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 NOTÍCIAS 

Os desafios da luta pelo direito à saúde é tema do artigo-destaque da C&SC

Vilma Reis

Artigo-destaque da edição de agosto da revista Ciência & Saúde Coletiva da Abrasco faz uma reflexão aprofundada sobre os desafios da luta pelo direito universal à saúde. O texto aborda a necessidade da construção de um projeto de desenvolvimento nacional soberano, inclusivo e sustentável. Aborda ainda a democracia e os direitos sociais e a importância do fortalecimento do SUS. O intuito é ressaltar o que foi feito e os rumos do “que fazer”. O artigo é uma contribuição aos debates da 16ª Conferência Nacional de Saúde que se realiza exatamente agora, dos dias 4 a 7 de agosto de universal à saúde no Brasil e foi escrito por Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza e ainda Gulnar Azevedo; Jairnilson Paim; Carmen Teixeira; Ligia Bahia; Reinaldo Guimarães; Naomar de Almeida-Filho; Cristiani Vieira Machado e Gastão Wagner Campos.

Desde a promulgação da Constituição federal de 1988, o Brasil mudou muito. Na saúde, embora tenham ocorrido avanços importantes, persistem problemas antigos e novos têm surgido. O objetivo maior de assegurar o direito universal à saúde não foi alcançado. Em 2019, realiza-se a 16ª Conferência Nacional de Saúde, momento oportuno para analisar a história, o momento presente e as tendências que se anunciam. Este texto busca contribuir para essa análise, com base nos resultados de estudos sobre a evolução das condições de saúde da população e do sistema de saúde brasileiro nos últimos 30 anos. Identifica o fortalecimento do setor privado e do capital na área da saúde, em detrimento do interesse público e do SUS. Por fim, discute as estratégias de luta pelo direito à saúde necessárias e possíveis no contexto atual.

Confira o artigo na íntegra:

INTRODUÇÃO

A 16ª Conferência Nacional de Saúde (16ª CNS) se realiza, em 2019, após 31 anos da criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao longo desse período, o país mudou sua situação demográfica, epidemiológica, econômica, política e educacional, mas não superou as desigualdades sociais e as agressões ao ambiente.

Para subsidiar os debates da 16ª CNS, o Conselho Nacional de Saúde lançou um Documento Orientador, que retoma o tema central – Democracia e Saúde – da histórica 8ª Conferência, realizada em 1986. Ressalte-se que esse documento não apenas retoma os temas, mas os atualiza, denunciando medidas que impactam negativamente as políticas sociais, como é o caso do congelamento dos recursos públicos para a saúde por 20 anos, determinado pela Emenda Constitucional nº 95 (EC-95) de 2016.

No contexto de crise econômica, social e política em que se encontra o Brasil, não há dúvidas de que são enormes os desafios da luta pelo direito à saúde no país. Para enfrentá-los, é preciso analisar criteriosamente a história, o momento presente e as tendências que se anunciam. Esse esforço analítico deve ser empreendido em debates públicos e diversificados, que enriqueçam a participação social e a compreensão da realidade, de modo a produzir acordos e consensos que contribuam para mobilização e atuação estratégica das forças sociais comprometidas com a defesa da saúde e do SUS.

Este texto tem o objetivo, portanto, de contribuir para ampliar o debate, recorrendo aos resultados de pesquisas científicas e reflexões acadêmicas publicadas nas revistas Ciência & Saúde ColetivaCadernos de Saúde Pública e Saúde em Debate que, em 2018, publicaram seções ou números especiais relativos aos 30 anos do SUS. Como atestam essas publicações, há muito o que se comemorar, mas há também que se reconhecer a persistência de velhas dificuldades e o surgimento de novas. Fundamentalmente, deve-se admitir que o objetivo de assegurar o direito universal à saúde não foi alcançado.

Este artigo apresenta os resultados de estudos sobre a evolução das condições de saúde da população e do sistema de saúde brasileiro. Identifica o fortalecimento do capital e do mercado, em detrimento do interesse público, e busca subsidiar a discussão das estratégias necessárias e possíveis de luta pelo direito à saúde.

