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Os interesses da ciência e a ‘ciência’ dos interesses que se movimentam na pandemia

Num mundo de diferentes velocidades e em que a urgência pela vida se impõe, quais conhecimentos e em que tempo a ciência precisa e deve produzí-los para intervir numa pandemia como a da Covid-19? Essas foram algumas das questões que atravessaram o painel Como produzir teoria numa epidemia?, realizado em 14 de maio dentro da programação da Ágora Abrasco. Kenneth Camargo, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ); Naomar de Almeida Filho, vice-presidente da Abrasco e professor convidado do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP); José Ricardo Ayres, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP) e Sandra Caponi, professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (SPO/UFSC) debateram assuntos como produção científica, fake news, vulnerabilidade e ação política com uma audiência ávida por novas ideias. A coordenação foi de Tatiana Gerhardt, integrante da diretoria da Abrasco e docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGSC/UFRGS).

Num mundo marcado pela égide da “pós-verdade” desde 2016, profissionais de saúde e da ciência enfrentam ao mesmo tempo a pandemia provocada pelo agente etiológico SARS-CoV-2 e uma outra, motivada pelas informações falsas, propositais ou por desinformação, numa proliferação de sentidos que muitas vezes, para Kenneth Camargo, valem-se de situações e temas da saúde pública como recurso retórico e pedagógico com fins não muito altruístas.

Os interesses da ciência e a ciência dos interesses

“Estamos vendo, a partir de interesses políticos, uma série de questões veiculadas de forma distorcida” apontou o docente, que destacou como a internet mudou as regras desse jogo. “Não é necessariamente democrático, mas a internet ampliou vozes e visões e que, do ponto de vista da saúde isso traz problemas sérios”, pontuou Camargo, ressaltando dados de uma pesquisa inglesa que identificou teorias conspiratórias a respeito do vírus como tema central das mensagens trocadas em uma rede social.

Por fim e como trabalhado no artigo “Trying to make sense out of chaos: science, politics and the COVID-19 pandemic”, Camargo criticou o próprio modus operandi da ciência, tanto na estratégia de divulgação nos veículos de comunicação de massa, valendo-se da produção de expectativas sobre os achados científicos para se destacar na busca de investimentos, como na corrida produtivista. “Temos uma proliferação de artigos de baixa qualidade para alimentar os repositórios de pré-prints, sendo expostos à opinião pública sem ter passado pela revisão de pares, com afirmações diferentes entre si o que só cria mais confusão”, abordou o docente, recomendando um passo atrás em prol da cooperação e difusão de resultados com maiores garantias e mensagens mais claras para a população.

Partir do pensamento da vulnerabilidade como chave para traçar estratégias efetivas na produção de um conhecimento orientado para a ação foi o ponto central da participação de José Ricardo Ayres. “O quadro da vulnerabilidade é um tipo de teoria mediadora, que tenta fornecer conexões e sínteses entre diferentes áreas dos conhecimentos e saberes que possam ser importantes para construir um enfrentamento à epidemia”, reunindo das ciências de base às clínicas às ciências humanas, todas necessárias para entender o curso das doenças, assim como a interação entre saberes técnicos e cotidianos, como explicou o docente.

Vulnerabilidades: um outro ponto de partida

“Temos de perguntar quem está vulnerável a que e quando” sentenciou Ayres, ressaltando os aspectos pessoais e a intersubjetividade e desmistificando as lógicas totalizantes. “Não dá para tratar todo mundo como se fôssemos uma coisa única. As diferenças são muito importantes na hora do cuidado, tanto no plano macro como no micro”, disse ele, acrescentando que é possível ver padrões discursivos repetidos de outras emergências, como a da pandemia de HIV/Aids no início dos anos 1980. Em comum, a estigmatização e culpabilização de segmentos – no caso atual, daqueles que não conseguem manter o distanciamento social. “As favelas e os bairros populares estão sendo atingidos de maneira dramática” disse o docente, ressaltando que não adianta orientar esse segmento com as mesmas recomendações destinadas à classe média quando isso pode agravar o quadro da pandemia.

