No movimento da Reforma Psiquiátrica (RP) existem alguns mantras:
– Trancar não é tratar
– Manicômio nunca mais
– Fora comunidades terapêuticas
Mantras mantêm vivo o significado de nossas lutas. São como valises ético-políticas de nossa ação. E são fundamentais para manter o movimento unido em relação a esses valores. Mas, são insuficientes à hora de governar. É preciso incidir na formulação das políticas públicas destinadas a Saúde Mental no Brasil.
Há mais de 20 anos dedico meu trabalho a pesquisar serviços e redes de saúde mental, e, no campo da formação, há 25 que procuro formar pessoas para trabalhar no SUS no contexto das Redes de Atenção Psicossocial (RAPS). Analisando a conjuntura desde esse observatório particular, proponho 3 eixos de intervenção sobre as políticas públicas de Saúde Mental, indo do mais específico ao mais geral.
- No âmbito do SUS
- Na intersetorialidade
- Na cultura e na sociabilidade brasileiras
No âmbito do SUS:
É preciso expandir serviços, mas, sobretudo, recuperar o sentido e o funcionamento comprometido de nossos serviços comunitários. Atravessamos a pandemia em mãos de um governo genocida que paralisou os serviços. Não tivemos nenhum protocolo que indicasse, por exemplo, como deveria funcionar um CAPS durante a pandemia. Muitos erviços extinguiram grupos e oficinas e continuam assim até agora. Perdida a dimensão psicossocial as respostas predominantes são a medicalização e a proliferação de diagnósticos! Precisamos parar de brigar com “a” psiquiatria e ganhar para nossa causa um inúmero contingente de bons psiquiatras, que estão preocupados com o excesso de medicação, com as práticas comunitárias e com a qualificação diagnóstica.
Os trabalhadores da RAPS, exauridos e maltratados pelas gestões locais e as terceirizações, reagem com burocratização, criando barreiras de acesso e recriando o tratamento moral. A burocratização é uma doença institucional que tem tratamento. É urgente recuperar as supervisões clínico-institucionais dos serviços.
A integração de rede com as e-multis e atenção primária é capenga. Precisamos urgentemente de treinamento e capacitação. A retomada do financiamento para as e-multi é louvável, mas elas poderão se transformar somente em telemedicina se não cuidarmos desse aspecto da formação.
Nossos serviços substitutivos estão também atrasados e congelados nos mantras à hora de incorporar o que chamarei de práticas clínicas alternativas. Diálogo aberto; housing first; Gestão Autônoma da Medicação (GAM), Ouvidores de vozes, suporte de pares… Testadas no mundo inteiro, baratas e praticadas excepcionalmente no Brasil, deveriam ser diretrizes do governo federal para a RAPS. Não basta dizer o que não queremos, temos de dizer o que queremos colocar no lugar.
Precisamos de financiamento e indução para treinamentos em todas essas estratégias se queremos combater práticas higienistas como as do governo paulista, por exemplo. No Brasil conflagrado que temos. deveria “ser negócio” para o gestor local aderir à RP assim desenhada.
A atenção primária brasileira continua inerte perante a violência, sem saber o que fazer frente às adições, aos jovens que praticam cutting e sem realizar grupos eficazes. Muitos trabalhadores da APS declaram ter medo dos pacientes da saúde mental. A privatização e a terceirização são inimigos da Saúde Mental e do SUS em geral. Mas cabe a Saúde mental liderar e propor treinamentos específicos para atenção à saúde mental na APS
Na intersetorialidade
Incrementar a esperança é condição sine qua non para diminuir a autoagressão e a violência entre jovens e adolescentes. As escolas deveriam ser um lugar de desenvolvimento e proteção. Nossas pesquisas mostram que – lamentavelmente – são um espaço de reprodução da violência: racismo, desrespeito pela orientação sexual, imposição violenta de moral religiosa pelos professores maltratam nossos jovens. Só a Saúde mental pode ajudar nessa interação. Os adultos não estão exercendo sua função. Muitas intervenções escolares são marcadas pela religiosidade quase fanática de muitos professores e quadros diretivos.
Na assistência social o sistema protetivo não consegue cumprir sua missão nem interromper o ciclo da pobreza e da violência. Existe farta literatura demostrando a associação entre transtornos de Saúde Mental e pobreza. Devemos interromper esse ciclo e para tal as relações com outras áreas devem ser estimuladas, no nível federal, estadual e municipal.
Em relação à justiça devemos manter viva a luta pela descriminalização do porte de drogas. Isso permitiria retirar da cadeia a milhares de jovens. Descriminalizar já deveria virar um de nossos mantras!
O psicanalista Pierre Benghozi (2010) nos ensinou que cabe às políticas públicas produzirem uma remalhagem no tecido social, ali onde ele falhou, onde os laços de filiação não foram suficientes para sustentar esses sujeitos. Essa remalhagem é possível por meio da implementação de estratégias de afiliação, que são as que poderíamos estimular articulando verdadeiras redes intersetoriais e superando a atual fragmentação. A existência de fluxos de encaminhamentos predefinidos não constitui uma rede. Fluxo não é rede!
Na cultura
A sociabilidade brasileira foi estropiada por um sistema de liberação do “salve-se quem puder”. Nos últimos anos, isso foi hiper estimulado pelo capitalismo, por meio do assim chamado ultra neoliberalismo. Mas também por uma secular herança de mazelas estruturais como o racismo, o patriarcalismo e o colonialismo.
Não é atávico que devamos nos submeter a essa situação. Outras formas de sociabilidade e outros valores também podem ser deliberadamente estimulados.
Para desenvolver uma cultura da paz será necessária a recriação de espaços comunitários, de proximidade entre as pessoas, que estimulem a porosidade social.
Para superar a sociedade segregada como é hoje a sociedade brasileira será importante ganhar a classe média para os serviços públicos (transporte, saúde, educação), o que pode ser estratégia para superar esse verdadeiro apartheid social que vive o Brasil.
Cultura, esportes, regulamentação do mundo do trabalho são componentes importantes para promover a Saúde Mental e prevenir agravos. Julia Kristeva dizia que “a felicidade só existe ao preço de uma revolta”, sejamos mentaleiros revoltados! A luta continua!
*Rosana Onocko-Campos é presidente da Abrasco, médica, professora e chefe do Departamento de Saúde Coletiva da FCM da Unicamp.
**Texto escrito por Rosana Onocko-Campos em ocasião de sua participação na Conferência Nacional de Saúde Mental.