 

Evolução das condições de saúde das pessoas e dos serviços de saúde

Entre 1990 e 2015, houve reduções significativas das taxas de mortalidade por doenças transmissíveis e por causas evitáveis, da morbimortalidade materno-infantil e da desnutrição infantil. A expectativa de vida da população, por sua vez, aumentou, passando de 68,4 anos, em 1990, para 75,2 anos, em 2016. As taxas de mortalidade geral padronizadas por idade caíram em 34%1. A redução da mortalidade de crianças foi impulsionada pelo Bolsa Família e pela Estratégia Saúde da Família2,3. Houve progressos acentuados no Norte e Nordeste, que não eliminaram mas reduziram desigualdades regionais. Enfim, os avanços no SUS e em políticas sociais, somados a melhorias econômicas, confluíram para melhorar a saúde dos brasileiros.

A partir de 2015, contudo, alguns indicadores passam a assinalar a existência de riscos à continuidade dessa evolução positiva da situação de saúde. Entre 2015 e 2016, as taxas de mortalidade infantil cresceram, invertendo uma tendência histórica de redução4. Microssimulações têm mostrado que a eventual redução das coberturas do Programa Bolsa Família e da Estratégia de Saúde da Família terão como efeito o aumento do número de óbitos de crianças de até cinco anos5 e de pessoas até 70 anos6.

No que se refere às doenças transmissíveis, a expansão das ações de vigilância, controle e prevenção reduziu a morbimortalidade, principalmente das imunopreveníveis. Todavia, dengue, chinkungunya e zika, doenças para as quais não se dispõe de tecnologias de controle efetivas, mantiveram elevada a prevalência de moléstias infecciosas no Brasil7. No caso dos riscos ambientais, o modelo de desenvolvimento socioeconômico adotado não se orientou pela busca de um meio ambiente ecologicamente equilibrado8.

Quanto aos serviços de saúde, observou-se, por um lado, a expansão da rede pública, principalmente unidades de atenção básica, ampliando o acesso a consultas médicas e diminuindo as internações. Ainda que sejam frequentes os casos de má qualidade, vistos amiúde em denúncias da mídia, há indicadores da melhoria da qualidade dos serviços do SUS. Por exemplo, houve redução das internações por causas sensíveis à atenção básica, que passaram de 120 a 66 por 10.000 habitantes, entre 2001 e 20169.

No que tange à proteção da saúde, melhorou o desempenho das ações por meio do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, embora persistam problemas de controle de grandes corporações, incluindo as áreas de alimentos, tabaco e agrotóxicos, cujas atividades têm conexões com fatores de risco relacionados à epidemia de doenças crônicas10.

Verificou-se, por outro lado, a persistência da escassez de profissionais de saúde11, assim como persistiram as disparidades regionais na qualidade do cuidado, revelando sobretudo a influência de fatores socioeconômicos12, como mostra a comparação da renda média do segmento mais rico da população com a do segmento mais pobre: os 20% mais ricos têm uma renda 17 vezes maior do que a renda dos 20% mais pobres13.

Se é inegável que a oferta e a cobertura de serviços de saúde se expandiram, é fato também que a expansão envolveu de maneira heterogênea os setores público, filantrópico e privado, consolidando a segmentação dos serviços entre clientelas de distintas capacidades de pagamento.

Nesse sentido, o Brasil não dispõe de um sistema realmente único de saúde, mas apenas de um conjunto de serviços fragmentados que disputam os mesmos recursos. Ademais, trata-se de uma oferta de serviços que reflete e reproduz desigualdades sociais e compromete a integralidade da atenção, pois prioriza o diagnóstico e o tratamento de doenças e agravos, em detrimento da prevenção de riscos e da promoção da saúde.

Em síntese, pode-se dizer que o país dispõe de um rol de serviços que abrange a maioria da população, mas mantém iniquidades no acesso e na qualidade do cuidado, desfavorecendo grupos vulneráveis da população. Ao mesmo tempo, mantém-se a hegemonia de um modelo de atenção centrado em serviços assistenciais especializados e hospitalares, desigualmente dispostos no território nacional. Por fim, este conjunto de serviços tem como base uma distribuição iníqua das ações e dos procedimentos entre os setores público e privado, que assegura ao último um maior volume de recursos materiais e simbólicos14.

