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O isolamento vertical defendido por Bolsonaro é uma fraude pseudocientífica – Artigo de Naomar de Almeida Filho

Naomar de Almeida Filho

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A ideia de “isolamento vertical” encontra-se no centro do debate político sobre a pandemia da covid-19 no Brasil. Há pouco, declarou o presidente da República, na sua oratória inconfundível: “O Governo federal, se depender de nós, está tudo aberto com isolamento vertical e ponto final.” Essa proposta significa suspender medidas gerais de controle epidemiológico e isolar grupos vulneráveis, idosos e pessoas com comorbidades. Rejeitá-la, junto com a cloroquina, representa a receita pronta para suicidar ministros da saúde.

Desde o começo, essa ideia me provocou estranheza. Em quatro décadas de carreira acadêmica como professor e pesquisador em epidemiologia, nunca soube da existência de qualquer conceito dessa natureza. Mais intrigado fiquei quando se falou de seu oposto simétrico, o “isolamento horizontal”, vagamente referido a distanciamento físico como estratégia geral de redução do contágio. Estupefato, escutei um ministro da alta corte do judiciário propor resolver a questão criando um tal de “isolamento diagonal”!

Seria meu estranhamento mera ignorância? Será que a ideia de “isolamento vertical” teria alguma base científica? Tudo indica que não. Logo após o anúncio dessa bizarra ideia, virologistas, infectologistas, sanitaristas e pesquisadores de várias disciplinas de imediato contestaram sua validade científica. Com outros colegas epidemiologistas, fizemos uma busca cuidadosa e nada encontramos na literatura médica e científica. Do ponto de vista epidemiológico, não faz qualquer sentido usar uma quarentena invertida, aplicada somente a vulneráveis e não a infectados, sem contar que grande parcela da nossa gente vive em condições que dificilmente ou jamais pode isolar alguém em casa. A livre circulação dos sujeitos contaminantes, sintomáticos ou não, facilita o contágio e a pandemia foge a qualquer controle, podendo tornar-se endêmica. Além de cientificamente inválida, essa estratégia é problemática também do ponto de vista da ética médica, na medida em que implica um gerontocídio anunciado, dada a maior virulência e letalidade da covid-19 entre idosos. Em suma, por esses e outros motivos, a esquisita noção de “isolamento vertical” não se sustenta nos campos científicos da medicina e da saúde coletiva.

Isto posto, vejamos a questão seguinte: como teria se constituído noção tão perversa? Para tentar respondê-la, busquei realizar uma rápida microarqueologia de narrativas, a partir de sua primeira formulação mais sistemática, datada dos últimos dias do mês de março. Vejam que interessante e aterrador.

26/03/2020. Osmar Terra, parlamentar, ex-ministro de Estado, é entrevistado numa cadeia nacional de rádio. Primeiro, apresenta suas credenciais de médico e ex-secretário de saúde que, segundo ele, teria enfrentado e vencido epidemias muito mais sérias do que a pandemia da covid-19. Ao tentar explicar temas técnicos em linguagem simples, exibe sua alegada experiência de gestor e suposta fundamentação técnica, como se estivesse postulando algum cargo. Assertivo, sem hesitação, afirma que a população brasileira já teria alcançado níveis de “imunidade de rebanho” suficientes para justificar o relaxamento do distanciamento social. Para ele, controlar a pandemia “Não tem nada a ver com fechar escola, shopping, proibir ônibus […] tem que proteger as pessoas que estão mais debilitadas, que têm doenças crônicas, esse é o grupo que tem que ser isolado”. Confirma ser esta “a posição do presidente Bolsonaro, baseada em evidências científicas, nas informações do Ministério da Saúde, que defende o isolamento vertical.”

25/03/2020. Instagram @governodobrasil: “No mundo todo, são raros os casos de vítimas fatais do #coronavírus entre jovens e adultos. A quase-totalidade dos óbitos se deu com idosos. Portanto, é preciso proteger estas pessoas e todos os integrantes dos grupos de risco, com todo cuidado, carinho e respeito. Para estes, o isolamento. Para todos os demais, distanciamento, atenção redobrada e muita responsabilidade. Vamos, com cuidado e consciência, voltar à normalidade. #oBrasilNãoPodeParar.” Nesse mesmo dia, numa entrevista, o presidente declara: “A orientação vai ser o isolamento vertical daqui pra frente, ou seja, idosos e quem têm duas ou mais doenças.” Propõe retomar a atividade econômica, para evitar “a cura ficar pior que a doença em si”.

24/03/2020. Num pronunciamento em cadeia nacional, o presidente afirma que a doença será “quando muito, uma gripezinha”, que pouco afetará a população brasileira, capaz de, segundo ele, espontaneamente produzir resistência ao coronavírus. Introduz no discurso presidencial a notícia de que se está buscando “a comprovação da eficácia da cloroquina no tratamento da covid-19”. Anteriormente, confrontado com os primeiros sinais da pandemia, sua primeira e, por muito tempo, única resposta tinha sido promover o uso em massa desse medicamento antimalárico, ordenando sua fabricação em instalações militares.

