O debate sobre a pandemia de Covid-19 envolve diversas dimensões que envolvem toda a complexidade da vida em sociedade. Por ser a maior emergência sanitária dos últimos cem anos, é possível pensar que novos paradigmas adentrem o tecido social e tragam novas formas de convivência. Nesse cenário, a dimensão da cultura também passa por um processo de ressignificação. E foi toda essa complexidade das mudanças culturais em nossa sociedade que o painel Cultura e sociedade no enfrentamento à pandemia de Covid-19 trouxe no dia 26 de junho. Para realizar o debate, estiveram presentes Juca Ferreira, sociólogo e ex-ministro da Cultura; Rosana Onocko, vice-presidente da Abrasco e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/Unicamp);Tadeu de Paula, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DESCOL/UFRGS); Inara do Nascimento Tavares, professora do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e integrante do Grupo Temático Saúde Indígena da Abrasco. A coordenação do evento foi de Tatiana Gerhardt, vice-presidente da Abrasco e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DESCOL/UFRGS).
Guerra cultural e negacionismo
O ex-ministro da cultura, Juca Ferreira, abriu o debate abordando a “guerra cultural” promovida pelos setores de extrema direita: “Estão escorrendo da política para criar um clima cultural para negar todos os valores democráticos que a humanidade conquistou da metade do século passado para cá”. Essa política do ódio afeta inclusive as respostas à pandemia: “Eles questionam a ciência, o conhecimento da saúde, as orientações dos cientistas sobre como enfrentar a pandemia”. Todas essas questões apontam a necessidade de construção de uma nova democracia, segundo o sociólogo: “A direita está trabalhando para destruir toda criação cultural e artística brasileira. A esquerda vai ter que trabalhar no sentido de reconstruir, inclusive no campo do estado, saindo de um Estado etnocêntrico para um Estado democrático”.
A importância de outras cosmologias foi apontada por Tadeu de Pula como elemento fundamental para repensar a sociedade e os valores que a constroem de longa data: “Esse debate de cosmologia tem uma função, que não é criar uma resposta imediata à pandemia. Mas mostrar um problema que a pandemia evidencia que é a falência de uma cosmologia que nos trouxe até aqui e tem se mostrado muito inábil em responder ao que ela produziu”. Tadeu dialogou com as construções de saberes indígenas, nagô e de outros povos que apostam numa construção coletiva. Por fim, o professor apontou como negacionismo e necropolítica dialogam de forma estruturante no Brasil: “O negacionismo é estruturante da cultura hegemônica no Brasil. É uma cosmologia que se organiza para a morte que ela vai produzir. É a dura realidade intransponível”.
Dialogando com elementos da psicanálise, Rosana Onocko trouxe a necessidade de construção de uma “cultura-revolta” no cenário brasileiro. Segundo a professora da Unicamp, a desigualdade que ficou ainda mais escancarada na pandemia é um elemento importante da construção social do país: “Podemos usar a palavra barbárie para a grande desigualdade e para a violência que mata jovens nas periferias do Brasil? Eu acho que sim. E a Covid-19 se instala no país com esse pano de fundo”. Rosana abordou a dificuldade do momento inclusive na impossibilidade de rituais de luto e apontou uma necessidade: “Precisamos multiplicar os espaços culturais em que se possa brincar. Uma cultura que permita a construção de uma brasilidade, de uma felicidade possível. Que as injustiças possam ser denunciadas e as reparações possam acontecer”.
“Estamos resistindo há mais de 500 anos”
Inara do Nascimento apresentou um rap composto por indígenas do Rio de Janeiro e que fala sobre as lutas dos povos indígenas e o cenário atual na pandemia. Após a música, Inara pontuou: “ Nós somos um povo que está em risco há mais de 500 anos e estamos resistindo há mais de 500 anos. Quando eu ouço o rap dizer isso, penso o quão potente são as nossas formas de mobilizar nossas culturas e de usar outros saberes e isso é uma ruptura colonial”. A fala da indígena apontou diversos pontos da resistência dos diferentes povos, o racismo estrutural e a política genocida do atual governo brasileiro: “Temos um governo que assume postura genocida e os povos indígenas têm postura autônoma de precaução e cuidados com a própria saúde. Enquanto falavam em lockdown, nós já fazíamos barricadas nas entradas de nossas terras”. Os rituais de luto e a construção de uma memória sobre este momento de pandemia finalizaram a fala de Inara, que trouxe a construção que está sendo feita por diversas organizações indígenas: “criamos um comitê nacional pela vida e memória indígenas, que reúne lideranças e parceiros para guardar informações e refletir sobre a Covid-19 em territórios indígenas”.
Assista a íntegra do painel na TV Abrasco: