O jornal O Globo publicou nesta segunda-feira, 31 de agosto, o artigo ‘Ordem de fatores‘, da abrasquiana Ligia Bahia. O programa Mais Médicos, o impacto da abertura de vagas para medicina, a história dos cursos médicos e o modelo de formação fazem parte dos temas abordados pela professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Confira o texto na íntegra:
Depois das manifestações de junho de 2013, o governo federal, assessorado por pesquisadores e pesquisas, convocou profissionais estrangeiros e decidiu abrir vagas para a formação de mais médicos. Outros fatores, como a existência e infraestrutura dos serviços, o financiamento e melhoria da gestão, perderam importância.
O dimensionamento da expansão gradual dos médicos até 2026 baseou-se no número de médicos por habitante no Reino Unido em 2011. Dois anos depois, o programa Mais Médicos se tornou a principal política de saúde do país. Os resultados são: mais 18 mil médicos e 5.500 novas vagas para estudantes. Os números coincidem com a meta: o contingente estrangeiro somado aos brasileiros do Mais Médicos representa no máximo 5% do total, mas os novos ingressos acrescentarão 25% aos profissionais existentes por ano. O impacto da abertura de vagas tirou de cena os cubanos. Durante um breve intervalo, o questionamento sobre o número de médicos foi deslocado pelo debate sobre o modelo de formação. Contudo, a discussão recuou dois séculos com a outorga de mais de 70% das matrículas para grupos educacionais privados.
A história dos cursos médicos é justamente a da oposição entre a liberalidade para a atuação de escolas médicas comerciais e o padrão científico de universidades públicas ou filantrópicas. Por volta dos anos 1900, escolas de medicina nos EUA eram classificadas em diferentes categorias. As que exigiam longos períodos de aprendizado tinham gastos elevados com laboratórios modernos, bibliotecas e instalações para pacientes e as que requeriam pouco tempo de formação e funcionavam precariamente. As primeiras fundiram-se com universidades e as segundas desapareceram. Inicialmente, a eliminação das faculdades denominadas não cientificas uniformizou a composição social dos estudantes. Os elevados custos da educação médica limitaram o ingresso das classes de menor renda e imigrantes e potencializaram a discriminação de mulheres, negros e judeus.
Havia um desdém aristocrático contra as práticas mercantis de formação, os médicos se concentravam nas grandes cidades e sua distribuição se correlacionava estreitamente com a renda per capita. A democratização do acesso aos serviços de saúde e aos cursos de medicina foi estimulada por iniciativas governamentais e médicos do interior, como os irmãos Mayo. A fortuna obtida com a realização de cirurgias, então inovadoras, em uma cidade pequena, cercada de milharais, foi empregada para tornar a Clínica Mayo um centro de excelência da Universidade de Minnesota.
Nossas histórias sobre faculdades privadas são igualmente ilustrativas. A maioria não tem estrutura física adequada, os professores podem ser muito bons, mas poucos têm titulação máxima de pós-graduação, e é frequente, apesar de serem bem remunerados, que estejam de passagem, como se fossem diaristas, plantonistas.
Existe uma enorme demanda e o perfil dos alunos de escolas privadas é bem definido. Em 2012, o valor mediano da mensalidade dessas escolas foi R$ 4 mil, e menos de 20% puderam reduzir ou postergar o pagamento por meio do Fies ou ProUni. As famílias que conseguem manter um aluno morando fora de casa e comprar livros caros durante seis anos não são pobres e muito provavelmente almejam que seus filhos obtenham melhores condições de vida do que os pais. A aposta dos formuladores do Mais Médicos é que, com o programa funcionando, as coisas se ajeitem. Uma formação direcionada para o SUS povoará definitivamente os vazios sanitários, os generalistas prevalecerão porque o Estado não apenas conterá os ímpetos mercantis do (setor?) privado, como também irá reorganizar a concessão de diplomas de especialistas.
No papel, na propaganda e nos acordos com os grupos educacionais e prefeituras, está tudo amarrado. A ideia é a constituição de uma nova ecologia na qual espaço, tempo e cadeias hierárquicas sejam orientadas pelo governo. A certeza de que o passado não condena o futuro, possivelmente justifica a mudança radical na comunicação oficial. A divulgação de oportunidades em instituições privadas para “quem sonha em ser médico” substituiu conteúdos relevantes sobre problemas de saúde. Falta esclarecer dúvidas sobre o presente. A primeira interrogação refere-se à multiplicação de modelos de curso: aos dois tradicionais, realizados pelas universidades públicas e faculdades privadas se somarão os das escolas privadas do Mais Médicos e o de um hospital de excelência privado-filantrópico localizado em São Paulo. A segunda indagação concerne a cálculos que ficaram pela metade: o Reino Unido tem 1,5 e 4 vezes, respectivamente, mais médicos e gastos públicos do que o Brasil. Os dois filhos da princesa Kate nasceram em um hospital vinculado ao sistema público. Está previsto atingir o mesmo patamar de despesas e abrangência?
A terceira questão é sobre a alteração do foco na instituição para o aluno. Afirmações genéricas, válidas para qualquer situação, como ensinar a “aprender a aprender” e avaliações periódicas bianuais não absolvem a criação de cursos de má qualidade. A ultima imprecisão relaciona-se com a especificidade de fatores sociais. Ou se impede a liberdade de ir e vir ou haverá mais médicos e mais rivalidades para ocupar postos de trabalho em centros especializados, nos quais a prática clínica associa-se à pesquisa, e não necessariamente o produto será mais SUS.