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“O policial só aperta o gatilho, quem mata é o Estado – que é conivente”

Vilma Reis e Hara Flaeschen

No peito das mães as fotografias de Thiago Rocha, Marcos Luciano de Souza, Ângelo Machado e Thiago da Costa Correia da Silva encheram de pesar o auditório do Instituto de Medicina Social – IMS da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj, na tarde de 30 de outubro.

Todos eles foram assassinados nas comunidades cariocas e a luta destas mães por justiça é o tema do filme Auto de Resistência, exibido e debatido nesta tarde, com a presença da roteirista Juliana Farias e da professora Adriana Vianna, com mediação de Viviane Mattar, do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos da Uerj – CLAM. A produção de duas horas traz declarações de muitas mães que perderam os filhos na guerra travada cotidianamente nos diversos casos de assassinatos e o andamento dos processos mostrando o tratamento dado pelo Estado a esses casos, desde o momento em que um indivíduo é morto, passando pela investigação da polícia, até as fases de arquivamento ou julgamento por um tribunal do júri.

A exibição e o debate são parte da mobilização do IMS para o fim do genocídio da juventude negra e a Abrasco esteve presente para registrar e apoiar este momento de resistência.

Viviane Mattar apresentou a iniciativa como constatação da necessidade “cada vez mais urgente, de aproximar a Universidade com o mundo que usualmente tomamos como nossos campos de estudo. Nas favelas e periferias o auto de resistência é o instrumento para criminalização de vidas e corpos e, consequentemente, para justificar seu extermínio” lamentou Viviane: – “Se viver é um imperativo (e é), a resistência começa nos pequenos atos. Que nosso debate seja guiado por essa ideia: estamos aqui como forma de resistir e como forma de existirmos juntos, no enfrentamento das injustiças, das violências e da crueldade”, evidenciou.

Maria Dalva Correia mãe de Thiago; Bruna Mozer mãe de Marcos Luciano; Rosângela Flora Machado mãe de Ângelo e Ana Amelia Silva Rocha mãe de Thiago Rocha lutam incansavelmente para que os casos não fiquem impunes: – “Meu filho Thiago e os amigos Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento e Everson Gonçalves Silote foram assassinados por policiais militares na Chacina do Borel, todos levaram tiros nas costas e na cabeça, foram 30 tiros ao todo. Thiago trabalhava e estudava, era mecânico formado pelo SENAI, tinha uma filha de 1 ano. Não sei se foi mais difícil sepultar meu filho ou provar que ele não era bandido. Mas mesmo que fosse, se não teve agressão, a polícia não tinha que matar. A polícia tem que prender, não matar. Mas a polícia julga, condena e mata. E acha que a sociedade deu a ela esse direito. Fui ameaçada e intimidada por chamar atenção para a Chacina do Borel, a polícia bateu na minha porta apontando um fuzil, disseram que eu era uma filha da puta porque meu filho era bandido e agora eu iria morrer do mesmo jeito. Mas eu respondi: eu pago teu salário, pago tua farda e ainda pago a bala que você usou pra você subir aqui e matar meu filho” disse Maria Dalva.

Quinze anos depois da Chacina do Borel ninguém foi responsabilizado. Os policiais alegaram legítima defesa e o caso foi registrado inicialmente como “auto de resistência”. Mas com relatos de testemunhas, familiares das vítimas, e evidências forenses as investigações concluíram que os quatro jovens foram executados, que os policiais não agiram em legítima defesa e identificou os policiais responsáveis.

E a sociedade apoia, porque fora da favela bandido bom é bandido morto

“O policial quando aperta o gatilho só aperta o gatilho, quem mata é o Estado – que é conivente. E a sociedade apoia, porque fora da favela bandido bom é bandido morto. E quando a gente consegue colocar os policiais no banco dos réus a gente vê nossos filhos serem mortos de novo. Nos perguntam se eles se fumavam maconha… porque o filhinho da zona sul que fuma maconha é dependente químico mas o que fuma na favela é bandido, é viciado, tem que morrer. Meu filho saiu pra cortar o cabelo e não voltou. Quando o encontrei saí correndo para abraça-lo, agarrei a mão dele, estava gelada. Ele usou aparelho por seis anos e os dentes estavam quebrados pelas balas. Enquanto eu viver vou lutar, pela sua memória, pela sua dignidade e justiça. Já levamos muita porrada. Mas somos resistência” clamou Maria Dalva Correia da Silva, representante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência.

