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Observatório de Análise Política em Saúde entrevista Geraldo Lucchese

A sétima edição do boletim informativo do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS) e do Centro de Documentação Virtual (CDV) traz como tema central medicamentos, assistência farmacêutica e vigilância sanitária. A atuação do Poder Legislativo Federal e de grupos de interesse sobre o tema, bem como os enfrentamentos face à função regulatória da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os casos da fosfoetanolamina sintética e dos anorexígenos e o reflexo da produção acadêmica nesses âmbitos de atuação do Estado são alguns dos temas da edição, que produziu uma entrevista com Geraldo Lucchese, integrante do Grupo Temático Vigilância Sanitária (GTVISA/Abrasco) e palestrante de inúmeras atividades do 7º Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária – 7º Simbravisa.

Geraldo Lucchese é consultor legislativo na Câmara dos Deputados desde 1994. Lucchese é farmacêutico-bioquímico, mestre e doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e integra o grupo de pesquisadores do eixo Políticas de Medicamentos, Assistência Farmacêutica e Vigilância Sanitária do OAPS. Na entrevista, o sanitarista fala sobre a tramitação de projetos relacionados a medicamentos e assistência farmacêutica na Câmara, a pressão de grupos e entidades, os casos da fosfoetanolamina e dos anorexígenos e o papel do conhecimento acadêmico no trabalho do legislativo federal.

Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Como as questões relacionadas aos medicamentos e à assistência farmacêutica têm sido tratadas no âmbito do legislativo federal?

Geraldo Lucchese: Quando se analisa as proposições apresentadas pelos parlamentares na Câmara dos Deputados (CD) na área da saúde percebe-se que o tema dos medicamentos é bastante frequente. A maioria delas refere-se a dois campos: i) controle sanitário; e ii) assistência farmacêutica. Na legislatura de 2011-2014 foram apresentados 43 projetos de lei (PLs) no campo do controle sanitário e 24 no da assistência farmacêutica. No caso do controle sanitário, os PLs tinham propósitos relacionados a diversos assuntos, entre eles: embalagens de segurança (proteção das crianças); dados das embalagens e bulas (data de fabricação, expiração, número de lote etc); receituário (validade nacional, controle de acesso, letra legível etc); recolhimento de medicamentos vencidos/logística reversa; prevenção de erros de medicação (distinção de cor de ampolas etc); falsificação; medicamentos genéricos e de referência; dispensação (fracionamento); impostos; preços; propaganda; produção/controle de qualidade/interrupção de fabricação; fitoterápicos; registro; testes em animais; manipulação; patentes/licença compulsória/produção/exportação; importação (de medicamentos sem registro aqui); e comercialização (troca, devolução).

No campo da assistência farmacêutica os PLs buscam, principalmente, garantir que os pacientes do SUS tenham acesso, em tempo adequado, aos medicamentos prescritos. São projetos que, em sua essência, são inconstitucionais, pois os parlamentares não podem ter iniciativa de projetos de lei que criem obrigações e despesas ao Poder Executivo. E o fornecimento de medicamentos aos pacientes é de competência do SUS – Ministério da Saúde e secretarias estaduais e municipais de Saúde –, ou seja, do Poder Executivo dos três entes federados. A iniciativa deste tipo de projeto é prerrogativa do próprio Poder Executivo. Mesmo assim, dezenas de projetos de lei são apresentados e tramitam normalmente pelas comissões temáticas da CD. Predominam PLs que tem os seguintes objetivos: i) garantir o acesso aos medicamentos de uso continuado, ou seja, aqueles que o paciente precisa tomar por longo tempo ou mesmo pela vida inteira. A justificativa é que, quando o SUS não garante a oferta sistemática destes medicamentos, os pacientes que não têm recursos próprios para adquiri-los obrigam-se a interromper o tratamento; esta é uma queixa constante dos pacientes do SUS aos deputados, que trazem a reivindicação para a CD; ii) garantir o acesso aos medicamentos para os aposentados. A justificativa aqui é o entendimento de que a maioria dos aposentados ganha muito pouco e não tem possibilidade de adquirir seus medicamentos; também, por serem idosos, são o tipo de paciente que mais precisa de medicamentos; iii) garantir o acesso a um tipo especial de medicamento, indicado para o tratamento de uma doença específica. Em geral são medicamentos que não constam nas listas do SUS ou que, pelo seu alto custo, estão constantemente em falta nas unidades de saúde.

