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Os dilemas da Big Pharma, artigo de Reinaldo Guimarães

Reinaldo Guimarães*

“We try never to forget that medicine is for the people. It is not for the profits. The profits follow, and if we have remembered that, they have never failed to appear. The better we have remembered it, the larger they have been”. George Wilhelm Merck (1952)http://todayinsci.com/M/Merck_George/MerckGeorge-Quotations.htm

“We did not develop this medicine for Indians. We developed it for western patients who can afford it.” Bayer Chief Executive Officer Marijn Dekkers  (2014)http://www.techdirt.com/articles/20140124/09481025978/big-pharma-ceo-we-develop-drugs-rich-westerners-not-poor.shtml

Que voltas o mundo deu no tempo que separa essas duas frases – tão opostas em seu conteúdo – ambas ditas por presidentes de grandes companhias farmacêuticas hoje globais? Nesse intervalo, a indústria farmacêutica dos Estados Unidos e da Europa gerou o que hoje se denomina Big Pharma. O mercado farmacêutico global vale hoje cerca de um trilhão de dólares. Em 2013, as 10 campeãs de vendas responderam por 45% desse mercado. Se agregarmos as 10 seguintes, chegaremos a quase dois terços. Mas a despeito dessa potência econômica e do poder político que a ela se associa, a Big Pharma vive hoje a maior crise de sua história que, aliás, se iniciava naqueles anos da frase do Sr. Merck.

Os indicadores da crise são vários, em primeiro lugar o enxugamento das folhas salariais. A compra da Wyeth pela Pfizer em 2009 gerou, até 2013, a demissão de mais de 51.000 empregados. A compra da Schering-Plough pela Merck, 24.000. Na AstraZeneca, que não foi comprada (ainda), houve 13.500 demissões (Fierce Pharma).

Os investimentos em P&D vêm oscilando, havendo firmas em que estes aumentaram e outras em que diminuíram. No agregado, prospecta-se um crescimento de 1,8% a.a. entre 2012 e 2018 (Fierce Pharma) o que é muito pouco para uma indústria que se assenta sobre descoberta e inovação. No que se refere às vendas, algum incremento se espera, mas nos mercados maduros , que são a fonte da maior parte das receitas da Big Pharma, o crescimento será muito pequeno (EUA entre 3% e 5% a.a. e Europa entre 1% e 3% a.a.). Para comparação, nos mercados emergentes nos quais outros atores estão atuando (em particular produtores locais), o crescimento esperado está acima de 10% a.a. (IMS Health Market Prognosis). No Brasil em 2013, alta de 16% sobre o ano anterior.

Se esses são, sinteticamente, os indicadores, vale a pena explorar os porquês da crise. Há razões relevantes no lado da oferta, da demanda e nas instâncias que articulam uma e outra. No lado da oferta, o principal determinante tem sido o cruzamento da escassez no lançamento de novas moléculas inovadoras (New Molecular Entities, no jargão do FDA) com o término recente do período de proteção patentária de medicamentos altamente rentáveis.

No lado da demanda, tanto na Europa quanto nos EUA, o desemprego e o consequente empobrecimento das populações provocado pela crise de 2008 podem ter criado gargalos no acesso a medicamentos. As evidências são conflitantes. Num estudo contratado pela OMS, eles apontam para efeitos muito suaves em termos de diminuição de acesso a medicamentos¹. Em outro estudo, sobre a crise econômica e o uso de serviços de saúde nos EUA, Canadá, Grã-Bretanha, França e Alemanha, constatam-se efeitos consistentes no sentido da diminuição do acesso². Os dois estudos mostram ainda que nos países com sistemas universais de saúde (ou com cobertura universal), a diminuição do acesso foi menor.

No campo das instâncias articuladoras entre oferta e demanda, tem sido parte constitutiva da crise o aumento do rigor dos critérios regulatórios pelas agências nacionais, bem como a atuação do poder judiciário na proteção dos sujeitos de pesquisa clínica e nas práticas comerciais das farmacêuticas, tema este ao qual voltarei mais adiante. Esses fatos, entre outros, têm como resultante o aumento exponencial de custos relativos aos novos projetos de medicamentos que chegam às fases finais de desenvolvimento.

O altamente complexo modelo de negócios da Big Pharma é resultado de um desenvolvimento histórico que, grosso modo, teve início ao final da 2ª Guerra e que, com razoável variação entre firmas e países, passou por três etapas. Quando falo em etapas, refiro-me a decisões organizacionais e estratégicas que, a cada vez, se tornaram dominantes. É muito provável, entretanto, que remanescentes de modelos anteriores tenham permanecido vivos em cada firma após a introdução de um novo modelo.

