Os cuidados com os idosos e a visão que a sociedade tem sobre esse grupo populacional foram o centro de debate do painel Covid-19 no Brasil = Gerontocídio? realizado na tarde do dia 29 de abril na Ágora Abrasco. A importância do papel do SUS, o machismo e o racismo também permearam o debate como temas transversais que atingem a população e também evidenciam as diferenças dos efeitos da pandemia. Além disso, foi ressaltado o idadismo, ou etarismo, um preconceito que leva estereótipos negativos para a velhice e que põe como ideal de vida uma eterna juventude. O debate foi conduzido pelo coordenador do Grupo Temático Envelhecimento e Saúde Coletiva da Abrasco, Alexandre Kalache, e contou com os comentários de Alexandre da Silva, docente da Faculdade de Medicina de Jundiaí e integrante do Grupo Temático Racismo e Saúde, da Abrasco; Karla Giacomin, médica geriatra da Prefeitura de Belo Horizonte (MG); Marília Berzins, Presidente do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe); Anita Neri, docente da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Eberhart Portocarrero-Gross, médico de Família e Comunidade da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ); e Marília Louvison, docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e do Conselho Deliberativo da Abrasco.
Idadismo ou etarismo, o preconceito contra o idoso: Alexandre Kalache, que já foi diretor da Organização Mundial de Saúde por 13 anos, iniciou sua intervenção abordando a gravidade da situação e a importância do SUS. Alexandre trouxe dados que evidenciam que o Brasil tem uma realidade diferente de outros países na forma de disseminação da pandemia: “O rosto da Covid-19 no Brasil é diferente, primeiro porque é mais jovem. 30% das mortes são de pessoas com menos de 70 anos. Também tem a cara mais parda, mais negra e periférica”. E complementou: “Por que é mais jovem? Porque as comorbidades nos acometem antes! Aqui envelhece-se mal!”. Além disso, Kalache apontou a importância do cuidado de forma coletiva e lembrou que as melhores respostas à pandemia têm vindo de lugares governados por mulheres: “Mulheres que tem um entendimento maior do que é cuidado. Coisa que os homens, sobretudo os machistas do topo não entendem!”. Kalache criticou ainda o que chama de idadismo, que se trata do preconceito com o idoso, colocado na sociedade como alguém improdutivo e que, por isso, deve ser descartado. E em contraposição, ressaltou que os “idosos também tem o papel da coesão social, de apontar a necessidade de calma, de que isso vai passar. Isso não está na mídia, porque o idoso é sempre o outro”. A crítica aos pronunciamentos do presidente da República, que tratou a pandemia como uma gripezinha, e a desqualificação do Brasil nos órgãos internacionais por posturas negacionistas também foram abordadas.
Os comentários acerca da exposição de Kalache foram iniciados pela professora Anita Neri, que ressaltou a construção do preconceito com o idoso: “Essa pandemia acentua a culpabilização dos idosos por estarem ocupando o sistema de saúde no lugar dos jovens, que são vistos como produtivos. A pandemia está suscitando questões éticas com relação ao direito à vida e da legitimidade dos direitos dos idosos”. Anita destacou que esse comportamento cria uma cultura nociva a toda a sociedade por longo tempo: “Não são questões só para esse momento, mas para o futuro da cultura da velhice e do cuidado. As pessoas que hoje são jovens podem agregar estereótipos que vão prejudicar seu próprio envelhecimento”.
Machismo e racismo como questões transversais: A questão racial e de gênero também foram abordadas. Marília Berzins destacou as diversas desigualdades de gênero e como isso se agrava na pandemia: “Quando vemos a renda, as mulheres recebem menos. Quando falamos de saúde, as mulheres têm menos acesso à saúde. As mulheres são vítimas de violência. E mulheres idosas cuidam de homens idosos, é um duplo papel de quem necessita de cuidado. O gênero é uma função social e precisamos discutir o lugar que as mulheres tem”. Em seguida, Alexandre da Silva apontou que “falar da questão raça e cor é uma necessidade. Só para marcar como isso é importante, temos vários países que destacaram o quanto a população negra sofre mais nesse cenário”. Ele complementou falando da dificuldade de manter o isolamento social para os mais pobres que precisam garantir seu sustento: “Isolamento para muitas pessoas chega a ser um privilégio. Outras recomendações também ficam difíceis de serem seguidas”.
O cuidado com o idoso institucionalizado, aquele que vive em instituições de longa permanência, foi destacado na fala de Karla Giacomin: “Temos de fazer um esforço para enxergar os invisíveis. E o idoso institucionalizado é esse caso, assim como na luta antimanicomial, porque tiramos ele de cena da sociedade, apartamos”. Karla citou o esforço da Frente Nacional de Fortalecimento às Instituição de Longa Permanência para Idosos de dar visibilidade à questão e apontou que “não temos de lutar por uma política de cuidado do idoso, mas pelo cuidado ao longo de toda vida. Se não for assim, ficaremos sempre em segundo plano”.
O médico de família Erbehart Portocarrero-Gross apontou a fragilidade da rede de saúde por conta do descaso que vem de longa data: “A gente vive numa rede muito fragilizada, com desmonte crônico que expõe o usuário e os profissionais. Alguns profissionais tiveram salários reduzidos a metade”. Em seguida, a professora Marília Louvison destacou a necessidade de uma política que reforce a igualdade, inclusive com regulação única dos leitos privados e públicos pelo SUS: “O sus precisa garantir um cuidado equânime mesmo numa situação de desigualdade, principalmente neste momento”. Louvison concluiu: “O idoso é que mostra a necessidade desse lugar de igualdade. Não queremos que os profissionais de saúde tenham que fazer escolhas”.
Por fim, foi destacado o papel do idoso na continuidade da cultura e que o geronticídio é conceitual, pois reforça a descartabilidade desse segmento da população por uma visão produtivista. Kalache apontou ainda a capacidade de resiliência dos idosos diante de situações de emergência e a importância disso para coesão social e a cultura. Emocionado, Kalache também fez questão de dizer que mais do que falar como acadêmico, ex-diretor da OMS ou profissional da saúde, estava falando como idoso, um papel social importante de ser registrado nesse momento.
Assista na íntegra ao painel Covid-19 no Brasil = Gerontocídio?