
Nesta sexta-feira (19), o Sistema Único de Saúde (SUS) completa 35 anos. Em 19 de setembro de 1990, a Lei Orgânica da Saúde (nº 8080) foi sancionada, regulamentando o que viria a ser o maior sistema público de saúde com acesso universal e gratuito do mundo. Considerado a maior política social do Brasil, o SUS revolucionou o direito à saúde num país historicamente desigual.
A Abrasco estava lá desde o começo e trouxe diversas contribuições para o Sistema e as políticas de saúde, como registra o presidente da entidade, Rômulo Paes de Sousa. “A relação da Abrasco com o SUS é de fecundação recíproca. O SUS surge como ideia no interior da Abrasco. A realização do SUS alterou as concepções da Saúde Coletiva”, destaca.
Vem com a gente relembrar um pouco dessa história!
Antes da 8ª Conferência Nacional de Saúde e do 1º Abrascão
Em setembro de 1979, 53 sanitaristas assinaram a ata de fundação da Abrasco – ainda Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva. A recém-criada entidade agregou diferentes correntes ideológicas e propiciou a junção dos grandes nomes da Saúde, à época, e da nova geração de sanitaristas. Surgia assim uma associação científica com forte atuação política, que foi fundamental durante o movimento da Reforma Sanitária e no processo de redemocratização do Brasil, junto a entidades como Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
No contexto da redemocratização, quando a ditadura militar caminhava para seus últimos anos, havia grande insatisfação social com problemas graves que atravessavam o país como a pobreza, as desigualdades e a desassistência na saúde. À época, só quem tinha carteira assinada ou contribuía com a previdência tinha direito a ser atendido. Num país como o Brasil, com grande histórico de informalidade, milhares de pessoas contavam com a própria sorte, com a caridade ou hospitais filantrópicos.
Com essa conjuntura política, a Abrasco inicia uma série de atividades que antecedem a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) e o 1º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (1º Abrascão), que foram espaços fundamentais no debate pré-constituinte, quando o SUS começou a ser desenhado.
- Julho de 1981: Abrasco organiza o 1º Fórum Nacional de Residências Médicas em Medicina Preventiva e Social.
- Outubro de 1981: Abrasco realiza um seminário nacional sobre cursos descentralizados em saúde pública.
- Novembro de 1981: a Abrasco organiza um seminário nacional.
- Abril de 1983: Abrasco realiza um encontro nacional com o lema “A política nacional de saúde”.
Artigo 196 a caminho: a participação da Abrasco na 8ª CNS e a organização do 1º Abrascão
Em janeiro de 1986, a Abrasco abre um dos principais canais de comunicação para interagir com a sociedade: a Comissão de Políticas de Saúde, liderada pela pesquisadora Sonia Fleury, que foi fundamental na formulação das políticas de saúde, baseadas na reforma defendida pela Abrasco e setores da sociedade na saúde.
Logo na sequência, de 17 a 21 de março de 1986, a Abrasco participa da 8ª CNS, evento que pavimentou o caminho para o desenho do texto constitucional com saúde como um “direito de todos e dever do Estado”. A Abrasco se faz presente na histórica Conferência, em Brasília, com cinco delegados oficiais e 15 representantes, que defenderam a reforma no sistema de saúde.
No mesmo ano, em setembro, a Abrasco realizou no Rio de Janeiro (RJ) o 1º Abrascão, que debateu a “Reforma Sanitária e constituinte: garantia do direito universal à saúde”. Estima-se que 2 mil pessoas participaram entre professores, pesquisadores, estudantes, sanitaristas, integrantes de movimentos sociais, políticos, representantes da OPAS e Ministério da Saúde.
O Congresso foi palco de articulação, encontros e formação de redes. Foi o espaço para consolidar discussões feitas na 8ª CNS e culminou com um texto, dividido em seis artigos, que traz a posição da entidade com relação aos princípios e aos elementos mais organizadores do sistema de saúde.
