05 de dezembro de 2013
Por Reinaldo Guimarães*
Após um período de relativa calmaria, o tema das relações entre propriedade intelectual (PI) e saúde pública está reaparecendo com força. A meu ver isso decorre de vários fatores, dentre os quais se destacam a persistência da crise das grandes farmacêuticas, o sucesso das políticas de genéricos em vários países e o aprofundamento das iniciativas dos EUA e UE para estabelecerem acordos comerciais bilaterais e multilaterais “a convite”, ao largo da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nestes, cláusulas relativas à PI têm sido reiteradamente propostas. Elas impõem a inclusão, nas legislações patentárias dos países signatários, de dispositivos que ampliam o escopo da concessão de patentes, o aumento dos períodos de proteção, a interdição do acesso a dados, bem como proíbem ou dificultam a utilização das flexibilidades dos acordos TRIPS.
Dentre os países em desenvolvimento, a África do Sul tem tido uma posição bastante combativa nesse tema após a derrocada do regime de Apartheid (1994). Mencione-se apenas que as flexibilidades na aplicação dos acordos TRIPS, instituídas em 2001 e que, entre outros aspectos, admitiu o direito dos signatários decretar o licenciamento compulsório de medicamentos em determinadas conjunturas sanitárias, decorreu de uma questão posta por aquele país. A despeito dessa posição, a África do Sul apenas agora tenta construir uma política nacional consolidada para a PI. A esse respeito, o Ministério da Indústria e Comércio daquele país lançou há alguns meses para consulta pública uma proposta sobre o tema . Nela, as relações entre PI e saúde pública ocupam uma posição de grande destaque. Os principais pontos dessa vertente da proposta são, em tradução livre: (1) o sistema de PI é um dos fatores que impacta positiva ou negativamente o acesso aos cuidados de saúde; (2) um país em desenvolvimento como a África do Sul pode dar acesso a medicamentos por preços mais baixos via o ‘licenciamento compulsório’, particularmente quando o governo considera que o preço dos medicamentos está muito alto; (3) outros meios de melhorar o acesso a medicamentos são a facilitação da competição via genéricos e a importação paralela.
Desses três pontos deriva um conjunto de recomendações, nas quais se destacam as que enfatizam a importância de conciliar a política para a PI e a política de saúde. Por exemplo, ‘PI e políticas de saúde necessitam estar em acordo, posto que os preços dos medicamentos estão envolvidos na melhoria do acesso à saúde pública¹’; ou ainda, que ‘outras políticas econômicas, tais como políticas de comércio e competição, devem estar em harmonia com os objetivos da política de saúde’; ou mesmo que ‘há a necessidade de balancear a política de PI e a política de saúde’. Trata-se de um muito bom exemplo, caso a proposta se transforme em lei.
A despeito de uma posição de liderança na construção das flexibilidades da TRIPS, o Brasil deu à sua política de PI, expressa na lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, uma condução que, entre outros problemas, praticamente excluiu a pauta sanitária de suas preocupações. Em outros termos, reforçou o atendimento aos interesses comerciais e alijou a vertente do interesse público. Isso, em nome de uma suposta ‘segurança jurídica’ que seria essencial para garantir os investimentos da Big Pharma no país.
Recentemente, duas iniciativas de grande importância tiveram lugar, no sentido de mudar o rumo da política brasileira de PI e reorientá-la para a valorização do interesse público. A primeira foi a apresentação do Projeto de Lei 5402/2013 pelos deputados Newton Lima e Dr. Rosinha que altera a lei de patentes brasileira em vários pontos. Além disso, cria um conselho interministerial com a missão de orientar o executor da política de patentes, o INPI. Finalmente, regulamenta a interveniência do órgão de regulação sanitária (ANVISA) no processo de análise de pedidos de patentes.