Além de ativista e roteirista do documentário Auto de Resistência, Juliana Farias é ex-aluna da Uerj e pós-doutoranda pelo Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu da Universidade Estadual de Campinas: – “Esta Universidade é um espaço de resistência – quem estudou aqui sabe. E quem estudou aqui também sabe que é com essas mulheres que a gente aprende. É com nossas interlocutoras e interlocutores de pesquisas que a gente aprende, não temos que hierarquizar os saberes, ouvir o que é dito em sala de aula e estar com o ouvido atento a tudo que se fala fora da sala de aula também. A luta dessas mães é fundamental, inspira mulheres de outros cantos do país para seguir em frente e de pé”, explicou Juliana. O roteiro que ela escreveu retrata a engrenagem do Estado e o que os operadores do Direito em suas diferentes esferas de atuação, fazem: – “Como o perito do Instituto Médico Legal preenche o documento do laudo cadavérico? Argumentamos com a equipe cinematográfica que era importante mostrar documentos, como os laudos cadavéricos, porque são esses documentos que as mães carregam nas bolsas – o filme não existiria se não fosse esse saber acumulado, o que fizemos foi cumprir um papel com as nossas pesquisas, valorizando o que produzimos dentro da universidade pública”, reforçou Juliana.

Vou ter que enterrar meu filho pela segunda vez

Bruna Mozer contou como Marcos Luciano morreu aos 19 anos na Favela do Muquiço, em Guadalupe, no subúrbio do Rio de Janeiro: – “Meu filho Marcos Luciano tinha uma filha que completou 1 ano no dia do enterro dele. Também dia 18 de janeiro é aniversário do pai dele. Enterrar o Marcos foi o presente que o Rio de Janeiro deu pra gente, ele levou um tiro nas costas, se entregou para a Polícia e disse “perdi” e eles deram mais um tiro, desta vez na cabeça. Quando cheguei no Muquiço e vi meu filho caído naquele chão eu não conseguia acreditar. Eles poderiam ter levado meu filho preso. Que auto de resistência é esse que a pessoa leva um tiro nas costas e um na cabeça? Ele não morreu em troca de tiros, morreu deitado no chão, já rendido. Para piorar tudo, o Estado enterrou meu filho como indigente. Vou ter que exumar meu filho para colocar o nome dele no atestado de óbito. Vou ter que enterrar meu filho pela segunda vez. Meu filho existe através da minha voz e enquanto eu tiver voz e forças ele estará vivo”.

“Sou mãe de Ângelo Machado, morador do Alemão, trabalhava no hospital do Fundão, tinha 5 filhos, e morreu há dois anos e meio. Ele foi assassinado porque um vizinho agrediu meu marido, Ângelo foi tirar satisfação e a família não teve mais sossego. Esse vizinho começou a perseguir meu filho e um dia, num ponto de ônibus em Pilares ele levantou a arma e deu um tiro no meu filho. Ângelo ainda atravessou a rua quando caiu. O assassino voltou e eu lutei com ele – me agarrei, tentei tirar a arma da mão daquele monstro. Ele me jogou no chão e deu outro tiro no meu filho. Tive que mudar de bairro, abandonar tudo que eu tinha – tudo que lutei para construir ao longo da minha vida. Em fevereiro meu filho vai ser exumado, comprei um nicho pra ele no Cemitério do Caju, e estou nessa luta, junto com as mães vítimas de violência porque tenho 5 netos, o mais novo ainda usa fralda” contou Rosângela Machado.

Nas palavras de Adriana Vianna, professora do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro: – “Entre o fuzil e uma caneta tem uma relação – e a gente vê esse lado, da papelada, das versões, dos adiamentos de julgamento – um tempo que exige dos familiares uma enorme capacidade de resistência… num processo de inversão de quem é vítima – do culpado e do julgado”.

Dois anos depois de ser instalada na Assembleia Legislativa do Rio, a Comissão Parlamentar de Inquérito aprovada para investigar os autos de resistência ocorridos no estado entre 2010 e 2015 voltou à pauta da Casa na tarde da terça-feira 30 de outubro quando o relatório final da CPI foi votado pelos deputados estaduais. O documento de 187 páginas aprovado pelos parlamentares sugere uma responsabilidade compartilhada de todas as instituições envolvidas na segurança pública pelo aumento nas mortes de civis em supostos confrontos com a polícia. O deputado estadual Marcelo Freixo, relator da CPI, lembrou que o relatório reúne vários casos e é dividido em quatro eixos: histórico, com a origem do dispositivo durante a ditadura militar; social, ao tratar do perfil das vítimas dos autos de resistência; institucional, com as responsabilidades das polícias Militar e Civil, do Ministério Público e do Tribunal de Justiça; e, por fim, o relatório apresenta 20 propostas concretas aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para tratar o problema.

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