O docente da FMUSP finalizou a participação ressaltando a Atenção Primária à Saúde como lugar privilegiado tanto para a pesquisa programática como para a produção de respostas singulares. “É esse o espaço mais capilarizado do sistema de saúde, e fundamental para a capacidade de resposta. O SUS e sua política histórica de fortalecimento da Atenção Primária é o que faz a gente conseguir chegar às pessoas e que permitirá a sustentação da resposta após o pico epidêmico” abordou José Ricardo Ayres, indicando a necessidade de um plano de sustentação de ações práticas e científicas, intersetorial e interdisciplinar, articulando academia, gestão e movimentos sociais.

Destruindo mitos para novos tempos do pensamento

Numa convocação ao pensamento, Naomar de Almeida Filho circundou o debate em torno do termo “isolamento vertical”, desmascarando a fraude teórica desde o início e discutindo a utilização dessa ideia por parte dos interesses da pseudociência , ferramenta de uma guerra retórica em torno de posições nem um pouco éticas.

A partir da discussão já apresentada por Paula Treichler na obra “Como fazer teoria numa pandemia?” o abrasquiano alterou o vírus HIV – tema de fundo de  Treichler – pelo coronavírus e, seguindo a pista da autora de olhar “através” da linguagem e explorar o lugar onde as determinações realmente ocorrem, questionou: os debates que acontecem em torno do conceito de isolamento e suas variáveis são fruto de uma disputa retórica ou de uma guerra teórica? “Se for uma disputa retórica o que pode estar em questão é a própria ciência, corrompida ou pervertida por formas que confrontam a própria ciência com algo que busca parecer científico” levantou Naomar, identificando nessa construção a principal estratégia da pseudociência, distinguindo-a da ciência fake – aquela que erra e frauda propositalmente para gerar determinados resultados – e da anticiência, visão que repele qualquer validade do pensamento científico.

“Estamos lidando com mitos mal definidos. Em realidade são muitas mentiras, algumas com natureza metafórica, outras metonímica, uma espécie de pandemia dentro da pandemia” ressaltou o pensador, articulando a dimensão histórica e complexa desse evento social extremo, constituído por sequências de epidemias, enquanto dimensões da dispersão da doença na população, e seus diferentes planos de significado e de signos, tudo misturado e imbricado em mulitplanos. “A epidemiologia, a virologia, a infectologia e demais ciências invadem a sociedade com signos, e que a mídia se encarrega de multiplicar” formula Naomar de Almeida Filho, que finalizou detalhando como o termo isolamento vertical foi utilizado no Brasil de Bolsonaro e nos Estados Unidos de Donald Trump para fomentar uma verdadeira guerra cultural e sequestro do pensamento científico em meio às semanas epidemiológicas que estamos vivendo.

Coube a Sandra Caponi construir sínteses a partir das três intervenções, convocando a audiência a “produzir ciência e teoria de outro modo”, articulando os diferentes tempos da ciência, da mídia, da epidemia e da política. “O baixo resgate histórico, as estigmatizações das vulnerabilidades e a infodemia têm marcado a leitura que as ciências sociais e a mídia, cada um ao seu modo, tem feito o momento científico da epidemia” analisou Sandra, que conclui como resultante desse processo uma aliança entre a desinformação e o preconceito.

Tal vetor expressa-se no falso dilema entre salvar vidas e salvar a economia, cavalo de batalha do presidente da República com os governadores. Para ela, a saída para a sociedade pensante é produzir o novo. “Precisamos de políticas coordenadas em diferentes níveis, e de um SUS forte e concreto” aponta a docente, articulando ciência e política como a bússula necessária para atravessarmos a tempestade e assim alcançarmos outros e melhores mares futuros.

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