Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) analisou o teor das notícias falsas associadas ao coronavírus, de março a maio de 2020, e concluiu que 15,9% das fake news veiculadas nas redes sociais referem-se à Covid-19 como uma “farsa”. Outra etapa da pesquisa – realizada entre março e abril, no começo da pandemia no país -, demonstrou que 65% das publicações ensinavam remédios caseiros para a prevenção do coronavírus (café, limão, alimentos alcalinos) , e 20% apontavam supostos métodos para a cura (cloroquina?). Basta olhar os dados oficiais do Ministério da Saúde e as declarações dos cientistas para perceber que o coronavírus é real, que a cura ainda não existe e que, embora existam medidas preventivas, elas apenas reduzem os riscos – o distanciamento social permanece necessário. O debate sobre fake news e saúde, no entanto, vai além do compartilhamento de mensagens: perpassa a garantia dos direitos essenciais e democracia.
Está em trâmite no Senado Federal, desde maio, o Projeto de Lei nº 2.630 de 2020 – o PL das Fake News – que será votado na próxima terça-feira (30/6). O plenário, motivado pela aproximação das eleições, poderá aprovar a chamada “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. Mas, segundo pesquisadores e ativistas, o projeto apresenta riscos à privacidade dos usuários e pode aumentar ainda mais o fosso entre os incluídos e os excluídos digitalmente, o que fere o direito ao acesso à informação e comunicação.
Invasão de privacidade e censura
Um dos trechos graves no texto em pauta é a identificação dos usuários: se aprovada, a lei determinará que, nas redes sociais, o cadastro seja “com base em sistema que exija um número de telefone celular com informações válidas sobre seus titulares”. Para Bia Barbosa, da Coalizão Direitos na Rede, que reúne 39 organizações da sociedade civil em defesa da Internet livre e aberta no país, o PL não deveria ser votado sem amplo diálogo com a sociedade: “A identificação dos usuários pode colocar em risco inclusive defensores dos direitos humanos, jornalistas e ativistas que precisam do anonimato. O último relatório também trouxe outras questões de última hora, que ainda não foram objeto de debate pelo conjunto de senadores, sociedade civil e setores interessados e atingidos por essa discussão”, afirmou.
Ainda no contexto da privacidade e liberdade nas redes, um dos pontos considerado também preocupante é o que estabelece que os aplicativos armazenem, por três meses, mensagens compartilhadas. A proposta considera encaminhamento em massa “o envio de uma mesma mensagem por mais de cinco usuários, em intervalo de até 15 dias”. Isso significa que jornalistas, pesquisadores, ativistas, artistas ou qualquer outros indivíduos ou organizações que utilizem a internet como principal meio de comunicação – através de grupos ou listas de transmissão – terão suas redes sociais rastreadas se suas mensagens forem compartilhadas por mais de cinco pessoas.
“Como as mensagens pelo WhatsApp, por exemplo, estão criptografadas, esse rastreamento é feito por metadados e com uma espécie de engenharia reversa. Isso retira as mensagens (vídeo, imagem, texto) do contexto e vai oferecer uma visão deturpada das conversas. Há um potencial grande de produção de injustiças e criminalizações equivocadas”, afirmou Rafael Evangelista, pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e membro da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade.
Comunicação é saúde
Além de transferir às empresas de telefonia a função de verificar a identidade das pessoas, o projeto deve intensificar a exclusão digital. Não são todos os brasileiros que possuem uma linha de celular ativa, e a medida pode impedir que as pessoas se comuniquem através de outros dispositivos. Para Rodrigo Murtinho, integrante do Grupo Temático Comunicação e Saúde da Abrasco e diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict) da Fiocruz, a lei pode intensificar a desigualdade entre os que têm acesso à internet no Brasil e os que não têm, o que é, também, uma questão de saúde pública: “Durante a pandemia da Covid-19, percebemos o quão essencial é a comunicação na promoção da saúde e garantia do cuidado”.
Segundo o pesquisador, em um mundo globalizado, em que a comunicação, informação e tecnologia estão no centro dos processos sociais, econômicos e políticos, é cada vez mais importante que os debates para a democratização do Estado perpassem pela garantia do direito à comunicação: “É estratégico para a defesa de outros direitos essenciais. Sem que as pessoas tenham acesso à informação, não é possível avançar num projeto de sociedade que efetive a saúde pública, gratuita e universal. Precisamos que as instituições da saúde coletiva e ciência também tenham no foco central de suas atuações a discussão sobre as politicas que envolvem a comunicação e – no caso do PL das Fake News – internet como questões fundamentais para a cidadania moderna”.