Mais recentemente ainda, a Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA), com a anuência da Farma Brasil e da Pró-Genéricos, ingressou no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), pleiteando a exclusão do parágrafo único do artigo 40 da lei de patentes. Esse parágrafo admite a extensão do período de monopólio para compensar o tempo que o INPI utilizou até a concessão da patente. Como se sabe, o INPI desenvolveu um estoque muito grande de pedidos ‘em atraso’ (Backlog) em função de ineficiência gerencial e baixa prioridade governamental dada ao órgão. O tempo adicional concedido pelo mencionado parágrafo único retarda o lançamento de genéricos, mais baratos, e mina a ampliação do acesso a medicamentos importantes. Portanto, um caso típico de atendimento do interesse comercial em detrimento do interesse público. O argumento central da demanda da ADI é que a extensão do período patentário pela utilização desse dispositivo penaliza atores (as empresas fabricantes de genéricos) que não são os responsáveis pelo atraso (um órgão governamental). E que, com isso, fere o direito constitucional da livre concorrência.
As duas iniciativas, cada uma ao seu modo e à sua via, merecem apoio e, caso sejam vitoriosas, podem ampliar o acesso racional a medicamentos mais baratos, seguros e eficazes, contribuir com o desenvolvimento da indústria farmoquímica e farmacêutica nacionais, bem como colocar novamente o Brasil numa posição de destaque e liderança no mundo em desenvolvimento. Mas o sucesso das mesmas não será um ‘caminho real’. Tanto o lançamento do PL quanto o ingresso da ADI no STF vêm gerando reações, em particular através da Sociedade Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI), entidade que congrega os grandes escritórios de advocacia no terreno de patentes, além da guilda que representa a indústria farmacêutica multinacional entre nós (Interfarma) e as Organizações Globo (Ver, por exemplo, ‘PL 5.402/2013 é retrocesso na legislação de patentes’).
Uma apreciação justa do papel da proteção da propriedade intelectual mediante patentes no terreno dos produtos industriais para a saúde exige a construção de um equilíbrio entre o interesse comercial e o interesse público, este último expresso na ampliação racional do acesso a esses produtos através das políticas de saúde. Pelo lado da razão comercial, a garantia de adequados estímulos à inovação mediante a concessão de um monopólio temporário num mercado nacional com vistas a estimular o desenvolvimento de novos e melhores produtos. Pelo lado da razão pública, a garantia de que o direito de acesso a esses produtos por quem deles necessita não seja atropelado pelo exercício imoderado desse monopólio. Direito esse que, no Brasil, está inscrito no capítulo da saúde da Constituição Federal e que se expressa nos conceitos de universalidade e integralidade.
A crise por que passa a Big Pharma não é nova. Desenvolve-se desde a década de 1990 e decorre de um número insuficiente de moléculas realmente inovadoras lançadas no mercado a cada ano em contraste com o fim da proteção patentária de produtos muito lucrativos. Além dessa, há outras razões, tais como modelos de negócio e gestão inadequados, endurecimento das regras regulatórias, aumento de custos dos testes clínicos, etc. As respostas à crise também têm sido variadas, destacando-se fusões e aquisições entre companhias, mudança nos modelos de negócios, valorização de seus próprios genéricos, até o exercício de práticas comerciais ilegais (sancionadas pela justiça nos EUA, UE e China). As tentativas de radicalização nas regras de PI também fazem parte do repertório de enfrentamento da crise.
Quanto a esse último ponto, as iniciativas de endurecimento começaram com a harmonização global das regras de PI expressas nos acordos TRIPS em 1994. Até então, muitos países, inclusive o Brasil, não reconheciam patentes em medicamentos. No âmbito da Organização Mundial da Saúde, a atuação dos países desenvolvidos (onde estão as matrizes das empresas da Big Pharma) foi dirigida, desde 2003 e até hoje, ao esvaziamento das iniciativas dos países em desenvolvimento para debater naquele plenário as relações entre PI e saúde pública. Pouco mais recentes são as iniciativas de vincular o conceito de falsificação de medicamentos (criado no âmbito da OMS visando defender a saúde das pessoas) ao comércio de medicamentos genéricos. Essa iniciativa tomada pela UE pretendeu criminalizar o comércio internacional de genéricos, incluindo-os na categoria de medicamentos falsificados. No que toca o Brasil, culminou com a apreensão na Holanda de uma carga do fármaco Losartana potássica (um anti-hipertensivo) comprada à Índia por uma empresa brasileira, no momento de seu transbordo no caminho para o Brasil, portanto sem que o fármaco tivesse um país da Europa como destino. Isso ocorreu em 2010 e é importante frisar que essa molécula não era protegida por patentes nem na Índia nem no Brasil.
