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O rabo do gato: falácia ou malícia – Artigo de Naomar de Almeida Filho

Naomar de Almeida Filho

Ilsutração: Tatuna G.

Temos em casa um gato branco e grande, sempre limpíssimo, muito tímido, que vive se escondendo. Mas o rabo peludo e farto sempre revela seu esconderijo…

Na postagem anterior, mencionei que uma pessoa séria me havia feito uma consulta. Queria saber se uma tabela que está circulando no Instagram fazia sentido, já que parecia bem elaborada, lógica e sensata. Aqui está a tabela:

Imagem: Divulgação na Internet

De fato, é um quadro relativamente bem-feito, simples e claro. Contém dados reais sobre casos e óbitos, concentração demográfica e temperatura da Itália, Espanha e Brasil. O autor da tabela usa no título a expressão “fatores de risco” e mais adiante “grupo de risco”, uma terminologia epidemiológica. Apresenta indicadores de mortalidade por milhão de habitantes, além de números absolutos de casos e mortes pela COVID-19. Exibe em seguida o que chama de “base lógica de análise”, informando que a mortalidade é maior entre idosos, que pessoas mais próximas implica maior risco de transmissão e que o frio aumenta a sobrevida do vírus. Ao agregar “outras informações” sobre a Itália, como se fossem dados complementares em reforço a seu argumento, o autor comete um erro que revela o rabo do gato: “pré-morbidade” em lugar do termo técnico “comorbidade”. Ao final, tenta reforçar a aparência de seriedade e credibilidade de sua obra ao informar fontes e data da coleta dos dados. E até assina.

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Apesar das aparências, a simpática tabela não faz qualquer sentido, do ponto de vista lógico ou epidemiológico. Mesmo com dados corretos, é erro grosseiro comparar curvas epidêmicas sem padronizar o dia-0 da epidemia. O que aliás é rotina em qualquer avaliação com mínima qualidade técnica. Em geral se usa o momento em que se ultrapassa os primeiros 50 ou 100 casos. Por esse último critério, o dia-0 da Itália foi 23/02, o da Espanha foi 03/03, o do Brasil foi 15/03; portanto, a pandemia da Covid-19 no Brasil está 21 dias atrás da Itália. No dia 27/03, data que o autor da tabela usou para comparar os dados “verdadeiros” dos óbitos por Covid-19, a Itália estava no 33º dia de epidemia, a Espanha no 22º dia e o Brasil no 12º dia. É óbvio que não faz sentido comparar dados entre países em fases tão distintas da curva epidêmica sem padronizar a data de início da curva epidêmica. No 12º dia da pandemia, a Itália tinha 148 óbitos; nessa mesma fase da curva epidêmica, a Espanha tinha 136 mortes.

Na análise de uma epidemia, é totalmente equivocado usar indicadores de mortalidade geral, mais errado ainda se referidos à população total de um país, e ainda pior se o cálculo for feito com dados referidos a etapas tão distintas do processo epidêmico. Os países são diferentes em termos de ocupação territorial e perfil demográfico, situação política e nível socioeconômico, sistema de saúde e, fundamentalmente, capacidade de produzir informações sobre a pandemia. Por todos esses motivos, as curvas são de fato muito diferentes. Mas qualquer que seja o parâmetro, faz sentido tentar achatar ao máximo a nossa futura curva.

Ao gerar curvas epidêmicas, com intenção de análise comparativa, usando os dados mais atuais e padronizando-os pelo início da epidemia, a curva com formato mais parecido com a nossa é a dos EUA, e não a da Itália. Naquele 12º dia de sua curva epidêmica, os EUA tinham apenas 69 casos, mesmo patamar que o Brasil. Portanto, a nossa curva repete a fase inicial não de Itália ou Espanha e sim dos EUA, que já é o novo epicentro mundial da pandemia. E estamos 12 dias atrás dos EUA. Vejam agora a situação desesperadora dos norte-americanos, que pode ser a nossa em duas semanas.

A propósito, a tabela acima, que parece envolta em sensatez e seriedade, insinua que a baixa densidade populacional do nosso país e o clima tropical de grande parte do território brasileiro seriam fatores de proteção. Nessa elaborada enganação, haveria evidências de que a pandemia chegará atenuada ao país tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza, quente, cheio de jovens imunes e desgarrados. Mas realmente, seriamente, não faz qualquer sentido comparar indicadores de referência geral nacional entre países com padrões demográficos tão distintos. Itália e Espanha não têm nada parecido com uma Amazônia ou uma imensa zona de cerrado em seus territórios nacionais. Sobre o outro suposto fator, não há ainda pesquisa com credibilidade que seja conclusiva a respeito do efeito de clima, temperatura, pressão atmosférica, pluviosidade ou luminosidade sobre esse novo habitante do planeta Terra batizado de SARS-CoV-2. Analogias simplórias com o comportamento de outros agentes virais conhecidos não se sustentam do ponto de vista científico. Só saberemos mais durante ou quando a pandemia passar, na medida em que tivermos gerado a massa de dados necessária para avaliar hipóteses desse tipo.

Enfim, trata-se de uma sub-falácia, que sequer chega a ser malícia, de tão tosca. Tive a curiosidade de tentar achar seu autor. Encontrei-o nos meandros obscuros das redes sociais. Mora em Curitiba e apresenta-se como “Empresário, Cristão, Pensador, compartilha filosofias de vida, experiências e pensamentos de #vidacristã #proposito #”. Nada de ciência.

* Naomar de Almeida Filho é vice-presidente da Abrasco e pesquisador 1-A do CNPq. Professor Titular Sênior do ISC/UFBA, ex-Reitor da UFBA e da UFSB e atualmente Professor Visitante no Instituto de Estudos Avançados da USP. Confira o texto original na página do autor nas redes sociais.

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