A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou recentemente que o novo coronavírus (2019-nCoV) representa uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). A designação foi usada anteriormente somente em cinco ocasiões: gripe suína H1N1 (2009), poliomielite (2014) , Zika (2016) e Ebola (2014 e 2019). Em um texto publicado na revista norte-americana The Atlantic, o jornalista Ed Young sinalizou que a nova crise é “o tipo de epidemia que devemos esperar”, considerando o estado do mundo – o contexto social, político e econômico – em 2020.
O artigo The New Coronavirus Is a Truly Modern Epidemic (“O novo coronavírus é uma autêntica epidemia moderna”) aponta que o vírus se dissemina tão rapidamente quanto informações incorretas e que essas epidemias do século XXI também são espelhos que refletem a sociedade: ” No novo coronavírus, vemos um mundo mais conectado do que nunca pelas viagens internacionais, mas que também sucumbiu ao crescente isolamento e xenofobia”. Leia o artigo traduzido pela Comunicação da Abrasco, abaixo:
Na quinta-feira, Nahid Bhadelia deixou a zona rural de Uganda, onde estava ajudando a criar um centro para estudar vírus como o Ebola. Antes de partir, ela foi bombardeada de perguntas preocupadas sobre quando o 2019-nCoV – o novo coronavírus que se espalhou rapidamente pela China – apareceria lá. O vírus já havia atingido 23 outros países e, quando Bhadelia – médica especialista em doenças infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de Boston – chegou a Amsterdã na manhã de sexta-feira para uma conexão, ela notou que um quarto das pessoas no aeroporto de Schiphol parecia estar usando máscaras no rosto. Quando desembarcou em Paris para uma segunda conexão, ela fez uma pausa para lidar com a enxurrada de tweets e e-mails que estava recebendo sobre o novo vírus. “Não estou tão preocupada com a doença quanto estou com as reações das pessoas a ela”, disse-me Bhadelia pelo Skype. “As pessoas estão pirando”.
O vírus surgiu na cidade de Wuhan em dezembro e já infectou mais de 17.200 pessoas. A grande maioria dos casos ocorreu na China continental, mas mais de 140 foram detectados em outros lugares. Pelo menos 361 pessoas morreram na China e uma nas Filipinas. Em resposta, a Organização Mundial da Saúde declarou recentemente uma “emergência de saúde pública de interesse internacional” (ESPII) – uma designação usada em cinco ocasiões anteriores para epidemias de gripe suína H1N1, poliomielite, Ebola, Zika e Ebola novamente . A invocação de um ESPII é um sinal de que o novo coronavírus deve ser levado a sério – e como a sexta invocação em pouco mais de uma década, é um lembrete de que vivemos em uma época de epidemias.
Cada nova crise segue um roteiro familiar, enquanto cientistas, epidemiologistas, profissionais de saúde e políticos correm para caracterizar e conter a nova ameaça. Cada epidemia também é diferente, e cada uma é um espelho que reflete a sociedade que afeta. No novo coronavírus, vemos um mundo mais conectado do que nunca pelas viagens internacionais, mas que também sucumbiu ao crescente isolamento e xenofobia. Vemos um tempo em que a pesquisa científica e a demanda por notícias, a disseminação de informações erradas e a disseminação de um vírus acontecem em um ritmo incessante e intenso. A nova crise é o tipo de epidemia que devemos esperar, dado o estado do mundo em 2020. “É quase como se o conteúdo fosse o mesmo, mas a amplitude fosse diferente”, disse Bhadelia. “Existe apenas um frenesi maior, e isso é uma função da doença ou uma função do mundo transformado? Não está claro. “
Certamente, a nova epidemia cresceu em um ritmo sem precedentes na história recente. A contagem oficial de casos mais do que triplicou na semana passada, de 4.500 na segunda-feira para mais de 17.200 agora. Em Wuhan, o número de pessoas doentes está sobrecarregando o sistema de saúde, os kits de testes são escassos e os hospitais estão tão cheios que alguns pacientes estão sendo enviados para casa para se colocarem em quarentena, segundo Amy Qin, do The New York Times. O vírus parece ter eclipsado rapidamente a SARS, que infectou apenas 8.100 pessoas ao longo de oito meses em 2002 e 2003.