 

Trinta anos de luta pelo direito à saúde: os projetos em confronto

Se o reconhecimento constitucional do direito à saúde produziu resultados positivos, conforme demonstrado no tópico anterior, a garantia do direito à saúde está longe de ter sido alcançada no cotidiano da vida dos cidadãos, registrando-se a persistência e a emergência de problemas de saúde e de lacunas e falhas dos serviços, inaceitáveis em sociedades civilizadas.

Essa situação é o resultado (sempre provisório) das disputas entre diferentes projetos de sociedade que, no setor saúde, podem ser esquematicamente reunidos em dois blocos: o projeto democrático-popular do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira e o projeto liberal-conservador ao qual se vincula o setor privado na saúde.

Desde o fim do regime militar, em 1985, a Reforma Sanitária Brasileira obteve vitórias importantes, acionando três vias estratégicas15. Pela via parlamentar, inscreveu na Constituição o direito à saúde e criou o Sistema Único de Saúde. Pela via técnico-institucional, ensejou a implantação de um conjunto bastante efetivo de políticas e programas de saúde. Pela via sociocomunitária, apostou na participação social que, por meio de conselhos e conferências de saúde, contribuiu para que os avanços ocorressem.

No entanto, as forças políticas e sociais que conseguiram desenvolver essas estratégias, perderam influência no processo16, não conseguindo manter a unidade alcançada no período constituinte, de modo que as vitórias obtidas não foram suficientes para garantir o direito à saúde de maneira universal e igualitária, tal como proposto no Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde.

Essas limitações deveram-se menos às fragilidades do Movimento da Reforma Sanitária e mais à oposição do setor privado à expansão e à qualificação do SUS. Com seus estratagemas, o setor privado tem disputado com êxito os recursos financeiros, materiais e simbólicos que a sociedade brasileira destina aos serviços de saúde. Cabe ressaltar que o setor privado que se opôs à criação do SUS não é exatamente o mesmo que, três décadas depois, disputa os recursos públicos. Atualmente, o setor privado da saúde é liderado por corporações financeirizadas multissetoriais, que detêm o capital não apenas de operadoras de planos de saúde, hospitais e serviços de diagnose e terapia, mas também de empresas em outros setores econômicos17.

Em suma, a configuração atual dos serviços de saúde no Brasil resulta não apenas de iniciativas conscientes dos agentes políticos, mas também de determinações estruturais, que não foram superadas. Nesse sentido, o “sistema” de saúde realmente existente pode ser compreendido como orgânico a uma sociedade capitalista periférica, imersa em lutas de classe18. É possível que segmentos políticos do campo progressista não tenham identificado, oportunamente, a financeirização da saúde, subestimando o poder acumulado do capital19, sobretudo na passagem do século XX para o XXI.

 

Dominância financeira e ataque ao regime político constitucional

Estruturalmente, o capitalismo vive uma época de dominância financeira. A riqueza financeira ou “de papel” (moedas, títulos de dívidas, ações em bolsas de valores, etc.) se multiplica de modo relativamente independente da produção e da valorização dos ativos reais, ou seja, dos bens e serviços com valor de uso para as pessoas20,21. Essa lógica financeira domina toda a economia: mesmo a indústria e a agricultura produtivas passam a auferir parte significativa de seus lucros da atividade especificamente financeira.

A expansão dessa lógica impõe um novo papel ao Estado que deve reduzir a prestação de serviços aos cidadãos para destinar mais e mais recursos ao processo de multiplicação da riqueza de papel. Em consequência, as políticas de transferência direta de dinheiro aos mais pobres que os inserem no mercado financeiro são aceitáveis, mas políticas que exigem a prestação de serviços pelo aparato estatal ou que requerem uma forte participação do poder público, como o SUS, tornam-se desinteressantes na perspectiva da alta finança.