O texto final do 1º Abrascão reconhece avanços no debate de estratégias para implantação da reforma na: estatização e descentralização; ao controle social; ao serviço prestado de forma equânime e universalizado no atendimento integral à população.Os princípios e diretrizes do SUS começam a tomar forma.
Ainda em setembro de 1986, a Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS) foi implementada em Brasília. O objetivo era pensar novos formatos para o sistema de saúde. A partir da “Proposta de conteúdo saúde para a constituição”, elaborada durante o primeiro congresso da Associação, a Abrasco e a CNRS caminharam juntas para a Constituinte, quando a Constituição de 1988 começou a ser elaborada.
Embates, fluxos e frutos: a Constituinte
A Comissão Nacional Constituinte foi instalada em fevereiro de 1987 e no mês de abril começaram as discussões sobre saúde na Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente. Composta por 21 constituintes e 21 suplentes, não havia maioria clara em defesa da Reforma Sanitária. A Abrasco e a Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) foram atores fundamentais durante os debates e articulações políticas.
Nos embates e debates, havia o grupo liderado pela Abrasco e outras entidades, na estatização do sistema de saúde; um grupo que defendia os interesses da iniciativa privada; e um grupo que defendia o modelo vigente, desconfiado de uma possível unificação do sistema de saúde.
A pesquisadora e abrasquiana Sonia Fleury, que participou ativamente desse processo junto a nomes como Hésio Cordeiro, Sebastião Loureiro, Guilherme Rodrigues da Silva, entre outros, relembra o contexto e como os trabalhos eram organizados.
*Sonia Fleury não considera que o SUS aniversaria nesta sexta. A pesquisadora leva em conta a data de aprovação e promulgação da Constituição.
“Era um momento de muitas tensões políticas e a Abrasco teve um papel de grande protagonismo em levar esse debate para a área acadêmica, mas também levar o debate para os vários atores da área da Saúde, construindo essa unidade em torno da criação do SUS. Ou seja, todas as entidades da área da Saúde se reuniam quase que diariamente durante a Assembleia Nacional Constituinte para cada um relatar o que tinha sido feito, com que deputados conversou e tudo mais. Então, houve uma articulação muito grande e a Abrasco esteve presente através de sua diretoria o tempo inteiro”, registrou.
Diretores e membros da Secretaria-Executiva (1983-1985 e 1985-1987). (Em pé) Moisés Goldbaum, José Carvalheiro, Hebe Silva, Katjie Marve, Maria Helena Colaços, Hésio Cordeiro, Sônia Fleury, Tânia e Sebastião Loureiro. (Agachados) João Mendes, Paulo Buss e Eduardo Carvalho. Foto: acervo Abrasco. Painel de votação – Assembleia Nacional Constituinte. Foto: Memória Radis
Abrasquiana, ex-presidente da Fiocruz e ex-ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima organizou dois livros que registram a história e memória da Associação nos aniversários de 25 e 35 anos: “Saúde Coletiva como Compromisso: a trajetória da Abrasco” (2006) e “Saúde Coletiva: a Abrasco em 35 anos de história” (2016), ambos em parceria com o pesquisador José Paranaguá de Santana. A pesquisadora destaca o papel de articulação política desempenhado pela Entidade, que culminou em diversas conquistas sociais presentes no SUS.
“A Abrasco foi um ator fundamental no processo de formulação do SUS, especialmente no período de redemocratização do Brasil. A Abrasco atuou em sintonia com o Movimento da Reforma Sanitária para fortalecer as propostas que seriam discutidas na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. A Conferência consolidou as bases conceituais e políticas para o SUS, e suas diretrizes refletiram a visão dos sanitaristas articulados na Abrasco, da qual destaco três aspectos: a saúde como um direito universal e dever do Estado; o conceito ampliado de saúde, entendida para além da ausência de doença, incorporando fatores sociais, econômicos e ambientais na sua definição (saneamento básico, moradia, trabalho, educação, etc); e participação popular, que se materializou no modelo de controle social”, detalha.