Os PLs relacionados à temática dos medicamentos seguem o curso normal das proposições, passando por discussões nas comissões temáticas, sendo rejeitados ou aprovados. Em sua maioria têm sua conclusão nas próprias comissões, ou seja, não precisam ir à decisão do plenário. Quando isso é necessário, a batalha passa a ser junto ao Presidente da Câmara dos Deputados, que tem a prerrogativa de decidir, em conjunto com os líderes partidários, quais proposições entrarão na ordem do dia, isto é, na pauta para discussão e decisão em plenário. Essa negociação é complexa e envolve os interesses do Poder Executivo, que age por meio de sua bancada de apoio, e interesses das oposições. Ultimamente, a sociedade tem se manifestado mais, por meio das mídias sociais e do envio de mensagens aos parlamentares. Entretanto, tais pressões parecem ter pouco efeito concreto. Predominam mesmo a força dos grupos políticos.

OAPS: Em sua atuação como consultor legislativo foi possível identificar os grupos de interesse no legislativo federal nessa temática? Quais suas principais características e modos de atuação?

Geraldo Lucchese: Alguns grupos de representação de interesses de pacientes portadores de algumas doenças específicas fazem pressão junto aos deputados para que uma lei contemple seus interesses que, no caso mais comum, é a obrigatoriedade do SUS em ofertar os tratamentos que precisam. Algumas leis foram aprovadas desta forma, como a lei 11.347, de 27 de setembro de 2006, que garante aos portadores de diabetes o direito de receberem não apenas a insulina mas também os antiglicemiantes orais e os kits para a medição sistemática da taxa de glicemia. Um lobby muito forte dos pacientes foi empregado para a aprovação desta lei, que reclamava os mesmos direitos que os pacientes portadores de HIV/Aids já tinham por meio da lei 9.313, de 13 de outubro de 1996: ter uma lei específica para sua doença, detalhando as obrigações do SUS para com eles. Esse é o tipo de pressão mais comum.

Não se percebe alguma ação direta de indústrias farmacêuticas, por exemplo, junto aos deputados, visando a aprovação de alguma lei de seu interesse ou a inclusão dos seus medicamentos nas listagens do SUS. Este último tema agora está regulamentado por meio de uma lei que estabeleceu a competência do Poder Executivo para fazer tal avaliação sobre a incorporação de tecnologias ao SUS. É certo que o lobby das empresas existe, mas ele se faz de forma indireta, não muito perceptível, e por meio de contato com médicos ou diretamente com deputados e funcionários públicos. Alguns deputados defendem explicitamente os interesses das indústrias.

Mais expressivas são as entidades representantes das profissões da saúde que constantemente estão em audiências públicas de debates nas diversas comissões. Mesmo com um discurso de proteção à saúde da população, seus posicionamentos consideram sempre em primeiro lugar os interesses de sua corporação profissional.

OAPS: Diante dos acontecimentos recentes envolvendo alguns temas, a exemplo da fosfoetanolamina e dos anorexígenos, como você percebe a relação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário?

Geraldo Lucchese: Ao contrário do que possa parecer ao público em geral, os deputados têm uma boa percepção das necessidades da população com quem têm contato (como interpretam e o que eles fazem com isso é outra história). As relações do Poder Legislativo com o Poder Executivo sempre estão em constante tensão, ao contrário do que acontece, em geral, com o Poder Judiciário, que só tensiona quando estão em jogo interesses corporativos, em questões como salários e outras benesses.