Analisando as conexões entre o processo de financeirização, o sistema de proteção social e o regime fiscal no Brasil, observa-se que o crescimento do comércio de planos privados de previdência e de saúde, nos anos 2000, decorre não somente da entrada nesses mercados de grandes empresas multissetoriais financeirizadas, mas também da ampliação dos subsídios fiscais dados aos compradores desses planos22.

Sob essas condições estruturais, pode-se entender que a atual configuração dos serviços de saúde comporta uma atenção primária que atende a segmentos desfavorecidos da população, promovendo algum alívio das tensões sociais, e expande, simultaneamente, o mercado para insumos de saúde.

A oferta privada de serviços especializados, por sua vez, constitui um mercado para as empresas do setor, hegemonizado não mais por empresas médicas prestadoras de serviços, como a medicina de grupo dos anos 1980, mas sim por empresas cujo negócio central é o rendimento financeiro e não a produção e a comercialização dos bens ou serviços de saúde que oferecem.

Por fim, alguns serviços ultra especializados, cujos modelos de negócio fazem com que tenham preços muito elevados, são prestados pelo setor público, assegurando, por um lado, o acesso de uma quantidade de pessoas suficiente para garantir escala econômica ao serviço, e viabilizando, por outro, a realização do capital da indústria de equipamentos e a oferta de opções de planos de saúde com preços suportáveis pelas classes médias.

Vale notar que o SUS continua sendo importante para esse novo setor privado, como se vê pelas propostas de integração público-privada23 que se traduzem, na prática, em pleitos de ampliação do acesso aos recursos públicos e de maior influência na definição das políticas oficiais.

Sob a égide da financeirização, o interesse do capital na conjuntura das duas últimas décadas tem sido muito claro: a captação pela ciranda financeira de parcelas ainda maiores dos recursos socialmente produzidos. Examinando as oportunidades de negócio, no caso do Brasil, nada lhes é mais atraente do que a previdência social, dada a magnitude do volume de recursos que movimenta. Com menos recursos, mas não desprezíveis, a saúde e a educação também entram na mira de investidores e rentistas.

A captação desses recursos pelo sistema financeiro, contudo, é dificultada pelo arcabouço constitucional de 1988. Por isso, o capital sob dominância financeira anseia pela extinção da previdência pública baseada na repartição, pelo fim da vinculação das despesas com saúde e educação e pela redução do número de servidores públicos.

As mudanças almejadas pelos capitalistas são de tal magnitude que podem ser caracterizadas como um ataque frontal ao regime político previsto pela Constituição de 1988. Para viabilizar o ataque, as lideranças políticas e empresariais alinhadas não titubearam em promover o impeachment da presidente Dilma em 2016, em aprisionar o concorrente favorito à eleição presidencial de 2018 e em apoiar um candidato despreparado e sem compromissos com a ordem democrática. Tendo alcançado a chefia do Poder Executivo federal e uma ampla base parlamentar, essas forças políticas tentam desfechar o golpe final ao regime instituído pela Carta Magna.

 

Os desafios atuais da luta pelo direito à saúde no Brasil

Em primeiro lugar, a luta pelo direito à saúde no Brasil, em 2019, exige enfrentar o desafio de se construir um projeto de desenvolvimento nacional. Para ser coerente com a ideia da saúde como direito humano, o desenvolvimento deve ser soberano, socialmente inclusivo e sustentável. Requer investimentos em políticas promotoras do pleno emprego e de combate às desigualdades de renda; em habitação, saneamento e transporte público; na inovação da estrutura produtiva e tecnológica; no manejo sustentável dos recursos naturais; no acesso universal a serviços de qualidade nas áreas de Educação, Seguridade Social e Segurança Alimentar.

Não há dúvida de que um projeto como esse é antagônico aos interesses do capital, bem representados pelo ultraliberalismo econômico que propõe a privatização do patrimônio estatal, promovendo o entreguismo, o desinvestimento em ciência e tecnologia, a exclusão social e a devastação ambiental.

