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Pênalti contra os idosos – artigo de Lígia Bahia

Lígia Bahia*

Jesse Zhang/NPR

“Recaiu sobre o Tribunal Superior de Justiça (STJ) a responsabilidade de julgar reajustes de preços de planos de saúde para idosos. A legislação fixa a variação máxima das mensalidades entre as faixas etárias. O preço dos planos para pessoas com 99 anos pode ser seis vezes maior do que os para bebês. Esse critério respeita a lógica da solidariedade intergeracional dos seguros de saúde e o Estatuto do Idoso.

No papel e para os contratos individuais, a regra vale. O problema são os planos coletivos ou a troca de planos ao longo da vida. Dependendo da situação, o valor da mensalidade pode mais que dobrar quando se completa 60 anos. Ao invés de presente de aniversário, o sexagenário recebe um castigo que fica mais penoso após cada aumento anual. Reajustes muito elevados e cumulativos foram, frequentemente, considerados por tribunais estaduais como abusivos e geradores de discriminação aos mais velhos.

Em contrapartida, as operadoras procuram evitar apelações ao Judiciário, sob a alegação de que os idosos prejudicam o equilíbrio econômico de seus negócios; recorrem à ideia de que velhice é sinônimo de doença grave. Os idosos teriam declínio implacável de funções físicas e mentais e aumento da prevalência de doenças.

Aumentos contínuos na expectativa de vida, combinados com baixas taxas de natalidade, tenderiam a estabelecer um fluxo prioritário de recursos coletivos para velhos doentes e nada sobraria para os jovens. Como a proporção de idosos cresce em todas as populações modernas, esse cenário sombrio não pode ser descartado. Mas o apocalipse demográfico na saúde não tem comprovação empírica. Desde o início do século, estudos evidenciaram que os efeitos do envelhecimento sobre custos e projeções de gastos com saúde são relativamente pequenos. O nó das dúvidas sobre a causa da elevação dos custos na saúde foi desatado pela separação dos gastos com a velhice e com o atendimento que precede à morte.

Despesas com saúde aumentam em todas as faixas etárias e são especialmente elevadas em processos de assistência a pacientes cujas mortes poderiam ter um curso natural, mas passam por sofridos combates em serviços de terapias intensivas e procedimentos muito caros. Constatou-se, portanto, que o incremento geral dos recursos alocados para a saúde é principalmente consequência do maior uso de procedimentos e elevação dos preços pagos a hospitais, profissionais de saúde e medicamentos. As informações da Agência Nacional de Saúde (ANS), ainda que misturem atendimento a idosos com pacientes terminais, fornecem pistas para questionar reajustes desarrazoados. Em 2018, o aumento médio da mensalidade para pessoas acima de 59 anos foi o dobro do que o indicado para crianças e jovens. Porém, as despesas com os mais velhos não representaram metade dos gastos totais com saúde suplementar.

A “idosofobia” está configurando um mercado que expulsa aqueles que pagaram plano desde sempre e barra a entrada de quem não consegue manter o pagamento de planos com reajustes aleatórios. As operadoras evitam velhos, embora o aumento da expectativa de vida seja um indicador positivo para o país. Políticas sensíveis a mudanças demográficas requerem boa administração de fundos públicos ou privados. Existe a necessidade objetiva de encontrar fontes de recursos suficientes e estáveis para assegurar cuidados à saúde para uma população que aumenta e envelhece. Cortar subsídios de atividades e produtos que causam agravos, doenças e acentuam desigualdades é uma política coetânea ao envelhecimento; retardar a ocorrência de doenças viabiliza o envelhecimento saudável. Por outro lado, as estratégias de operadoras para “limpar” carteiras, excluir potenciais doentes, são incompatíveis com a pretensão de atuar como instituição de saúde.

Espera-se que o jogo das operadoras de atração de jovens e rejeição aos velhos tenha sido explicitado na audiência pública convocada pelo STJ para debater o reajuste. Grandes empresas do setor querem derrubar restrições normativas relativas a preços e coberturas para ampliar a comercialização de contratos de “apenas” 10% a 25% do salário mínimo, que, com o passar do tempo, ficam mais dispendiosos do que o valor integral da aposentadoria.”

* Lígia Bahia é professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Saúde (CPPGS/Abrasco). Artigo publicado no jornal O Globo em 26/02/2020 –acesse aqui a publicação original.

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