Artigo de Nelson Rodrigues dos Santos *
Vejo as militâncias “Reforma Sanitária Brasileira (RSB)” e “Sistema Universal de Saúde (SUS)”, crescendo quantitativa e qualitativamente nos 30 anos do SUS, já na terceira geração de militantes. Sob várias características onde destaco a tenacidade e, crescentemente, a perplexidade, está atingindo também militantes das segunda e primeira gerações, onde me incluo. Mais ao final comentaremos brevemente essas militâncias, e desde já vale lembrar que no surgimento do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, em meados dos anos 70, foi marcante a produção teórica aprofundada em torno dos determinantes sociais da saúde e dos modelos de intervenção na qualidade de vida incluindo a saúde, dos saberes na sociedade e da autonomia da cidadania.
Nos três próximos parágrafos, desde o cotidiano até a macro política global, e ciente do viés pessoal, exemplificaremos constatações, indagações e instigações que essas militâncias vêm vivenciando, interpretando e reagindo nesses 30 anos, auxiliadas por seus membros mais estudiosos que vem oferecendo farto apoio técnico e teórico.
Nos anos 80 acontecia em nosso país exuberante mobilização social, com notável ascensão democrática geradora da Constituição de 1988 – que explicitou a construção do Estado de Bem Estar Social (EBES) brasileiro lastreado por promissor Orçamento da Seguridade Social, além do Orçamento Fiscal. Simultaneamente, em escala global do capitalismo, estava sendo engendrada consistente e poderosa macro articulação, o “Consenso de Washington” onde, no elenco de pactos, o EBES foi assumido como inimigo principal. Houve relação entre esses dois comprovados fatos históricos? Se houve, porque e como, e quais os desdobramentos? Quanto ao SUS, descortinando nosso olhar aos seus 30 anos, nos damos conta que infindáveis estudos e pesquisas com base em evidências comprovam a imposição uniforme ao longo desses 30 anos, do drástico sub financiamento federal, concomitante à massiva privatização na sua prestação de serviços assistenciais remunerados pelo orçamento público, ao massivo subsídio federal, às empresas dos planos privados de saúde, à construção implícita de arranjo público-privado assistencial compensatório iníquo, e a intransponíveis barreiras contra a implementação do modelo de atenção com base nos direitos de cidadania. Há relação causal e/ou casual e/ou sinérgica e/ou conflitiva entre essas evidências? Quais? Quais os modelos explicativos mais realistas e referenciais teórico-conceituais que poderão embasar compreensões mais realistas e lúcidas, voltadas para formulações e reformulações no âmbito da recriação e reconstrução de um Estado de Bem Estar Social no planeta “globalizado”?
Ainda tomando como base a grande mobilização da sociedade brasileira nos anos 80, tida como a maior da sua história, análises posteriores destacam a constatação de desmobilização, a partir dos anos 90, dos movimentos realizados nos anos 80, em especial quanto à continuidade e aprofundamento dos objetivos e realizações voltados para a democratização do Estado, por um projeto de nação debatido com a sociedade e reformas estruturais. Simultaneamente, nos anos 90, setores da sociedade e tendências políticas que se opuseram à ditadura em nome do combate à hiperinflação, quebraram a grande unidade política e social que derrotou a ditadura e debateu a Constituição cidadã. Assumiram eleitoralmente o poder federal em alianças que foram se evidenciando, tanto com o moderno sistema bancário-financeiro, como com as atrasadas oligarquias regionais ainda poderosas. Essas análises destacam também que os eleitos engendraram maiorias no Executivo e Legislativo que centralizaram o “seu” projeto de nação e de reformas estruturais sem amplo debate e legitimação pela sociedade, relegando ao esquecimento a bandeira da democratização do Estado. Essas análises procedem e correspondem às constatações históricas e sócio-políticas mais verídicas? Há também constatações e análises de que o debate eleitoral de 2002 reabriu espaço para as bandeiras da retomada de ampla participação social no debate e legitimação de um projeto de nação, com democratização do Estado e reformas estruturais. Mas que a partir de 2003, concomitante à impactante e extremamente positiva inclusão social pela capacidade de consumo com a elevação do salário mínimo acima da inflação, o bolsa-família e outras inclusões, aquelas mesmas bandeiras transformadoras – projeto de nação, reformas estruturais e democratização do Estado – permaneceram reféns da suposta delegação da sociedade civil ao mesmo engendramento de maiorias no Executivo e Legislativo, ora completando 30 anos.
Voltando aos anos 90, nos primeiros anos dessa década foi sendo consolidada e formalizada a adesão das estruturas e centrais sindicais, referentes aos trabalhadores do setor privado e público, ao mercado dos planos privados de saúde regiamente subsidiados pelo orçamento federal, cuja formalização e palco efetivo de lutas e negociações são os dissídios anuais no âmbito da Justiça do Trabalho, o que também vem ocorrendo nos 30 anos do SUS. Retomando à desmobilização social nos anos 90 antes referida, emerge a presunção dessa desmobilização estar sendo outro fator negativo à implementação das diretrizes legais do SUS, já que o controle social (do Estado pela sociedade), reconhecido historicamente para continuar exercido diretamente pelas entidades e movimentos sociais, acrescido e fortalecido pela atuação dos conselhos e conferências de saúde, passou a ser exercido quase que exclusivamente por esses órgãos, que integram a estrutura “deste” Estado, que não é operador de projeto de nação debatido e aprovado pela sociedade civil, nem democratizado, nem passando por reformas estruturais para o desenvolvimento e bem estar social. Outra vez a pergunta: essas análises procedem, correspondem ás constatações históricas e sócio-políticas mais verídicas? Segue o último exemplo de constatações e indagações: houve subestimação de nossa parte, do potencial do neoliberalismo em recriar o capitalismo com estruturas e estratégias globalizadas, exponenciando a acumulação e concentração, após os freios históricos do século 20, colocados pelo “real-socialismo” e pelos EBES?