A construção de um projeto de caráter democrático-popular exige mais do que a oposição pontual a cada iniciativa dos ultraliberais. Requer uma estratégia de superação da economia financeirizada e de valorização das atividades produtivas. Trata-se de estabelecer balizas e impor limites à permissividade dos mercados financeiros, aos esquemas de securitização e derivativos e aos altos níveis de alavancagem.

Além disso, são essenciais o adequado tratamento da questão da dívida pública, com mecanismos de definição das taxas de juros que atendam aos interesses do desenvolvimento nacional, e as reformas em prol da justiça tributária, com o fim da regressividade do sistema brasileiro.

É tarefa, portanto, do Movimento da Reforma Sanitária revitalizar as instâncias do controle social24, articulando-se com outros movimentos sociais, notadamente aqueles vinculados a setores estratégicos da economia, na formulação desse novo projeto de desenvolvimento. De modo especial, é importante lutar pela preservação das empresas estatais, sob controle democrático, e fortalecer o sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação. Essencialmente, trata-se de revigorar a capacidade do Estado de subordinar os interesses econômicos particulares ao interesse do desenvolvimento nacional.

Em segundo lugar, é necessário preservar a democracia. Não há dúvida de que golpe jurídico-parlamentar, em 2016, fragilizou a democracia brasileira. A posse do novo governo, em 2019, agravou a situação, com a intensificação de ataques aos direitos sociais, políticos e civis. Neste contexto, é impossível promover o direito à saúde sem defender todos os direitos.

No ano em que se realiza a 16ª CNS, dentre os muitos ataques aos direitos, destaca-se a proposta de reforma da previdência social, concretizada na Proposta de Emenda Constitucional – PEC nº 06/2019, que, sem combater privilégios, penaliza sobretudo os trabalhadores mais pobres. Essa proposta retira a garantia constitucional, destrói a noção de Seguridade Social e propõe um sistema de capitalização que beneficia o sistema financeiro em detrimento dos futuros aposentados.

Os participantes da 16ª CNS e os militantes da Reforma Sanitária têm, portanto, a responsabilidade de defender a Seguridade Social, engajando-se no movimento contra a reforma da previdência e explicitando na pauta desse movimento a defesa do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social.

A preservação da democracia no Brasil exige ainda a atuação articulada dos movimentos de defesa de direitos25, incluindo os sem-teto em luta pela moradia, os sem-terra em prol da reforma agrária e da agricultura ecológica, os indígenas e seu direito ao território e a uma existência digna, os negros e o combate ao racismo em todas as suas formas, as mulheres em busca da igualdade, a população LGBT em sua luta pelo direito a ser o que é, os jovens em prol da autonomia, da educação pública e do trabalho decente.

A atuação conjunta dos movimentos sociais é necessária para combater as iniciativas que buscam enfraquecer a participação social como os decretos que extinguem conselhos participativos ou criam dificuldades para o financiamento de sindicatos.

A 16ª CNS deve destacar também a democratização dos meios de comunicação de massa como necessária ao fortalecimento da democracia no Brasil. Por fim, a defesa da democracia inclui necessariamente a exigência da libertação de Lula e o combate à partidarização do aparato policial, do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Além das medidas relativas ao desenvolvimento e à democracia, a luta pelo direito à saúde exige a adoção de estratégias e táticas específicas para o aprimoramento do SUS. No âmbito das políticas de saúde, o primeiro desafio é reorientar o modelo de atenção à saúde. O SUS deve superar o domínio do modelo biomédico e mercantilista, fortalecendo as práticas de promoção da saúde, com a articulação de ações intersetoriais dirigidas aos determinantes sociais da saúde, ao tempo em que amplia a cobertura e melhora a qualidade das ações de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças e agravos.

A constituição de redes de atenção à saúde é, provavelmente, a melhor estratégia para coordenar o conjunto de serviços necessários à operacionalização da atenção integral26. É importante acrescentar que a formação das redes pode se beneficiar de novos recursos tecnológicos – diagnóstico remoto, robotização cirúrgica, teleconsultas, etc. – que facilitam o acesso das pessoas aos mais diversos serviços.

