Mais de um ano após o primeiro registro de covid-19 no Brasil, os estragos devastadores deixados pelo novo coronavírus vão muito além dos mais de 320 mil mortos em todo o país. Para as pessoas em situação de vulnerabilidade social —a maioria negra, segundo dados do Atlas da Vulnerabilidade Social, é preciso lutar contra o vírus, o desemprego, a falta de serviços de saúde adequados, as desigualdades e um terror antigo: a violência.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, durante o primeiro semestre de 2020 o país teve 648 casos de feminicídio — 1,9% a mais, se comparado com os mesmos meses em 2019. Além disso, nesse mesmo período, outra análise feita pelo mesmo Anuário em 12 estados brasileiros apontou que houve aumento de 3,8% nos acionamentos da Polícia Militar com relatos de violência doméstica, totalizando 147.379 chamadas.
Com a adoção do isolamento social, uma das medidas para conter o avanço do coronavírus, as pessoas passaram a ficar mais tempo em suas casas, o que gerou uma “superconvivência” entre os residentes e explica o avanço da violência doméstica contra pessoas do sexo feminino. Mulheres negras e periféricas, que antes já ocupavam os rankings de vítimas, foram ainda mais afetadas.
A violência também transpassou as paredes das residências. Na rua, a agressão policial tem interrompido milhares de vidas negras. É o que indica o Anuário Brasileiro de Segurança Pública ao evidenciar que, em 2019, o país apresentou em torno de 6.300 óbitos por ano somente por intervenções policiais — e que a população preta e parda foi vítima de 79,1% das ações que resultaram nesse tipo de morte.
Vidas negras ceifadas durante a pandemia, como a de George Floyd, nos Estados Unidos, de João Alberto Freitas e do adolescente João Pedro, no Brasil, reacenderam debates sobre a letalidade da violência provocada pela polícia e sobre o racismo institucional no mundo.
Neste contexto de pandemia, talvez as violências que partem de agentes das instituições de segurança pública sejam mantidas porque há maior preocupação com a manutenção da ordem social hierárquica que privilegia o direito à vida de determinados grupos étnicos, em detrimento da proteção igualitária de todas e todos. Essas instituições operam por meio de mecanismos de filtragem racial que remetem a um grupo social específico: a população negra.
Não se pode esquecer que há uma subnotificação de dados de violência, como comprovam os últimos anuários divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É um sinal de alerta sobre o real aumento dos casos de violência doméstica e de outros tipos de violência no país. Infelizmente, os dados podem ser infinitamente maiores.
O descaso do Estado com a população negra também está bem representado na subnotificação da raça/cor ou etnia nos sistemas de informação da saúde e da segurança pública, mesmo havendo um aparato legal que torna esse registro obrigatório. A adequada notificação dos casos de violência, assim como dos casos da pandemia por covid-19, é fundamental para a elaboração de uma política pública com atuação estratégica no enfrentamento ao racismo.
Este artigo é uma produção do GT Racismo/Abrasco com apoio institucional do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas no Brasil).
Cláudia Rodrigues de Oliveira é membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Abrasco, enfermeira e graduanda em Saúde Coletiva pela UFRGS.
Elaine Oliveira Soares é membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Abrasco, enfermeira e mestre em saúde coletiva pela UFRGS.
Jaqueline Oliveira Soares é membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Abrasco, sanitarista e mestre em saúde coletiva pela UFRGS.
Este artigo foi publicado originalmente no Nexo Jornal em 19 de abril de 2021