Essa amostra de constatações e indagações vem sendo objeto de grande instigação e crescente produção de estudos, pesquisas, conhecimentos e instrumentos de intervenção nos 30 aos do SUS. O suporte dessa rica produção deu-se nos anos 70 com a rica produção teórica referida no início deste texto, de intelectuais sanitaristas, sociólogos e outros no bojo das lutas pelas liberdades democráticas e da fundação do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES). Este movimento ou militância da RSB foi se qualificando, aprofundando e avolumando com a realização de simpósios nacionais de políticas de saúde na Câmara dos Deputados, na criação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres) e outras entidades, na articulação Ministério da Saúde e da Previdência e Assistência Social, nas Ações Integradas de Saúde (AIS), nos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde nos Estados (SUDS), 8ª Conferência Nacional de Saúde, Comissão Nacional da Reforma Sanitária, Constituinte etc., até nossos dias. Neste riquíssimo processo de produção de conhecimentos e formulação de estratégias, reconhecido nacional e internacionalmente, estão engajados nossa mais respeitada Academia, institutos de pesquisa, o CEBES, Abrasco, Abres, Associação Paulista de Saúde Pública (APSP), Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde (AMPASA), Rede Unida (RU), Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e outras, além dos ricos estudos, pesquisas e formulações requeridos pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), Conselhos de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS) e Conselhos de Saúde e suas publicações.
Contudo, a avaliação da implementação das diretrizes legais do SUS nos seus 30 anos nos obriga a estudar e avaliar em maior amplitude e realidade, as estratégias e resultados das forças sócio-políticas no exercício da sua franca hegemonia, ao nível globalizado e nacional, nesses 30 anos: penosa realidade que atinge os direitos de cidadania contemplados na Constituição de 1988. Todas as constatações e indagações apresentadas nos 2º, 3º, e 4º parágrafos deste texto, estão demandando análises e reflexões mais abrangentes, aprofundadas e articuladas entre si, voltadas para um campo maior de compreensão, com necessário aprofundamento teórico-conceitual. Um primeiro desdobramento seria o embasamento mais realista e adequado às formulações de estratégias implementadoras das políticas públicas universalistas para os direitos de cidadania. Muito importante iniciativa nessa direção foi a elaboração do livro “Teoria da Reforma Sanitária: Diálogos Críticos” a ser lançado brevemente, com oito oportuníssimos capítulos elaborados por seis dos mais avançados estudiosos, pensadores e analistas da RSB (dentre dezenas de pares gerados nestes 30 anos), coordenado pela nossa emblemática Sonia Fleury¹. Recomendamos enfaticamente.
Por último, devemos levar em conta um acontecimento ao longo dos anos, extremamente positivo no interior do SUS, que é a adesão à sua doutrina e ao valor da solidariedade e direito humano, que ao longo dos anos foi se desenvolvendo na prática da prestação de serviços, nos corações e mentes da maioria do pessoal de saúde: os profissionais de saúde, demais trabalhadores do SUS, gestores descentralizados, conselheiros de saúde, estagiários, monitores e outros. Apesar das dolorosas insuficiências, da repressão de demanda, das doenças/sofrimentos/óbitos/atos assistenciais evitáveis no dia a dia, neles vem se acumulando o testemunho e sentimento do que conseguem fazer diariamente de bom para a população que deles necessita. Isso acontece diariamente na atenção básica, na saúde mental, na vigilância em saúde, na saúde do trabalhador, na AIDS, no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), nos transplantes, nas doenças do sangue etc., ainda que no desumano limite imposto pela política hegemônica. Essa maioria do pessoal de saúde do SUS, ao longo das décadas e gerações, acabou por assemelhar esse testemunho e sentimento a uma resiliência a favor da população e das diretrizes legais do SUS, uma verdadeira militância que chamamos “militância SUS”: mais de 1 milhão de pessoas no território nacional, servidores públicos e também o pessoal terceirizado precarizado. Boa parte da militância RSB referida anteriormente é superposta à militância SUS e essas duas militâncias vêm atuando sinergicamente na história da RSB e do SUS, testemunhando na prática a vigência de um projeto civilizatório. Pelos tempos de perplexidade para a RSB e o SUS, recomendamos, também enfaticamente, o oportuníssimo e muito didático texto recém elaborado, Políticas Sociais e Austeridade Fiscal. Como as Políticas Sociais são Afetadas pelo austericídio da agenda neoliberal no Brasil e no Mundo” (Vieira,FS; Santos,IS; Ocké-Reis,CO e Rodrigues,PH. CEBES, 2018). Por final, na pessoa de Gastão Wagner, grande símbolo da dupla militância RSB e SUS, homenageio os organizadores e militâncias do próximo Abrascão e dos congressos das demais entidades da RSB e do SUS.
¹ Sonia Fleury, professora e pesquisadora há 35 anos com o maior currículo de ensino e pesquisa na EBAPE/FGV, foi demitida neste mês de Março sob justificativa de “mandato para fazer renovação”. Tempos de maior obscurantismo.
*Nelson Rodrigues dos Santos é militante histórico e referência nacional e internacional da Reforma Sanitária Brasileira. Também é membro do Conselho Consultivo do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde-CEBES e Presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado-IDISA.