Com nomes de peso e um auditório lotado, mostrando que o assunto está em evidência não só no mundo acadêmico, mas também no dia a dia das pessoas, o Abrascão 2018 recebeu na tarde de sexta-feira, 27/07, a mesa redonda “Enfrentando a interferência da Indústria do tabaco, álcool e alimentos nas politicas públicas”, que teve como participantes Paula Johns, da Associação de Controle do Tabagismo, Promoção da Saúde e Direitos Humanos, Inês Rugani, do Instituto de Nutrição da Uerj, e Francisco Inácio Bastos, do Laboratório de Informação e Saúde (Lis) do Icict/Fiocruz. A mesa foi mediada por Silvana Rubano Turci, da Ensp/Fiocruz.
Tabaco & mídia
A primeira a falar foi Paula Johns que fez um panorama da Convenção-Quadro da OMS para Controle do Tabaco (CQCT/OMS), adotada em 2003 e em vigor a partir de 2005, ratificada por mais de 181 países, e a sua importância. Ela destacou que a Convenção acabou por reconhecer a interferência da indústria do tabaco como principal obstáculo para a implementação de políticas públicas de combate ao tabagismo. Segundo Johns, a Convenção mostrou “a urgência para se tratar do tema, que é uma pandemia de saúde pública e possibilitou, dentre outros pontos, a criação de coalizações e alianças globais, regionais e locais na luta contra o uso do tabaco”.
Um dos destaques de sua apresentação foi a exibição das formas utilizadas pela indústria do tabaco para manter o seu poder e influência junto ao poder público e também à população de forma geral. Ela lembrou algumas estratégias já detectadas pelos ativistas como o patrocínio institucional de grandes eventos, inciativas de responsabilidade social empresarial (como campanhas para combate ao câncer, por exemplo), estratégias inovadoras de marketing, ações judiciais movidas contra pesquisadores que estudam a associação entre o câncer e o tabaco, o lobby em congressos e assembleias de governos, dentre outras.
Outro ponto que gerou bastante surpresa na plateia foi quando Paula Johns citou uma análise realizada pela publicitária Regina Bessa sobre a campanha “Talvez Marlboro”, que em suas conclusões levaria a uma indução do foco para uso do tabaco para jovens a partir dos 12 anos, pois “o grande poder metafórico: liberdade, felicidade e maturidade explorados pela indústria apontam sempre para o uso do cigarro”
Johns alertou aos presentes para ficarem atentos as estratégias utilizadas pela indústria do tabaco, “em defesa de seus interesses, seja no sentido de ampliar mercado (de consumo) ou evitar quaisquer restrições ao uso do tabaco”.
Corporações alimentícias
Na mesma linha de denúncia, Inês Ruganni mostrou as estratégias de interferência da indústria de alimentos nas políticas públicas, chamando a atenção para o que não se fala na agenda da alimentação e nutrição como, por exemplo, o reconhecimento de que as corporações são atores sociais e têm um “avassalador poder econômico”. A pesquisadora da Uerj lembrou os dois grandes eixos que pautam a questão no Brasil: “a alimentação como prática social, articulada com os padrões de consumo contemporâneos e a mudança estrutural do sistemas agroalimentar brasileiro, associado com o modelo de desenvolvimento vigente”.
Ela citou o Encontro Regional para o Enfrentamento da Obesidade Infantil, realizado em 2017, que em suas conclusões finais chamou a atenção para “a grande barreira a ser superada é a resistência dos setores econômicos envolvidos (por exemplo, indústrias de alimentos não saudáveis e a mídia) e de membros do poder público ligados a estes setores econômicos”. Ruganni defendeu enfaticamente a regulação das informações dos alimentos no rótulo dos produtos, “o cidadão tem direito a saber o que está comendo”, afirmou.
