Tais modelos partem do pressuposto de que há uma história, uma curva natural da doença, que começa, sobe, atinge um pico e começa a cair. Vamos analisar o sentido de tal raciocínio. Muitas doenças transmissíveis agudas, quando atingem uma população nova, expandem-se rapidamente, numa velocidade que depende de seu chamado número reprodutivo básico, ou R0 (“R zero”, que estima para quantas pessoas o portador de um agente infeccioso o transmite).
Quando uma quantidade grande de pessoas tiver adoecido ou se infectado mesmo sem sintomas, os contatos entre portadores e pessoas que não tiveram a doença começam a se tornar raros. Num cenário em que pessoas sobreviventes da infecção fiquem imunes àquele agente, sua proporção cresce e a transmissão se torna cada vez mais rara. Assim, a curva, que vinha subindo, fica horizontal e começa a cair, podendo até mesmo chegar a zero, situação em que o agente deixa de circular.
Em populações grandes, é muito raro que uma doença seja completamente eliminada desta forma, por isso a incidência cresce novamente de tempos em tempos. Quando a quantidade de pessoas que não se infectaram, somada à dos bebês que nascem e pessoas sem imunidade que vieram de outros lugares é suficientemente grande, então a curva sobe novamente.
É assim, de forma simplificada, que a ciência entende a ocorrência periódica de epidemias de doenças infecciosas agudas. A história nos ilustra com numerosos exemplos, como varíola, sarampo, gripe, rubéola, poliomielite, caxumba, entre muitos outros. Dependendo das características da doença e da sociedade, são ciclos ilustrados por sofrimento, sequelas e mortes. Realmente, nesses casos, é possível estimar a duração das epidemias e, em alguns casos, até mesmo prever as próximas.
A saúde pública tem diversas ferramentas para interferir em muitos desses casos, indicados para diferentes mecanismos de transmissão, como saneamento, medidas de higiene, isolamento, combate a vetores, uso de preservativos, extinção de fontes de contaminação, vacinas e tratamentos capazes de eliminar os microrganismos. A vacinação, ação específica de saúde considerada mais efetiva, simula o que acontece naturalmente, ao aumentar a quantidade de pessoas imunes na população até que a doença deixe de circular, sem que para isso pessoas precisem adoecer.
No caso da Covid-19, há estimativas de que para a doença deixar de circular intensamente será preciso que cerca de 70% da população seja infectada. Isso se chama imunidade coletiva (também se adota a desagradável denominação “imunidade de rebanho”). Quanto à situação atual de disseminação do coronavírus Sars-CoV-2, a Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que até a metade de abril apenas de 2% a 3% da população mundial terá sido infectada. Estimativas para o Brasil são um pouco inferiores a essa média.
Trocando em miúdos, para que a doença atinja naturalmente seu pico no país e comece a cair, será preciso esperar que 140 milhões de pessoas se infectem. A mais conservadora (menor) taxa de letalidade encontrada nas publicações sobre a Covid-19 é de 0,36%, mais ou menos um vigésimo daquela que os números oficiais de casos e mortes revelam. Isso significa que até o Brasil atingir o pico, contaremos 500 mil mortes se o sistema de saúde não ultrapassar seus limites —e, caso isso aconteça, um número muito maior.
Atingir o pico é sinônimo de catástrofe, não é uma aposta admissível, sobretudo quando constatamos que já está esgotada a capacidade de atendimento hospitalar em várias cidades, como Manaus, Rio de Janeiro e Fortaleza —outras seguem o mesmo caminho.
A única perspectiva aceitável é evitar o pico, e a única forma de fazê-lo é com medidas rigorosas de afastamento físico. A cota de contatos entre as pessoas deve ficar reservada às atividades essenciais, entre elas saúde, segurança, cadeias de suprimento de combustíveis, alimentos, produtos de limpeza, materiais e equipamentos de uso em saúde, limpeza, manutenção e mais um ou outro setor. Alguma dose de criatividade pode permitir ampliar um pouco esse leque, desde que os meios de transporte e vias públicas permaneçam vazios o suficiente para que seja mantida a distância mínima entre as pessoas.
O monitoramento do número de casos e mortes, que revela a transmissão com duas a três semanas de defasagem, deverá ser aprimorado e utilizado em conjunto com estudos baseados em testes laboratoriais para indicar o rigor das medidas de isolamento.
Se conseguirmos evitar a tragédia maior, vamos conviver com um longo período de restrição de atividades, mais de um ano, e teremos que aprender a organizar a vida e a economia de outras formas, além de passar por alguns períodos de “lockdown” —cerca de duas semanas cada, se a curva apontar novamente para o pico.
Hoje, a situação é grave e tende a se tornar crítica. O Brasil é o país com a maior taxa de transmissão da doença; é hora de ficar em casa e, se for imprescindível sair, fazer da máscara uma parte inseparável da vestimenta e manter rigorosamente todos os cuidados indicados.
* Claudio Maierovitch Pessanha Henriques é médico sanitarista da Fiocruz Brasília, foi presidente da Anvisa (2003-05) e diretor de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde (2011-16). Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 6/05/2020.