Considerando que o médico Luiz Henrique Mandetta, então ministro da Saúde, propunha seguir as orientações da OMS (o que posteriormente lhe custaria humilhação pública e exoneração do cargo), onde teria o capitão encontrado justificativa técnica para seu posicionamento? Quem lhe ensinou a soletrar “cloroquina” e “isolamento vertical”? Não foi difícil achar uma pista: Donald Trump. Voltemos no tempo, em rápidas camadas geológicas de narrativas:

24/03/2020. Donald Trump propõe flexibilizar as medidas de controle da pandemia nos EUA; para isso, prometeu um plano para reabrir a economia na Páscoa. Postou no seu twitter pessoal: we cannot let the cure be worse than the problem itself. Tradução: “não podemos deixar a cura ser pior do que o problema em si”. Soa familiar?

Porém o presidente zero-um também não se notabiliza por sabedoria e criatividade. Já que o médico Anthony Fauci, coordenador da task-force de combate à pandemia nos EUA, recomendava seguir diretrizes científicas, quem teria ajudado Trump em sua retórica? Mesmo aqui não foi difícil encontrar os suspeitos usuais: um apresentador de televisão, um colunista de jornal tradicional e um consultor de dietas e suplementos alimentares.

23/03/2020. Steve Hilton, âncora da Fox News, referindo-se à defesa da economia, lança no ar o bordão “the cure is worse than the disease”. Já ouvimos isso, não?

22/03/2020. Thomas Friedman publica em sua coluna no The New York Times um artigo intitulado A Plan to Get America Back to Work [Plano para fazer a América voltar ao trabalho], onde chama a atenção para uma estratégia mais “cirúrgica” de controle da pandemia, minimizando danos econômicos. Ele considera “one of the best ideas” [uma das melhores ideias] a “vertical interdiction” [interdição vertical] proposta pelo nutrólogo David Katz.

20/03/2020. Katz publica no NYT um texto de opinião, intitulado Is Our Fight Against Coronavirus Worse Than the Disease? [Será nossa luta contra o coronavírus pior do que a doença?]. Ainda soa familiar? Auto-apresentando-se como diretor-fundador do Yale-Griffin Prevention Research Center e presidente de uma ONG chamada True Health Initiative, Katz patenteia e promove sua criação: “interdição vertical”. No sentido de normas para controle do contágio dentro das famílias, essa noção seria oposta ao que ele descreve como: “uma tática que chamo de “interdição horizontal” ―quando as políticas de contenção são aplicadas a toda a população sem considerar seu risco para infecção grave.”

David Katz não é epidemiologista, nem virologista, nem infectologista. A prestigiosa Universidade de Yale apressou-se em declarar que, desde 2019, Katz fora afastado da direção do Griffin Hospital Prevention Research Center. Epidemiologistas e pesquisadores médicos de várias universidades escreveram artigos refutando a peça de Katz. Há inclusive uma carta ao editor do NYT. Adam Gabbatt, em artigo no The Guardian, em 27/03/2020, nos informava que Katz é um especialista em consultoria nutricional, autor de livros de autoajuda alimentar, com sugestivos títulos como The Way to Eat, Cut Your Cholesterol e Stealth Health. Além disso, tem notórios vínculos com a grande indústria de alimentos, cobrando centenas de milhares de dólares de empresas como Hershey’s, Kind Bars, Quaker Oats, e outras não reveladas, como perito em processos judiciais e para escrever artigos positivos sobre seus produtos.

Interdição vertical versus interdição horizontal. Parece familiar? Sem dúvida, na medida em que a cadeia de contágio Katz-Friedman-Hilton-Trump-Bolsonaro-Terra é bastante evidente, mais ainda ao se rastrear o repasse dessa paupérrima metáfora da “cura que mata” em paralelo com uma versão simplória da velha e bizarra ideia de “imunidade de rebanho”. Mas há um pequeno detalhe, intrigante, talvez uma inconsistência nessa hipótese arqueológica: trata-se afinal de interdição ou de isolamento? A resposta pode estar na conexão Miami-Brasília, pois o Brasil inteiro sabe das limitações linguísticas dos Bolsonaros. Os anglo-saxões têm uma expressão bastante adequada para esta situação: lost in translation [perdidos na tradução]. Talvez não perdidos, mas pervertidos; e não somente na tradução, mas na má-intenção.

Impressiona a velocidade dessa pandemia ideológica: em apenas seis dias, um vírus de desinformação atravessa hemisférios e ameaça a política de toda uma nação, a saúde de toda uma população e a vida de toda uma geração. Tão perigosas quanto fake news são mentiras e meias-verdades, quando manipuladas em jogos de linguagem, falaciosos e maliciosos. Mentiras se desmascaram em mais ou menos tempo, mal-entendidos e meias-verdades eventualmente se esclarecem, falácias podem ser desconstruídas (com maior ou menor esforço). Mas é muito difícil combater a desonestidade retórica embutida em argumentos que contêm pseudoverdades, supostamente baseadas em evidências científicas, porque o sujeito que as enuncia tem má-fé e quem as propaga age de modo socialmente irresponsável.

Enfim, a ideia de isolamento vertical constitui uma tosca fraude pseudocientífica, cruel e extremamente perigosa. Precisamos denunciar, combater, desmascarar e desmoralizar os que a promovem. Se não o fizermos, com urgência e firmeza, o preço a ser pago pode ser um gerontocídio anunciado e um genocídio camuflado, numa sociedade que já tem sofrido enormemente com desigualdades, discriminações e injustiças herdadas de sua triste história de colonialismo, escravismo e patriarcado.

Naomar de Almeida Filho (professor Titular de Epidemiologia do ISC/UFBA e Vice-presidente da Abrasco)

Artigo publicado originalmente em El país

 

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