A pesquisadora da Uerj destacou – a partir de um estudo feito por Mialon, Swinburn, Sacks, em 2015, as estratégias de ação política corporativa usadas pela indústria de alimentos para influenciar as políticas públicas e os resultados da saúde pública, tais como: lobby junto a tomadores de decisão; promoção da desregulamentação; promoção e financiamento de incentivos a partidos políticos e tomadores de decisão; estabelecimento de relações com formuladores de políticas, mídia, organizações de saúde e tomadores de decisão; influencia sobre o desenvolvimento de acordos comerciais e de investimento; uso de ação legal – ou ameaça de utilização – contra políticas públicas ou opositores; desenvolvimento e promoção de alternativas às políticas públicas, por exemplo, autorregulação; critica aos defensores da saúde pública (seja por meio de artigos de pesquisadores que defendam à indústria alimentícia, seja por meio de intimidações judiciais, com ações movidas pelas empresas alimentícias, dentre outras. Ruganni levantou também a “desnaturalização” do debate como uma das estratégias da indústria alimentícia. Segundo ela, isto é feito ao se contrapor “questões técnicas/tecnológicas e questões econômicas/políticas”.
Inês Ruganni afirmou que é preciso “produzir conhecimento sobre o tema e praticar ‘advocacy’ pró-agenda regulatória, construindo o discurso com argumentos, disputando conceitos”. Ela finalizou sua apresentação afirmando que: “As corporações não podem ser mais fortes que as nações. O que está em jogo é o poder”.
Álcool e jovens
Para encerrar o debate, o pesquisador Francisco Inácio Bastos lançou mão de sua perspectiva como epidemiologista. Ele falou das “falsas ideias” que existem sobre autoregulação e a “visão ingênua do Brasil sobre o que é mercado e o que é desregulação”. Como exemplo, ele citou duas situações recentes: “insólito parecer americano sobre a equivalência entre o leite humano e o produzido pelas indústrias, em termos de mesma qualidade nutricional” e “suspensão do maior estudo sobre álcool feito no mundo, por ingerência da indústria do álcool nos EUA”. Segundo Bastos, fatos que mostram que “a indústria dos alimentos e do álcool com capacidade camaleônica de agir”.
Bastos falou sobre a epidemia de opioides nos Estados Unidos, que tem levado a morte milhares de americanos e vem preocupando as autoridades de saúde pública locais, com “dois óbitos por dia”. “A indústria farmacêutica fez a propaganda dos chamados analgésicos perfeitos, que não gerariam dependência, vendidos sem controle, e hoje, deu no que deu”, afirmou, mostrando a correlação entre a epidemia que assola os EUA e o alto consumo desses medicamentos pela população.
Em relação à indústria do álcool no Brasil, Bastos afirmou que não há nenhuma regulação. Ele lembrou que a indústria do álcool promove “um pouco de tudo, desde eventos esportivos, competições em faculdades, que inclusive, já tiveram vítimas fatais ou competições de quem consegue beber mais em pouco tempo, como se isso fosse um esporte.” Ele chamou a atenção para o fato de a cerveja estar fora da regulação da propaganda de álcool, citando o caso das cervejas não alcóolicas – “uma forma de a população que nunca consumiu álcool antes, já ir se acostumando com o sabor do malte e, indiretamente, ser introduzida às bebidas alcóolicas” – e as cervejas artesanais, “uma inovação que não se têm como saber o teor alcóolico que está nelas”.
“A indústria não se reconfigura por acaso, porque ela recruta profissionais excelentes para trabalhar para ela, com salários altos. Essa reconfiguração não é casual ou inocente”, destacou. “A ideia seria que várias iniciativas de autorregulação resolveriam o problema, o que as duas colegas antes de mim já demostraram que não é verdade. É uma crise da completa incapacidade de autorregulação de todos esses mercados”, afirmou. Ele exemplificou com o caso das chamadas “bebidas alcóolicas adocicadas”, que – segundo ele – “foram realizadas pesquisas que apontam que jovens, em especial adolescentes, e mulheres preferem esse tipo de bebida”. Bastos enfatizou que com isso, a indústria do álcool consegue “incorporar o público adolescente, que no Brasil oficialmente não poderia comprar esse tipo de bebida (alcóolica, liberada apenas para maiores de 18 anos). A ideia é mudar a conformação do mercado, buscando um público que não beba e assim, ampliar as vendas”, explicou.