A partir dos debates feitos na 8ª CNS e no 1º Abrascão, a Comissão de Política da Abrasco escreveu a proposta da Associação para a reforma da saúde pública brasileira. O texto foi apresentado na Comissão da Saúde durante a constituinte no dia 29 de abril e foi fundamental na construção do SUS:
- 1) a necessidade de ampliação do conceito de saúde para além da noção de assistência e prevenção;
- 2) o direito à saúde como dever de Estado, e não somente como uma obrigação setorial a ser cumprida por iniciativas pontuais de governo;
- 3) em termos de diretriz organizacional, o comando único em cada esfera de governo como forma de responsabilizar o Estado pela saúde;
- 4) o desenvolvimento de iniciativas que garantissem a integralidade do cuidado;
- 5) a descentralização da gestão do sistema de saúde;
- 6) a participação social como um componente da gestão do sistema.
A Abrasco contribuiu ainda com o desenho do financiamento do SUS, destacando a importância de existir um percentual mínimo do Produto Interno Bruto (PIB) investido, bem como o financiamento da União, estados e municípios. A Associação pautou também a necessidade de estruturar carreiras para os trabalhadores da saúde e a importância das universidades não só como espaço para formação de mão de obra, mas como como lugar de desenvolvimento científico e tecnológico.
1988 e 1990: o SUS é instituído e implementado
Após incontáveis debates, movimentações, articulações e acordos, em 5 de outubro de 1988, a Constituição Federal é aprovada e promulgada. A saúde, pelo artigo 196, passa a ser um direito de todos. Em 19 de setembro de 1990, a Lei Orgânica da Saúde (8080) é sancionada e, com isso, o SUS é regulamentado.
Todos os esforços empreendidos por abrasquianos e abrasquianas valeram a pena. O Brasil conseguiu construir o maior sistema de saúde com acesso universal do mundo, que cuida de mais de 215 milhões de pessoas. Contudo, as articulações e iniciativas para preservar, aprimorar e fortalecer o SUS são constantes.
Para Nísia Trindade, perto de completar 46 anos de existência, a Abrasco se mantém importante e relevante na defesa do direito universal à Saúde. “A importância da Abrasco nessa manutenção e defesa do SUS pode ser entendida em várias frentes: desde sua criação, em 1979, a Abrasco tem sido um polo fundamental de produção de conhecimento sobre o sistema de saúde brasileiro. A Abrasco atua como uma espécie de ‘sentinela’ da Reforma Sanitária, monitorando de perto as políticas governamentais e as ameaças ao SUS. A associação também desempenha um papel crucial na articulação com movimentos sociais, conselhos de saúde e outras entidades, como a Frente pela Vida e impulsionou a consolidação da Saúde Coletiva como área de conhecimento, estimulando a formação e a valorização dos sanitaristas, que são profissionais essenciais para a gestão e a qualificação dos serviços no SUS”, registrou.
A ex-ministra ressalta ainda que a Abrasco transcende a atuação de uma associação científica. “A Abrasco, portanto, não é apenas uma associação acadêmica, mas um ator político fundamental na defesa do direito universal à saúde. É a sua base científica e a sua capacidade de mobilização que garantem que o debate sobre o SUS continue vivo e que a luta pela sua manutenção e melhoria permaneça na agenda pública, em oposição às forças que buscam seu desmonte”, declarou.
Entre os desafios que permanecem estão as iniquidades em saúde, marcas de um país historicamente desigual. A pesquisadora Sonia Fleury considera que, nesse processo de combater as desigualdades, a Abrasco exerce um papel estratégico.
“Eu acho que num país que é um dos mais desiguais do mundo, o SUS, sendo uma política igualitária e universal, ele é necessariamente contra-hegemônico. Ele está sempre lutando contra essa desigualdade que é estrutural. Eu acho que a Abrasco cumpre um papel importante ao construir essa agenda de articulação entre o conhecimento científico e a luta política. Acho que esse é o papel da Abrasco e ela continua exercendo esse papel mobilizando e construindo uma agenda que faça avançar uma proposta igualitária num país tão desigual”, enuncia.
A Abrasco segue firme em defesa do SUS e pelo direito à saúde!