O caso dos anorexígenos mostra uma relação muito estreita dos parlamentares com as instituições da medicina – mesmo porque muitos deputados são médicos (na atual legislatura, dentre os 513 deputados, 29 são médicos). Foram os deputados médicos e as instituições médicas as maiores vozes contrárias à proibição imposta pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Pacientes, avulsos ou participantes de alguma associação, também foram bastante incisivos em postular a liberação dos anorexígenos proibidos, fazendo complemento ao discurso médico. Estes grupos tiveram acolhimento no Poder Legislativo para vocalizar seu descontentamento com a decisão do Poder Executivo, no caso representado pela Anvisa. Nesse tema, os debates foram intensos, agressivos até, entre os representantes do Legislativo contrários à medida (todos de oposição ao Governo Dilma) e os representantes do Executivo, em especial servidores e colaboradores da Anvisa.

É preciso lembrar que, desde o processo de debates e sanção da lei conhecida como Ato Médico, as entidades médicas tornaram-se não apenas adversárias, mas inimigas do governo Dilma, cujo ministro da Saúde era o médico Alexandre Padilha. O Programa Mais Médicos fortaleceu ainda mais essa oposição dos médicos ao governo Dilma. Estes fatos pesaram no posicionamento da maioria dos deputados em favor da anulação da proibição da Anvisa. Os argumentos técnicos eram fornecidos por representantes das sociedades de especialidades médicas que contestavam as alegações da Anvisa. Esse embate foi muito tenso e o Legislativo usou de todas as suas prerrogativas para barrar a decisão do Executivo, representado pela Anvisa. Mas essa interferência tem eficácia relativa, uma vez que o Executivo tem instrumentos e competências que podem barrar as pretensões e as decisões do Legislativo. No caso em questão, o Legislativo terminou por aprovar uma lei autorizando a fabricação e o uso dos anorexígenos. Mas, a Anvisa pode colocar requisitos regulatórios que acabam por inviabilizar, na prática, tais autorizações. Por exemplo, pode exigir toda a pesquisa clínica de cada uma das substâncias anorexígenas que foram proibidas.

O caso da fosfoetanolamina foi diferente. O uso desta substância foi permitido durante cerca de 20 anos, mas não como medicamento (ao contrário dos anorexígenos, que tinham registro sanitário vigente há décadas). E foi uma intensa pressão dos pacientes e dos seus parentes e amigos junto aos deputados, ao lado da judicialização (milhares de ações judiciais solicitando o acesso à substância), que colocou o assunto nas agendas, primeiro do Judiciário, depois do Legislativo e, em seguida, também do Executivo. Quando solicitados a se posicionar, os médicos e suas entidades se mostraram contrários à permissão do uso da fosfoetanolamina, acompanhando o posicionamento da Anvisa que alegava inexistência de pesquisa científica que comprovasse a segurança e a eficácia da substância.

Este caso se configurou como muito particular devido à sua história (produção informal em um laboratório da USP [Universidade de São Paulo], patente do processo de produção de posse de professores da instituição, pesquisas avulsas feitas pelo Instituto Butantã que atestavam a segurança da substância e uso contra uma doença estigmatizada como o câncer, entre outras características, e a crença de muitos parlamentares nas descrições de pacientes ou responsáveis por estes quanto aos benefícios da fosfoetanolamina, principalmente em casos em que os tratamentos convencionais não apresentavam nenhuma perspectiva de melhora para os mesmos. Diferentemente do caso dos anorexígenos, o caso da fosfoetanolamina foi acolhido por diferentes partidos, não se configurando como uma posição antigoverno ou pró-governo no Legislativo. Da mesma forma que o caso anterior, o final do debate no Legislativo foi por meio da aprovação (quase unânime) de uma lei que abria uma exceção na legislação vigente e permitia a produção e o uso da fosfoetanolamina, em casos específicos e sob certas condições, até que se completassem as pesquisas necessárias à comprovação, ou não, da sua segurança e eficácia e à possível obtenção do devido registro sanitário para ser usada como medicamento. O Poder Executivo se mostrou dividido nesta questão, uma vez que a Anvisa recomendou à Presidência da República o veto da lei. Mas a lei foi sancionada pela presidenta Dilma. Deste modo, desta vez, foi o Executivo que não usou suas prerrogativas para neutralizar a lei aprovada. A Associação Médica Brasileira (AMB) entrou com uma ação de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) arguindo a constitucionalidade da lei aprovada. Em decisão liminar, o STF atendeu ao pedido da AMB e a eficácia da lei está suspensa.

