Atento ao debate a respeito das mudanças na política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas sistematizada pela Nota Técnica Nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS, o jornal mineiro O Tempo trouxe a discussão sobre a eletroconvulsoterapia (ECT) em sua sessão Debate, publicada no último sábado, 23 de fevereiro.
Pesquisador do Laboratório de Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (LAPS/ENSP/Fiocruz), presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e coordenador do Grupo Temático Saúde Mental da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Paulo Amarante escreveu o posicionamento contrário à terapia, destacando seu histórico uso de intimidação, medo e tortura, seu método invasivo e marcado por efeitos colaterais e o esvaziamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em detrimento da indústria médica de equipamentos, a grande interessada no retorno do vulgarmente conhecido eletrochoque.
+ Paulo Amarante fala sobre retrocessos na política de saúde mental
Pela defesa do método, escreveu o médico Guilherme Rolim Figueiredo, coordenador do serviço de ECT fa Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Clique e veja a publicação do jornal e leia abaixo o texto de Paulo Amarante.
Debate
A aplicação de eletrochoque é cabível no contexto atual do tratamento da saúde mental?
Não – Medida Extrema, por Paulo Amarante
Trazida a baila em nota “técnica” do Ministério da Saúde, a eletroconvulsoterapia, mais conhecida pela sigla ECT ou, vulgarmente, pelo termo eletrochoque, voltou ao debate. Desenvolvida na década de 1940, a técnica consiste na aplicação de corrente elétrica na têmporas do paciente por meio de dois eletrodos, induzindo uma convulsão tônico-clônica generalizada no cérebro que, supostamente, provocaria efeitos positivos no comportamento. Saudada e vangloriada por muitos, o método passou a ser adotado, a grosso modo, para pacientes em estados catatônicos, com depressão profunda, risco de suicídio e psicoses refratárias aos demais tratamentos.
Contudo, a ECT foi utilizada amplamente não apenas como recurso terapêutico, mas também como método corretivo e disciplinar. Era comum ser aplicada em salas abertas onde os demais pacientes pudessem assistir à sessão como forma de ameaça e medo. A convulsão desencadeava efeitos semelhantes a uma sessão de tortura, não raro com consequências graves, como fraturas e paradas respiratórias e/ou cardíacas.
A ECT não é o único método baseado na convulsão inventado ao longo dos tempos. Houve a malarioterapia (inoculação da forma benigna da malária para provocar febre alta e convulsões) e a cardiazol-terapia. Outros métodos biológicos foram a insulinoterapia e a lobotomia, que consiste em danificar o tecido cerebral. Em comum, o fato de serem métodos altamente invasivos, sem o mecanismo de ação devidamente identificado ou consensuado pela comunidade científica. O que parece certo é que a convulsão causa um grande sofrimento cerebral que, após sua ocorrência, leva a pessoa a um estado de torpor e perda de estímulos, provocando uma suposta melhora do quadro mental e suspensão dos estados de agitação psicomotora e das ideias suicidas. Mas daí para ser o tratamento das psicoses ou do transtorno mental há uma grande distância.
Mesmo os defensores da ECT observam que sua aplicação deve ser uma medida extrema, discutida e avaliada, realizada em centro cirúrgico com assistência respiratória e cardiológica e com o consentimento informado do paciente e da família.
Num país com um sistema de saúde com tantos problemas, como falta de médicos e de profissionais de saúde, rede hospitalar deficitária e tantas outras questões, por que financiar a compra de um equipamento extremamente caro e com um uso muito restrito, mesmo de acordo com a argumentação de seus mais ardorosos defensores? Se há recursos, por que não qualificar a rede de serviços e dispositivos comprovadamente eficazes, mas em franco esvaziamento?