A integração em rede do conjunto de serviços de saúde, contudo, não é suficiente para mudar o modelo de atenção. É também necessário modificar a dinâmica econômica que sustenta o modelo biomédico. Mais precisamente, é preciso assegurar a primazia da política de saúde sobre os interesses comerciais, pondo o complexo produtivo da saúde a serviço do SUS.

Para tanto, há que se promover políticas de desenvolvimento industrial e de ciência, tecnologia e inovação em saúde que, articuladas, estimulem a produção nacional27, a custos suportáveis pela sociedade, dos insumos indispensáveis ao atendimento às necessidades de saúde dos brasileiros.

Assim, a 16ª CNS deve reiterar o princípio da integralidade, recomendando a implantação das redes de atenção à saúde, desde o nível comunitário e das unidades básicas até os níveis especializado e hospitalar. Deve também recomendar o fortalecimento do complexo produtivo da saúde, instando os gestores públicos a ampliarem os investimentos em arranjos inovadores de produção de bens de saúde.

Certamente, a reiteração dessas posições vai encontrar, de um lado, resistências de diversas ordens, destacando-se as de gestores que têm defendido, por exemplo, uma atenção básica centrada na clínica médica, a responsabilização individual pela prevenção da AIDS ou ainda abordagens desprovidas de racionalidade científica como o tratamento religioso da dependência química e a hospitalização de pessoas com transtorno mental como terapêutica prioritária. De outro lado, essa reiteração será capaz de aglutinar pessoas e movimentos sociais que, mobilizados por questões específicas, encontram-se fragilizados por estarem dispersos.

O segundo desafio relativo ao fortalecimento do SUS se refere à melhoria da sua eficiência. Neste ponto, três questões se sobressaem: a profissionalização e a publicização da gestão, a regionalização da saúde e a política de pessoal.

Para profissionalizar a gestão do SUS, é preciso valorizar as carreiras públicas e adotar critérios de desempenho para avaliar o trabalho em saúde, premiando a eficiência. Além disso, a direção dos estabelecimentos de saúde deve ser empoderada, concedendo-se maior autonomia aos gerentes locais e, ao mesmo tempo, responsabilizando-os pelos resultados alcançados mais do que pela obediência a normas administrativas. Nesta linha, os cargos de direção devem ser ocupados, prioritariamente, por técnicos de carreira.

A profissionalização deve acompanhar o reforço da publicização do atos administrativos. A publicidade da administração estatal deve ser assegurada por meio dos mecanismos que deem transparência à gestão, inclusive aqueles previstos pela Lei de Acesso à Informação.

Neste sentido, a 16ª CNS deve reafirmar a importância das carreiras públicas, das práticas de estímulo à eficiência do trabalho e do empoderamento dos gerentes locais. Ademais, deve denunciar as tentativas de restrição da transparência da gestão e instar os conselheiros de saúde a perseverar no monitoramento da atuação das instituições de saúde.

No que concerne à regionalização, a experiência do SUS já demonstrou que os municípios sozinhos são incapazes de prover todos os serviços de saúde necessários. A experiência anterior, por sua vez, já tinha mostrado que a centralização da gestão na esfera federal ou mesmo na estadual gera ineficiência. A organização de regiões, de acordo com as identidades territoriais e com adequadas escalas populacionais, é a melhor estratégia para promover a coordenação das políticas públicas em um país federado28. Acrescente-se que a expansão do uso das tecnologias de informação e comunicação pode contribuir para uma configuração eficiente das regiões de saúde.

Há que se reconhecer, no entanto, que não é fácil regionalizar a atenção à saúde. As dificuldades decorrem de múltiplos fatores, como o subfinanciamento do SUS, a interferência indevida de interesses empresariais e político-partidários e a própria estrutura federativa brasileira que concede ampla autonomia aos municípios e estimula a multiplicação dos mesmos. Sendo assim, para que se concretizem as regiões, é preciso promover inovações institucionais e experimentar instâncias de poder compartilhado entre os municípios de uma região, o respectivo estado e a União. É fundamental também que as representações do controle social se façam presentes.

