o-controle-5ca6417b3ee7#.5unslennd)

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