Cada uma dessas etapas se constituiu em torno a um modo específico de organização do processo de pesquisa e desenvolvimento, elemento que passou a ser central na vida das empresas³. A primeira delas (Random Screening) seguiu-se à descoberta, desenvolvimento e produção de antibióticos, começando com a penicilina. Nela, na medida em que nem as trajetórias metabólicas envolvidas com as patologias-alvo, nem os mecanismos de ação das substâncias eram adequadamente conhecidos, a busca por princípios ativos era fundada em tentativa e erro sobre centenas de amostras oriundas de inúmeras fontes. Mais do que qualquer conhecimento codificado, os caminhos da síntese eram trilhados a partir da experiência e intuição dos químicos.

Em meados da década de 1970, o modelo de negócios modificou-se com a articulação das descobertas da biologia celular, farmacologia, fisiologia, etc. turbinados pelo financiamento público à pesquisa nas universidades, com os processos de desenvolvimento e produção industrial. Nesse novo modelo (Rational Drug Design) os princípios ativos passam a ser imaginados e desenvolvidos a partir do conhecimento dos processos patológicos e da ação desses princípios sobre eles.

O terceiro e atual modelo, que está em crise, foi instituído a partir dos desenvolvimentos biotecnológicos mais recentes vinculados a conhecimentos no campo da biologia molecular. Importante mencionar que essa sucessão de modelos de negócios foi ancorada em oferta de conhecimento de base científica, como costuma ocorrer nos segmentos industriais intensivos em P&D em sistemas de inovação maduros. Mas o modelo atual apresenta uma distinção importante face aos anteriores: nestes, a oferta de conhecimento esteve disponível ao tempo e à hora para ser absorvida pela indústria, enquanto agora parece haver algum descompasso nesse processo. A promessa das “ômicas” (genômica, proteômica, etc.), a despeito da colossal quantidade de dinheiro a apoiá-las, em particular nos EUA, ainda não está respondendo às necessidades da indústria, pelo menos na velocidade e intensidade que a escassez de moléculas inovadoras estaria a exigir. Entre os esforços governamentais destinados a adensar e apressar a oferta devida pela academia às indústrias destacam-se as iniciativas de fomentar uma “pesquisa translacional” como modo canônico de fazer
pesquisa em saúde nas universidades norte-americanas4. Outra evidência a esse respeito é o recente (abril de 2014) acordo estabelecido entre o NIH, algumas ONG’s e 10 empresas da Big Pharma denominado Accelerating Medicines Partnership, cujo objetivo é aproximar pesquisadores e farmacêuticas (http://www.nih.gov/science/amp/index.htm).

Quais têm sido as respostas das empresas à crise? A primeira foi uma onda de fusões e aquisições de empresas cujo objetivo era o de adquirir os pipelines das empresas fundidas ou compradas. A segunda foi a decisão de diminuir a verticalização nas firmas, com o objetivo de compartilhar riscos com terceiros. A terceira foi a entrada no mercado de genéricos, que deixaram de ser ‘criminalizados’ no marketing das companhias junto aos médicos. Além disso, radicalizaram-se as estratégias no terreno da propriedade intelectual visando fortalecer interesses comerciais, mesmo que em detrimento do interesse público. No Brasil, essa radicalização tem estado bastante ativa nos últimos anos e conta com a colaboração da nossa mais que permissiva Lei de Patentes.

Houve, finalmente, uma radicalização nas estratégias comerciais. O objetivo foi o de fazer crescer receitas e margens, missão permanente de qualquer empresa com fins lucrativos. O problema se colocou quando, nesse processo, foram rompidas as fronteiras da legalidade. Nesse aspecto, a britânica GSK tem a indiscutível liderança. Em 2012, já havia sido multada em US$ 3 bilhões pela justiça dos EUA por vender medicamentos para uso off-label e atualmente está sob pesada investigação na China, por alegada prática de suborno a médicos e hospitais.

Mas não é só ela. Recentemente, a norte-americana Johnson&Johnson fez acordo com a justiça dos EUA declarando-se culpada de procedimentos pouco éticos de marketing. A multa é de US$ 2,2 bilhões. Há alguns meses, a suíça Novartis foi multada em US$ 422 milhões e a norte-americana Pfizer em US$ 1,3 bilhão, também nos EUA e por razões parecidas. As acusações mais comuns têm sido a comercialização de produtos off-label, práticas incorretas no desenvolvimento de ensaios clínicos, além de suborno a médicos e gestores para alavancar a compra ou prescrição de produtos.