Cabe, portanto, à 16ª CNS renovar o apoio à implantação das regiões de saúde, orientando os gestores a aprimorarem os mecanismos de coordenação federativa e a ampliarem os investimentos na infraestrutura do SUS, incluindo as equipes multiprofissionais de saúde.

Para fortalecer estas equipes e garantir condições dignas de trabalho a todos os profissionais e trabalhadores do SUS, faz-se necesssária uma efetiva política de gestão do trabalho e da educação, coerente com as propostas de mudança do modelo de atenção e de integração regional dos serviços. No que toca à formação de pessoal, essa política deve ter como objetivos ampliar o quantitativo de profissionais, adequar seus perfis às necessidades de saúde da população e melhorar a qualidade dos processos de ensino-aprendizagem. Para tanto, toda a rede de serviços de saúde deve se tornar espaço de formação e todo profissional em exercício deve ter responsabilidades com a formação de futuros colegas. Quanto aos processos de aprendizagem, as práticas pedagógicas devem apoiar o desenvolvimento de competências técnicas, éticas e sociais que contribuam para superar a qualidade diferencial da atenção à saúde, que faz com que os serviços utilizados pelas pessoas pobres, negras e indígenas, mulheres, LGBT, deficientes e idosos sejam, em regra, de qualidade técnica e humana inferior. Para promover a equidade, a política de pessoal deve também contemplar a distribuição das instituições formadoras por todas as regiões do país e a criação de carreiras baseadas em diretrizes nacionais que assegurem estabilidade e possibilidade de progressão funcional. Por fim, deve garantir condições apropriadas de trabalho, com a definição de planos de carreiras, cargos e salários, talvez não por profissões, mas por níveis de atenção à saúde, como a atenção primária e a atenção hospitalar25.

A terceira e última questão relativa ao desafio de fortalecimento do SUS se refere ao seu financiamento. O conhecimento derivado das experiências dos gestores e conselheiros de saúde assim como as comparações entre países ou, no Brasil, entre o SUS e os planos e seguros de saúde não deixam dúvidas sobre a insuficiência dos recursos destinados ao sistema público de saúde.

Para superar o subfinanciamento, de forma estruturante, a estratégia fundamental é consolidar o orçamento da Seguridade Social, o que exige, no presente momento, o enfrentamento de duas grandes ameaças. A primeira é a PEC 06/2019 da reforma da previdência, especialmente no que toca à proposição do regime de capitalização que elimina a principal fonte de receita da Seguridade. A segunda, tão ou mais grave, é a proposta de fim da vinculação constitucional dos recursos da saúde, anunciada pelo ministro da Economia, que levará não ao congelamento dos gastos em saúde, como faz a EC-95/2016, mas sim à redução absoluta das verbas destinadas ao SUS.

O enfrentamento dessas ameaças exige ampla mobilização social, à qual devem se somar os participantes da 16ª CNS, associando a defesa do SUS à luta contra o PEC 06/2019. Esta mobilização deve contrapor a essas ameaças proposições relativas à definição de fontes de receita estáveis para a Seguridade Social, como: (a) a ampliação da alíquota da Contribuição Soscial sobre o Lucro Líquido para instituições financeiras; (b) a criação de um Imposto Geral sobre a Movimentação Financeira; (c) a tributação das remessas de lucros e dividendos realizadas pelas empresas multinacionais; e (d) o estabelecimento da Contribuição sobre Grandes Fortunas29. A esta lista, acrescenta-se a destinação ao SUS de verbas oriundas da exploração de petróleo do pré-sal e o fim da desvinculação das receitas da União e das medidas de desoneração fiscal que retiram recursos da Seguridade Social.