Foi também a partir da década de 1990 que cresceu uma nova onda de acordos bilaterais de livre comércio entre os EUA e países em desenvolvimento nos quais o item PI adquiriu destaque. Na América Latina, são exemplos os firmados com o Chile, a Colômbia, o Peru e com países da América Central e Caribe. A marca desses acordos é a imposição de medidas de PI que vão além das previstas nos acordos TRIPS e que por esse motivo são denominadas TRIPS-PLUS. Os acordos não são idênticos entre si, mas há vários pontos comuns. Dentre eles, a extensão do período de patentes decorrente de retardos na concessão da patente (correspondente ao parágrafo único do art. 40 de nossa lei), autorização do patenteamento de plantas e seres vivos, restrições ao uso do licenciamento compulsório, proteção de dados de produtos patenteados, limitação do mecanismo de importação paralela e facilitação de patentes de segundo uso.
Lateralmente, vale dizer que a política de acordos comerciais bilaterais ou regionais tem contribuído também para o enfraquecimento do sistema multilateral (no caso, a OMC) abrigado desde o final da Segunda Guerra Mundial no âmbito da ONU. Nesse aspecto, vale destacar o papel do Brasil que, durante o primeiro governo do presidente Lula, abortou a criação de uma zona regional de livre comércio, a ALCA. Em seu lugar, foi criada a UNASUL, que não inclui a radicalização da PI em suas propostas.
A observação da cronologia da crise desde a década de1990 revela que houve um perfeito paralelismo entre as medidas tomadas para radicalizar o regime de patentes – acordos TRIPS, atuação junto a OMS, apreensão de medicamentos genéricos em aeroportos, medidas TRIPS-plus, etc. – e a não resolução da mesma. A despeito de todo esse ferramental, a receita de boa parte das companhias não cresce, seus investimentos em P&D diminuem e o registro de novas entidades moleculares (new molecular entities – NME) no FDA não apresenta uma tendência firme de aumento, conforme indicado pela literatura². Não é fácil compreender a estratégia da Big Pharma e dos países que abrigam suas matrizes em querer resolver com ainda mais patentes os problemas que a radicalização das patentes não conseguiu resolver nas últimas duas décadas.
Mas no que nos toca, o importante é encontrar os caminhos que levem a nossa política de PI para mais perto da razão pública, sempre respeitando os preceitos atinentes à razão comercial contidos nos acordos internacionais que estão por nós subscritos. Para tanto, é incontornável que sejam realizadas mudanças na lei de patentes brasileira, cuja aprovação e sanção deram-se numa conjuntura política (anos 90) muito diferente da atual. A nossa lei de patentes é eivada de concessões hoje inadmissíveis como, por exemplo, as modalidades de patentes pipeline e as extensões dos prazos das patentes decorrentes do disposto no parágrafo único do seu artigo 40.
Entretanto, para que as mudanças necessárias sejam alcançadas, pela via congressual ou jurídica, é preciso que os defensores da razão pública – os trabalhadores, gestores e usuários do SUS, as organizações de defesa dos consumidores, as entidades nacionais e internacionais que defendem a ampliação do acesso racional aos produtos de saúde e as associações de saúde pública e coletiva envolvam-se cada vez mais nessa empreitada.
* Reinaldo Guimarães é diretor da ABIFINA
1 – Fink, C.; Reichenmiller, P. – Tightening Trips: Intellectual Property Provisions of U.S. Free Trade Agreements. In, Richard Newfarmer (Ed.) – Trade, Doha, and Development. A Window into the Issues. THE WORLD BANK Trade Department Poverty Reduction and Economic Management Vice-Presidency; Washington D.C., 2006. Pp.289-303. http://siteresources.worldbank.org/INTRANETTRADE/Resources/Pubs/Trade_Doha_Devt_A_Window into_the_Issues.pdf#page=292
2 – Munos, B. – Lessons from 60 years of pharmaceutical innovation. Nature Reviews: Drug Discovery. Vol. 8, December 2009, pp. 959-968. http://www.ipeg.eu/wp-content/uploads/Lessons-from-60-years-of-pharmaceutical-innovation_Nature_Munos.pdf