A onda de fusões e aquisições parece estar chegando a um limite, na medida em que a concentração do mercado faz com que as empresas compradoras estejam se tornando grandes demais para serem, por sua vez, compradas. Além disso, os impactos já mencionados sobre a mão de obra decorrentes das fusões e aquisições começam a entrar no rol de preocupações dos governos nacionais, tanto dos países-sede das compradoras quanto das compradas. Por exemplo, as recentes propostas da norte-americana Pfizer para a compra da britânica AstraZeneca vêm provocando declarações governamentais de preocupação nos dois lados do Atlântico. No lado inglês, pela possibilidade de demissões e pela perda de patrimônio tecnológico construído com recursos financeiros britânicos e no lado norte-americano, pela suspeita de que a movida da Pfizer se destina a procurar maior conforto tributário nos impostos britânicos, menores do que os norte-americanos.

Com o esgotamento dos pipelines disponíveis para compra, uma nova estratégia que está sendo desenhada é a focalização em nichos nos quais cada companhia entende ter melhores condições de competir. Não se trata de comprar pipelines, mas de comprar ou trocar ativos específicos. Nesse capítulo há vários negócios em curso, mas chama a atenção o acordo entre a GSK e a Novartis, no qual a divisão de oncológicos da primeira está sendo trocada pela divisão de vacinas da segunda. A curiosidade é aguçada porque os oncológicos são a classe terapêutica que lidera o mercado mundial de medicamentos e não é fácil compreender como uma companhia que compete pela liderança no mercado mundial abre mão do segmento mais promissor desse mercado. Uma hipótese é que os problemas judiciais da GSK podem estar envolvidos na decisão. A competição nos oncológicos exige uma enorme força de vendas que, na GSK, está no centro de suas dificuldades judiciais, tanto nos EUA quanto na China. Vacinas exigem força de vendas muito menor, haja vista a grande participação governamental em seu mercado. Nessa hipótese, pode-se esperar uma demissão em massa de representantes comerciais da GSK pelo mundo afora, a começar pelos EUA.

Com exceção da radicalização comercial – ilegal e, em alguns casos, criminosa – e das ações visando estender o período de monopólio – nocivas ao interesse público – as demais reações da Big Pharma são compreensíveis e, provavelmente, surtirão algum efeito. Entretanto, uma nova era de prosperidade para elas está refém de algo muito pouco controlável, que é a tradução de conhecimento científico no terreno da biologia molecular em moléculas candidatas a medicamentos realmente inovadores, como já houve no passado. Hoje isso não existe, pelo menos na intensidade necessária para um novo ciclo de crescimento sustentado.

Em 1951, o físico Robert Oppenheimer era o diretor do Laboratório de Energia Atômica em Los Alamos, no qual havia sido gerada a bomba atômica dos EUA. Escrevendo sobre essa trajetória, ele comentou que:

“as coisas que aprendemos [durante a 2ª guerra] não são muito importantes. As coisas verdadeiramente novas foram aprendidas em 1890, 1905 e 1920 [os avanços da física], em todos os anos que conduziram à guerra, e nós pegamos essa árvore carregada de frutos maduros e a sacudimos e delas caíram o radar e as bombas atômicas… O espírito [durante a 2ª Guerra] era o de uma exploração frenética e um pouco inescrupulosa do conhecido; não o de uma tentativa sóbria e modesta de penetrar o desconhecido.” [5]

Voltando ao campo dos medicamentos, talvez seja esse o grande dilema atual da Big Pharma. A falta dos frutos científicos maduros capazes de permitir o desenvolvimento de novos caminhos (e produtos).

 

1: I.M. Buysse (UU) Supervised by: R.O. Laing (WHO) A.K. Mantel (UU).Impact of the economic recession on the pharmaceutical sector. WHO Collaborating Centre For Pharmacoepidemiology & Pharmaceutical Policy Analysis.  February 2010. http://apps.who.int/medicinedocs/documents/s17419e/s17419e.pdf

2: Lusardi, Annamaria; Schneider, Daniel; Tufano, Peter. The economic crisis and medical care usage. The Open Access Publication Server of the ZBW – Leibniz Information Centre for Economics. CFS Working Paper, No. 2010/10. http://www.econstor.eu/bitstream/10419/43230/1/630564221.pdf

3: Franco Malerba and Luigi Orsenigo – Innovation and Market Structure in the Dynamics of the Pharmaceutical Industry and Biotechnology: Towards a History Friendly Model. Industrial and Corporate Change (2002) 11 (4): 667-703. http://icc.oxfordjournals.org/content/11/4/667.full.pdf+html

4: GUIMARAES, Reinaldo. Pesquisa Translacional: uma interpretação. Ciênc. saúde coletiva. 2013, vol.18, n.6, pp. 1731-1744. http://www.scielo.br/pdf/csc/v18n6/24.pdf

5: First Annual Report of the National Science Foundation: 1950-1951 (GPO, 1951, p. 10) – Citado por Stokes, D.E., O quadrante de Pasteur: a ciência básica e a inovação tecnológica. Trad. José Emílio Maiorino. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2005, p.35.

* Reinaldo Guimarães é médico sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades – ABIFINA

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