A luta por mais verbas para o SUS não pode desconhecer, contudo, que a sociedade brasileira não investe pouco em saúde, considerando-se o total de gastos públicos e privados: em termos de PIB, a proporção supera os 11%. Assim, a ampliação de recursos para o SUS deve coincidir com a inversão das proporções entre gastos públicos e privados. Em nenhum país com sistema universal de saúde, a participação dos gastos privados é tão alta quanto no Brasil, onde chega a 66% do total dos gastos com saúde. E o que é mais grave: a maior parte dos gastos privados não se refere aos seguros de saúde, mas sim ao que sai diretamento do bolso das pessoas30. Em 20% dos domicílios, as despesas com saúde representam mais de 10% do total das despesas. Esses gastos catastróficos afetam desproporcionalmente os segmentos mais pobres da população, que, em proporção dos seus gastos familiares, têm gastos diretos com saúde cinco vezes maiores do que a população geral31. Nesse sentido, é preciso reduzir os gastos diretos das famílias com medicamentos, exames e consultas médicas e odontológicas, etc., o que requer a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade dos serviços do SUS.

Uma estratégia para aumentar os gastos públicos, sem ampliar o total de gastos em saúde, é acabar com o subsídio público aos planos de saúde, estimado em R$ 12,5 bilhões somente em 2015, o que representou um gasto tributário correspondente a 32,3% do orçamento do Ministério da Saúde naquele ano32. Essa estratégia tem ainda a vantagem de contribuir para a equidade do financiamento da saúde, na medida em que o subsídio aos planos de saúde significa a transferência de recursos que pertencem a todos para o segmento mais privilegiado da população.

Nessa perspectiva, a 16ª CNS deve exigir não apenas o aumento dos recursos para o SUS, mas também o fim dos subsídios e dos incentivos tributários, seja por meio de isenções fiscais, seja pelo não-ressarcimento ao SUS da utilização de serviços públicos por portadores de planos privados, seja pelos empréstimos a juros reduzidos às operadoras de planos de saúde, à indústria de insumos de saúde e aos hospitais filantrópicos de atendimento não-exclusivo ao SUS.

Ademais, os delegados e as delegadas da 16ª CNS devem reafirmar a necessidade da efetiva regulação das operadoras de planos de saúde e dos prestadores privados, questionando inclusive o desempenho da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Por fim, no que tange ao financiamento da saúde, os participantes da 16ª CNS não podem esquecer que a viabilidade financeiro-econômica do SUS, a longo prazo, depende da superação do modelo mercantilista de atenção à saúde, que estimula a incorporação acrítica de tecnologias, atendendo mais a interesses comerciais do que às necessidades de saúde.

 

À guisa de conclusão: como implementar essa agenda?

A formulação de um projeto de desenvolvimento soberano, inclusivo, sustentável e democrático, embora capaz de aglutinar amplos setores da sociedade, tem oponentes poderosos. Para superá-los, há que se criar massa crítica de pessoas e organizações capazes de formularem um projeto dessa natureza.

Certamente, a 16ª CNS é um espaço privilegiado para o debate necessário à elaboração desse projeto e ao amadurecimento das estratégias de fortalecimento do SUS, constituindo novos sujeitos individuais e coletivos. Talvez um dos resultados mais relevantes da 16ª CNS venha a ser a compreensão da urgência de formação de um amplo bloco histórico democrático e popular em prol da soberania do país, da superação das iniquidades sociais, do desenvolvimento sustentável, da Seguridade Social e do SUS.

Para além das entidades e dos movimentos sociais já representados na Conferência, as lideranças da luta pelo direito à saúde devem buscar estreitar as articulações com todas as forças democráticas que atuam a favor dos direitos de cidadania. É a oportunidade de articular um movimento de massa em defesa da Seguridade Social, combatendo a PEC 06/2019 e a proposta de desvinculação dos recursos do SUS e protegendo a Constituição Cidadã, com a preservação das garantias relativas à previdência, à saúde e à assistência social.

Enfim, faz-se necessário lutar pela democracia em todos os níveis e espaços, nos locais de trabalho e estudo, nos espaços de convivência social, no cotidiano da vida das pessoas e das instituições. É preciso ampliar radicalmente o debate público, denunciando os riscos que vive o país de um retrocesso civilizatório, explicitando os vínculos entre Saúde e Democracia e reagindo ao avanço do fascismo, do conservadorismo cultural e do autoritarismo político que ameaçam as conquistas democráticas alcançadas com muita luta nos últimos 40 anos.

 

REFERÊNCIAS

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