O relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a situação do Sistema Único de Saúde (SUS), entregue à equipe de transição do governo Lula em 16 de novembro, merece ser conhecido e debatido por todos, tal é a importância que a saúde pública na vida da população brasileira. Nunca é demais lembrar que 70% da população tem o SUS como único meio de prover suas necessidades em saúde e que o conjunto dela se beneficia com suas ações no campo da vigilância epidemiológica e sanitária.
No espaço deste artigo, vamos aqui apresentar e comentar somente os motivos apontados pelo TCU para considerar o SUS alto risco para administração federal. Embora importantes, ficarão para outra oportunidade os comentários sobre o “diagnóstico” por ele feito no tocante à gestão e outros aspectos do SUS.
Razões do SUS ser considerado de alto risco para a administração federal
1- Tendência de aumento do gasto com ações e serviços públicos até 2030. A projeção do TCU, considerando a variação da inflação pelo IPCA e o envelhecimento da população, estima que o gasto será de R$ 219,9 bilhões em 2030, mas considerando “os valores necessários para cobrir o déficit assistencial (…), a necessidade de recursos federais… será de R$ 277 bilhões”.
Essa afirmação confirma o que temos sistematicamente denunciado, que os recursos destinados ao SUS não têm sido suficientes para garantir o atendimento das necessidades de saúde da população. Essa situação exige que seja adotada uma nova regra de cálculo do piso federal da saúde e que ela não seja condicionada aos efeitos das variáveis cíclicas da economia.
2- Para o TCU, “esse resultado implica a necessidade de aumento de gastos com ações e serviços públicos de saúde ou diminuição do nível de assistência, o que pode colocar em risco 70% da população brasileira que depende exclusivamente do SUS, segundo dados do IBGE”. É nosso entendimento que essa redação é dúbia, pois a necessidade de aumento de recursos não constitui um risco e sim está no campo da eleição da sociedade em garantir o acesso universal às ações e serviços de saúde. Mas quando o TCU reconhece a importância vital do SUS para 70% da população, está reforçando que só há um caminho a realizar: dotar o SUS dos recursos necessários.
3- Existência de desperdícios. Além disso, o TCU ressalta que, “em 2017, o Banco Mundial estimou o desperdício anual de recursos com saúde no Brasil em R$ 22 bilhões, sendo R$ 9,3 bilhões na atenção primária e R$ 12,7 bilhões na atenção de média e alta complexidade. Esse valor representa, aproximadamente, 20% de todo o gasto nacional com saúde realizado naquele ano”.
É importante que a sociedade brasileira tome conhecimento que esse estudo foi bastante questionado por especialistas, especialmente em relação à qualificação e à metodologia adotada para medir o “desperdício anual de recursos” e à definição disso como “prova” da ineficiência do SUS. E mais do que isso, o próprio Banco Mundial observa na Análise sobre a eficiência e equidade do gasto público no Brasil de 2017 (p.112), que “a ineficiência aplica-se a uma pequena parcela das despesas de saúde. Na verdade, as despesas estão concentradas nos grandes municípios (onde vivem mais pessoas), que são mais eficientes”.
Há que se considerar, ainda, a contribuição de Alexandre Marinho e Carlos Ocké-Reis (SUS: o debate em torno da eficiência. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2022), que chama atenção para o fato de as ações preventivas em saúde, para evitar e erradicar doenças ou reduzir a mortalidade infantil, gerarem resultados a longo prazo. Além disso, é bom lembrar que a “questão da eficiência” é tratada pelo “mercado” a partir de uma falsa definição de que o privado é eficiente e o público é ineficiente, de modo a justificar um movimento de privatização da saúde e de acesso dos fundos públicos pelo setor privado da saúde.
A questão da eficiência do SUS, que é regido pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade, não pode ser analisada sem se considerar sua situação de subfinanciamento frente seu objetivo e mesmo quando comparado aos padrões internacionais. Esse subfinanciamento está fortemente associado ao regime fiscal que é conhecido como teto dos gastos. Desde sua adoção, foram retirados do SUS, de 2018 a 2022, cerca de R$ 37 bilhões e serão retirados em 2023, considerando os valores do Projeto de Lei Orçamentária Anual, aproximadamente mais R$ 23 bilhões, totalizando um acumulado de R$ 60 bilhões (Tabela 1).
Por sua vez, a carência de recursos reinante no SUS pode ser dimensionada na comparação com outros países com sistemas de saúde semelhantes (Tabela 2). Mas, mesmo sendo subfinanciado, o SUS está disponível para cerca de 220 milhões de pessoas que vivem em 5.570 municípios com características sociais, econômicas, demográficas, epidemiológicas e sanitárias diversas, abrangendo um território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados que apresenta também especificidades regionais.
Um novo cálculo para o piso da saúde se faz necessário
Frente ao reconhecimento da necessidade de prover o SUS de recursos para que ele cumpra seu objetivo de garantir ações e serviços de saúde adequadas para a população brasileira, é preciso estabelecer parâmetros para definir o cálculo de seu piso. A Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES), no documento intitulado Nova política de financiamento do SUS, propôs que esses novos parâmetros devem abranger os seguintes fatores, aplicados sobre o valor médio das despesas federais do SUS de 2020 e 2021: a variação anual do IPCA/IBGE (para atualização monetária), a maior proporção da população idosa em relação ao total (que demandam serviços de saúde comparativamente mais caros), a compensação parcial da iniquidade decorrente da isenção de tributos para os gastos privados em saúde (inclusive com planos de saúde) e o aumento da participação dos gastos públicos em saúde para 60% do total, dos quais o gasto público federal corresponderia a cerca de 3% do PIB (que seria equivalente a 50% do gasto público total). Para esse fim, e com o intuito de adequar estruturalmente e de forma planejada esse aumento de gasto sobre as contas públicas, a ABrES propôs a adoção gradativa da nova regra de cálculo em até dez anos.
Por último, é preciso considerar também o efeito multiplicador desses gastos para a dinâmica econômica, inclusive para o aumento da produtividade. Por isso, reiteramos que saúde não é gasto, saúde é investimento!
Erika Aragão (UFBA) e Francisco R. Funcia (USCS), presidente e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES); Isabela S. Santos (Abrasco), Carlos O. Ocké Reis (IPEA), Rosa M. Marques (PUC-SP), Janice D. de Castro (UFRGS) e Áquilas N. Mendes (USP e PUC-SP), ex-diretora e ex-presidentes da ABrES. Texto originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil.