Quando ainda era uma proposta tramitando, ela ficou conhecida como PEC do Fim do Mundo. Afinal, é difícil imaginar alguma sustentabilidade na ideia de passar 20 anos com as despesas primárias praticamente congeladas, corrigidas apenas pela inflação. É pior ainda quando se pensa em uma área como a saúde, que tem como agravante o fato de que a população cresce e envelhece, demandando mais serviços.
Mas as preocupações e protestos não surtiram efeito, e a proposta passou feito relâmpago no Congresso: foi apresentada à Câmara em junho de 2016 e, no fim daquele mesmo ano, o texto foi promulgado como Emenda 95, também chamada de Emenda do teto dos gastos.
De lá para cá, o que já a saúde já sentiu? Por que a revogação dessa Emenda é tão importante? Durante o 12ª Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão), no Rio, conversamos sobre isso com Grazielle David, que é especialista em orçamento público e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Na entrevista, concedida ao jornalista Antonio Martins (do Outras Palavras), ela foi além: explicou, de modo bem didático, por que as leis que regem a política fiscal no Brasil hoje se chocam — e como, neste choque, o governo optou por desrespeitar a regra de ouro.
Quais são os efeitos da Emenda 95 já sentidos sobre as políticas públicas e, em especial, sobre a saúde?
Temos observado no Abrascão que os espaços que discutem a austeridade e a Emenda Constitucional 95 e seus efeitos para a saúde têm sido os mais cheios, o que mostra como esse é um tema central. Como as pessoas querem entender como as políticas econômicas e o orçamento público impactam as políticas públicas e a oferta dos serviços.
Quando a Emenda 95 ainda era um projeto de emenda constitucional, uma série de estudos foram realizados. Alguns projetaram o que teria acontecido se ela tivesse sido adotada há 10 anos, e observamos nesses estudos que, se pegássemos a porcentagem do PIB que estava sendo investido em saúde, teria caído muito. Outros fizeram projeções para o futuro e mostraram como, ao longo dos anos, o investimento em diversas políticas públicas vai cair, inclusive em saúde e educação.
Mas a gente não imaginava que os efeitos mais perversos viriam de uma forma tão rápida. Estou falando, por exemplo, do aumento da mortalidade infantil. Esse é um indicador extremamente sensível. A gente chama de indicador-sentinela, porque, quando alguma coisa se altera, imediatamente temos mudanças nesse tipo de indicador. É grave que no Brasil, depois de um longo período em que vínhamos diminuindo a mortalidade infantil, pela primeira vez tenhamos aumentado essa taxa, nesse momento de recortes orçamentários, de EC 95, e austeridade. E os grupos mais vulneráveis, recém-nascidos e crianças, sendo os primeiros afetados pela diminuição doa investimentos públicos e do orçamento da saúde.
E os cortes são feitos justo nas políticas mais essenciais. Só do ano passado para agora, se olharmos qual subfunção orçamentária está sendo mais afetada, a primeira que vemos algum corte orçamentário é a da Vigilância Sanitária. Tem gente que acha que não usa o SUS, mas vigilância sanitária é algo que todo mundo usa — tem várias coisas que todo mundo usa, como vacina, ou transplante quando precisa, etc. E vigilância sanitária todo mundo usa o tempo todo. Se você vai num restaurante, se vai à padaria todos os dias, numa farmácia, todos aqueles estabelecimentos são monitorados pela vigilância sanitária. Se tem um recorte orçamentário, pode ter certeza que no seu dia a dia você está sendo afetado na capacidade de monitoramento.
Outro corte orçamentário muito importante, tanto na saúde como no orçamento geral, é o corte nos investimentos. E isso é uma situação dramática que tem a ver com a lei orçamentária do ano que vem, para 2019.
Por que isso é muito sério? Países que têm grande crescimento econômico promovem grandes investimentos públicos. Olha que cenário preocupante: a gente precisa pagar a dívida, e diz-se que a Emenda 95 foi adotada para pagar a dívida. Mas a melhor forma de pagar a dívida é tendo crescimento. Se você cresce, consegue pagar a dívida. Porém, a gente diminui o investimento público, inviabiliza o crescimento e só vai aumentando a dívida.
E quando se diminui o investimento, isso tem duas consequências. Uma delas é prática: chegamos ao menor nível de investimento público no país em 50 anos. A gente não só não está investindo em nada novo como também não estamos conseguindo fazer a manutenção da estrutura. É como se já estivéssemos em um cenário de desinvestimento.
Um exemplo são as Casas da Mulher Brasileira. Nos últimos anos construímos várias casas para atender mulheres em situação de violência. Elas estão montadas, prontas e equipadas, mas, por falta de dinheiro para fazer manutenção ou comprar um equipamento que esteja faltando, elas não vão ser abertas. E isso em um momento em que a violência contra a mulher está aumentando. É muito comum em momentos de austeridade, como o que estamos vivendo, a violência contra a mulher aumentar. Porque aumenta o desemprego, aumenta o uso de bebidas, por exemplo. E, enquanto aumenta essa violência, estamos diminuindo os serviços especializados e fechando as portas dessas casas. Isso pode ter outros efeitos, na medida em que sofrem violência, às vezes tem uma criança, eles vão para a rua, ou adoecem, e vão buscar o SUS. Só que o SUS está sem investimento… Olha a série de problemas que vamos gerando e as consequências que vamos causando.
Além da vigilância sanitária, também tivemos queda importante em vigilância epidemiológica, o que é muito preocupante no Brasil. E acabamos de passar por um surto de zika, sempre vivemos epidemias de dengue, por exemplo, então é preocupante o corte nessas ações específicas.
Com relação ao investimento, além desse efeito prático, existe também o efeito orçamentário. e tem algo que chama muito a atenção no orçamento do ano que vem.
Temos três leis orçamentárias: o PPA ]Plano Plurianual], a LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] e a LOA [Lei Orçamentária Anual]. E a LDO para o ano que vem, que acabou de ser aprovada, tem um artigo específico que a torna inconstitucional. Temos defendido isso porque o Brasil hoje está com tantas leis regulando sua política fiscal que elas hoje se chocam, não são mais compatíveis entre si. Você tem que escolher respeitar uma ou a outra. E aconteceu exatamente isso no orçamento para 2019.
Essa explicação é de enorme importância. Você publicou um artigo há poucos dias no site do Inesc, que foi republicado pelo Outras Palavras, explicando que, por um lado a Emenda 95 diminui muito todos os recursos exceto os que são para pagamentos de juros. Como os recursos – tanto de custeio dos serviços públicos, como de investimento – são no seu conjunto comprimidos, e como algumas despesas são obrigatórios, o mais prejudicado é o investimento. Porém, os investimentos também incidem na capacidade de endividamento. Então, além de não poder gastar o que se arrecada, também não de pode tomar emprestado?
Sim, é isso. Essa é a grande incompatibilidade. Temos por um lado o teto dos gastos, que é a EC 95 e, por outro, a chamada ‘regra de ouro’ da Constituição. Ela diz que o Estado não pode se endividar para pagar despesas correntes, que são as despesas mais comuns do dia a dia; apenas para fazer investimentos. Só que, com o teto, o principal corte foi nos investimentos, porque eles são despesas são discricionárias, e não obrigatórias, então o governo vai lá e corta primeiro. Se não faço investimentos, não posso tomar novas dívidas. Mas, se já estou com déficit e não posso tomar novas dívidas, como faço para pagar as despesas correntes obrigatórias?
O governo se encontrou em uma sinuca de bico ali. Falou: ‘E agora? Ou eu não respeito o teto dos gastos ou não respeito a regra de ouro. Como hoje quem manda, apesar desse conflito, é o teto dos gastos, então o governo tomou a decisão de desrespeitar a regra de ouro da Constituição.
Uma coisa importante: não é que, em situações de muita necessidade, o governo não possa tomar uma dívida para pagar despesas correntes. A regra não é 100% boa. Por exemplo, a saúde é despesa corrente? Sim. Mas posso considerá-la como investimento? Posso. Afinal, a cada R$ 1 aplicado em saúde, tenho um retorno no PIB de R$ 1,85. Então a regra de ouro poderia ser revista para pensar despesas correntes que na verdade são investimentos? Poderia. Mas ela também tem um papel importante de garantir justiça geracional. De não permitir que nossa geração se endivide a tal ponto de que comprometa as gerações futuras.