Nos dois casos, os projetos de lei foram colocados rapidamente na ordem do dia pela Presidência, tanto da Câmara dos Deputados (CD), como do Senado Federal (SF). No caso dos anorexígenos, o Presidente da CD, juntamente com a maioria dos líderes partidários, colocou o PL em votação no Plenário, sob intensa pressão de muitos deputados, inclusive alguns da base do governo Dilma, e das entidades médicas. Os líderes dos partidos de sustentação do governo foram contrários, mas não conseguiram impedir a votação da proposição que autorizava a produção e a prescrição dos anorexígenos. No caso da fosfoetanolamina, a colocação do PL na pauta foi ainda mais rápida e fácil, pois a imensa maioria dos partidos apoiava a matéria; não havia a divisão de bancadas de apoio e de oposição ao governo em torno deste tema. Neste caso, o posicionamento do Poder Judiciário acabou por ser a palavra final da contenda, que envolvia, principalmente, de um lado, a sociedade médica e a Anvisa e, de outro o Legislativo.

Ao contrário do que opinam muitas das partes envolvidas, a mídia e a população em geral – que argumentam a usurpação ou a invasão de competência de um poder sobre o outro –, os dois casos demonstram um relacionamento institucional entre os três poderes que podemos classificar como normal e até desejável: a ação de um deles significa um freio/contrapeso à ação do outro. Cada um usa seus instrumentos de poder para se posicionar face aos assuntos, dentro de suas competências.

Deve ser ressaltado, no entanto, que a falta ou insuficiência do debate mais racional, tolerante e profundo no âmbito dos próprios poderes e entre eles acaba por delegar ao Judiciário um papel decisivo, para o qual, muitas vezes, lhe faltam os fundamentos.

OAPS: Em relação a medicamentos e assistência farmacêutica, como você percebe o reflexo da produção de conhecimento da academia na produção do Legislativo?

Geraldo Lucchese: É certo que o argumento técnico ou científico representa uma poderosa força de argumentação, que muitas vezes define as posições dos parlamentares. Entretanto, a rigor, a produção acadêmica não é o principal agente mobilizador ou o balizador que define as decisões no âmbito do Legislativo quando se discute questões relacionadas aos medicamentos. Parece que o mesmo acontece no Poder Judiciário, no qual os argumentos relacionados ao direito à vida e aos aspectos da dignidade do ser humano muitas vezes são prevalentes sobre os argumentos técnicos.

Entretanto, a produção acadêmica tende a se tornar cada vez mais relevante nos debates do Legislativo, em especial quando ela se refere a problemas sociais concretos. Na saúde, sente-se muita falta de conhecimento sobre a realidade sanitária brasileira; pesquisas epidemiológicas, por exemplo, sobre doenças que acometem os brasileiros. A recente epidemia de zika e sua relação com a microcefalia parece que acomete principalmente os grupos sociais mais pobres. Apesar de termos um universo significativo de casos confirmados de microcefalia, não sabemos mais detalhadamente sobre a caracterização da maioria destes casos (incidência por renda familiar, grau de escolarização, tipo de habitação, alimentação, grupo etário, local de moradia etc).

Falta também um conhecimento mais reflexivo sobre o uso dos medicamentos. Este aparece quase sempre como algo amplamente necessário e sempre positivo. As principais iniciativas visam sempre aumentar o acesso e o consumo de medicamentos. As insuficiências do SUS que resultam na falta de acesso sempre são tematizadas e são objeto da maioria das proposições relacionadas à assistência farmacêutica. Entretanto, quase não há questionamentos acerca do uso excessivo, da inadequação das prescrições, da redução da terapêutica médica moderna ao uso de medicamentos. A farmacologização da sociedade já é um fenômeno estudado em vários países, mas aqui quase não há produção acadêmica sobre o tema. Qualquer iniciativa que tenha o objetivo de questionar o uso de medicamentos e a própria medicina não encontra facilmente os fundamentos técnico-científicos que necessita.

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