Mas vários especialistas observam que essa comparação é enganosa. O SARS atingiu um mundo que desconhecia a distância e a velocidade de propagação de um novo vírus, e que não estava preparado para essa ameaça. Muitos casos provavelmente nunca foram registrados porque os testes demoravam a chegar e as pessoas afetadas não estavam doentes o suficiente para procurar tratamento. Em contraste, o pânico sobre o novo coronavírus pode levar a um aumento em casos conhecidos “porque as pessoas estão mais conscientes disso e relatam sua doença e procuram exames”, diz Angela Rasmussen, virologista da Universidade de Columbia.
Os testes de diagnóstico já estão disponíveis para 2019-nCoV, mesmo que o vírus ainda não tenha um nome oficial [2019-nCoV é um nome temporário]. Nos EUA, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças já enviaram kits de teste para laboratórios estaduais. Na China, milhares de pessoas estão sendo testadas todos os dias, e esse ritmo aumentará quando terminarem a construção de dois novos hospitais. Mais testes significam que, além dos casos de infecções muito recentes, os médicos começarão a identificar as pessoas que pegaram o vírus mais cedo, mas que ainda não foram diagnosticadas – uma tendência que inevitavelmente leva a números crescentes. “Não é que estamos recebendo tantos casos novos todos os dias”, diz Maia Majumder, epidemiologista da Harvard Medical School e do Boston Children ‘s Hospital. O número de casos está aumentando porque o sistema médico não está apenas detectando o vírus, mas também, de maneira tranquilizadora, diminuindo a distância entre infecção e diagnóstico.
Entretanto, o número de novas infecções está mesmo aumentando. “Estamos obtendo números mais rapidamente, mas isso ocorre em parte porque há mais números”, diz Tom Inglesby, especialista em segurança da saúde da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg. “Não é apenas um viés de observação. É uma doença real em movimento. ”E esse movimento está mais fácil do que nunca: o número de pessoas que viajam de avião todos os anos mais do que dobrou desde o surgimento da SARS, em 2003.
A capacidade dos cientistas descobrirem uma nova ameaça também aumentou consideravelmente: O zika se espalhou pelas Américas por 16 meses antes que alguém soubesse que estava lá. O ebola se espalhou pela África Ocidental por vários meses antes que qualquer pesquisador conseguisse sequenciar seus genes. Mas desta vez, em questão de semanas, os pesquisadores reconheceram um novo vírus respiratório no meio da temporada de gripe, identificaram-no como um coronavírus, isolaram-no, sequenciaram seu genoma dezenas de vezes e descobriram como ele adere às células humanas. “Eu nunca vi nada assim antes”, diz Majumder. Pesquisadores (e a OMS) elogiaram particularmente os cientistas chineses por sua velocidade e transparência na liberação de genomas virais e dados clínicos. A China foi fortemente criticada por ocultar e subestimar informações durante o surto de SARS. Desta vez, “é um jogo completamente diferente”, diz Rebecca Katz, especialista em segurança da saúde da Universidade de Georgetown. “Há uma quantidade enorme de informações sendo compartilhadas”.
Apesar dessas informações, muitas incógnitas permanecem. Quão transmissível é o vírus? Uma vez infectado, quanto tempo passa antes que as pessoas mostrem sintomas e qual a probabilidade de morrerem? Quais pessoas estão mais em risco? Parece que, em média, as pessoas infectadas espalham o vírus para outras duas ou três. Até o momento, apenas uma minoria das pessoas infectadas ficou gravemente doente e a maioria delas era idosa ou tinha complicações médicas anteriores. Mas ainda existem muitas incertezas – e isso é totalmente normal. “Essas são as mesmas perguntas que você faria em todos os surtos de todos os tempos – e, como se trata de um vírus novo, estamos recebendo muitas respostas rapidamente”, diz Katz.
A velocidade incomum da descoberta decorre em parte de caminhos melhores para a comunicação científica. Na última década, os cientistas desenvolveram portais abertos para compartilhar e analisar genomas virais, usaram servidores para publicar rapidamente novos artigos e criaram redes ricas no Twitter e em outras mídias sociais. Os pesquisadores podem compartilhar dados e refinar idéias mais rapidamente do que nunca, mas estão fazendo isso à vista de cidadãos preocupados. “Você quer o fluxo livre de informações científicas, mas essas informações estão sendo compartilhadas com o público na mesma velocidade, enquanto a comunidade científica ainda as está digerindo”, disse-me Bhadelia.