Podemos repensar essa lei? Podemos. Mas não podemos desrespeitá-la antes de ela ter sido alterada. Essa é a questão. Essa é a instabilidade jurídica que estamos vivendo, que se reproduz nas leis orçamentárias e que é preocupante.
Por exemplo, para algumas coisas vale a lei e, para outras, não vale. Para algumas pessoas vale a lei e, para outras, não vale. Para alguns governos, valem as leis orçamentárias e as leis fiscais e, para outros, não vale. Então, que estabilidade jurídica e que respeito à Constituição são esses que nós temos?
O que você está dizendo é que vivemos uma ‘hiperpedalada fiscal’ neste momento? Aquilo que foi usado como argumento para afastar Dilma Rousseff agora está sendo praticado em uma escala muito maior – certamente com um conluio com o Congresso Nacional, que deve ter cobrado muito caro para aprovar esta lei, e em especial com a mídia, que se cada diante dessa megapedalada?
Sim, podemos chamar de pedalada fiscal. O governo poderia fazer o seguinte, que a Constituição prevê: aprovar uma lei com equilíbrio orçamentário e respeitando as duas regras em vigor hoje, tanto a do teto dos gastos quanto a regra de ouro. Depois, ao longo de 2019, poderia abrir um crédito alegando estar com pouca capacidade financeira para pagar as despesas. Então seria feita uma lei específica, votada no Congresso. Mas não: ele escolheu aprovar agora, por iniciativa do executivo e aprovada pelo legislativo, sim, uma LDO, em que já nesse momento prevê que vai abrir crédito adicional e emitir dívidas para pagar despesas correntes.
Está claramente atentando contra uma regra constitucional. É uma superpedalada, registrada em uma lei orçamentária, sem que ninguém levante isso de forma mais séria. Sem que isso seja levado ao STF, sem que se questione essa forma de se fazer as coisas.
Essa questão, muito mais do que orçamentária, é democrática e também uma questão do judiciário. Estamos ignorando a forma como as leis estão em conflito, e nada se faz a respeito.
Além do exemplo que você deu, das casas da mulher, estamos vendo outras políticas em processo de desmonte. A contratação de equipes de saúde da família, a manutenção das unidades de educação básica, situações em que o prefeito de uma cidade sugere a determinados grupos religiosos que procurem determinada pessoa para fular filas para procedimentos… Isso para não falar nas obras de despoluição dos rios e de saneamento que vão sendo paralisadas. Tudo isso pode ser, de alguma forma, relacionado à Emenda 95?
Sim, apesar de esta não ser uma relação tão óbvia de início.
O teto dos gastos trabalha com uma lógica de valor pago e restos a pagar pagos. Quando olho uma política pública, tenho que considerar no teto dos gastos o pago e o resto a pagar. Mas a lei da saúde, 141/2002, fala que o valor mínimo a ser aplicado em saúde considera a despesa empenhada. E são fases distintas da execução orçamentária [valor empenhado, valor pago e restos a pagar]. Normalmente o valor empenhado é muito maior do que o valor de pagos e restos a pagar.
Veja: o teto considera o valor pago e de restos a pagar para projetar o valor para os próximos anos, acrescido somente da inflação. Mas a lei da saúde considera o valor empenhado. Na prática, quer dizer que o governo diz estar aplicando o mínimo em saúde, mas na realidade o que está chegando lá na ponta, para executar todos esses serviços que estão sendo fechados, é muito menos, ou seja, o valor de pago e de resto a pagar. O que conta para as pessoas e para os municípios é o dinheiro que está chegando, que são o pago e o resto a pagar. Se avalio pelo empenhado, estou desconsiderando que muita coisa vai para ‘restos a pagar’, para outros anos.
Esse valor é empurrado. Aí fica falando que o valor da saúde não está sendo impactado, que o valor mínimo está sendo garantido, mas porque está olhando o empenhado. Mas se olho o resto a pagar e o pago, vejo que não está cumprindo. Tanto é verdade que 2017 foi um dos anos em que o Ministério da Saúde mais colocou dinheiro em restos a pagar. São bilhões de restos a pagar – um cheque voador para ser pago não sabemos quando, e que vai se acumular.
Essa é uma das principais táticas do momento: vamos colocando tudo em restos a pagar, a gente fala que está cumprindo o mínimo, mas não se cumpre. Não chega a política pública na ponta, não se garantem os serviços, as pessoas vão perdendo a assistência.