PL pode intensificar exclusão digital
Em meio aos mais de 50 mil mortos no Brasil em decorrência do coronavírus, Murtinho acredita que só é possível promover uma quarentena se as pessoas forem incluídas no fluxo digital de notícias, documentos, pronunciamentos oficiais, educação, entretenimento e serviços públicos – desde telessaúde até a renda básica emergencial, por exemplo: “A conexão com familiares e amigos também é imprescindível neste momento de isolamento, em que a saúde mental pode ser bastante afetada. Se essa lei for aprovada, vai fragilizar ainda mais pessoas já em condições vulnerabilizadas”. Além disso, a exclusão digital também afeta a participação social e política, sobretudo em tempos de isolamento social.
Viviane da Rosa, jornalista e diretora executiva da Eté Checagem – agência de checagens de notícias no âmbito dos direitos humanos – acrescentou que o PL em trâmite pode se somar a outras práticas restritivas já em vigor, que impedem que parte da população utilize a internet para adquirir conhecimento. É o caso da “política de Zero Rating”, quando operadoras concedem acesso ilimitado apenas a aplicativos específicos – Facebook e Whatsapp são os mais comuns – não incluindo a navegação em sites noticiosos, agências de checagem e outros bancos de informações. “Além deste controle sobre o que é ou não permitido acessar ‘gratuitamente’ pelo celular, a cobertura de internet no país é cara e mal distribuída. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) de 2018, publicada no final de abril desse ano, mostra que uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet, ou seja, são 46 milhões de brasileiros excluídos digitalmente”, afirmou Viviane.
Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de Dados
O Brasil tem duas experiências exitosas sobre direitos na internet, referências para o resto do mundo : o Marco Civil da Internet – projeto de lei aprovado em 2014 que consolida direitos, deveres e princípios para a utilização e o desenvolvimento da Internet no Brasil – e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), aprovada em 2018, que regulamenta o tratamento que é dado às informações dos indivíduos coletadas por empresas – sobretudo na internet. Rafael Evangelista apontou que ambos processos têm histórias diferentes de articulação, mas são fruto de interlocução com a sociedade civil, com consulta pública e diálogo atento – e deveriam servir de exemplo para o atual processo no Legislativo.
O pesquisador sinalizou que uma lei desta natureza deve ser elaborada a médio prazo, com olhares mais abrangentes sobre desinformação e baseada nos estudos mais consistentes sobre a dinâmica brasileira: “Não são só disparos em massa por Whatsapp, que parece ser o que os congressistas têm em mente. É um ecossistema que junta espalhadores [de notícias] com objetivos políticos, políticos locais aspirantes, produtores de sensacionalismo e desinformação de baixo nível, de olho em fazer dinheiro monetizando escândalo”. Segundo Evangelista, este esquema surge em um contexto problemático, de concentração midiática – poucas famílias detêm a maior parte da mídia nacional.
(Mais) poder para as empresas privadas
Outra questão apontada pelos especialistas, é que o setor privado terá ainda mais poder para controlar o debate online. “É irônico que um PL para combater fake news seja produzido a partir de tanta informação técnica ruim. Acredito que boa parte dos congressistas, em especial aqueles que não estão tentando resolver tudo na marretada, esteja, por exemplo, tentando combater o poder excessivo das plataformas de intermediação de mensagens. Mas estão produzindo uma lei que vai dar mais poder e informação a elas”, explicou Rafael Evangelista.
O projeto também responsabiliza as plataformas pela identificação de fraudes ou informações cadastradas com registros de celular inválidos – obrigando um trâmite entre as empresas de telecomunicação e as redes sociais, com relatórios sobre celulares cadastrados e em funcionamento no país, que, segundo uma nota da Coalizão Direitos nas Redes, “atribui poder de polícia a empresas privadas”. Segundo Viviane da Rosa, outro alerta é a obrigatoriedade das empresas praticarem a autocensura: “Isso fará com que as empresas sejam curadoras de conteúdo. Já temos diversos relatos da forma robotizada como conteúdos são bloqueados – como imagens de indígenas e mães amamentando, por exemplo, com a justificativa de conteúdo impróprio. Será um cerceamento de informações sem fim”.
“O diabo mora nos detalhes”
O relatório de Ângelo Coronel sinaliza a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, como “órgão responsável pelo acompanhamento das medidas de que trata a Lei”. Este Conselho será formado por representantes do Legislativo e Judiciário, Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), sociedade civil, academia e setor privado – como provedores de internet e telecomunicações – mas os membros serão nomeados por ato do Presidente do Congresso Nacional. Para Rafael Evangelista, recém-eleito representante da comunidade científica e tecnológica no CGI, a constituição deste órgão não seria necessariamente ruim, mas “o diabo mora nos detalhes”: é preciso garantir que o multisetorialismo não seja uma farsa, e é preciso “ter regras de escuta dos setores representados”, afirmou.
O Comitê Gestor da Internet no Brasil existe desde 1995 e reúne governo e setores da sociedade em pesquisas, formulação e avaliação de políticas públicas e diretrizes para o uso e desenvolvimento da Internet no Brasil. Segundo Evangelista, a fórmula do novo órgão proposto parece “emprestada” do CGI, mas é possível que surja um conselho submisso ao Congresso Nacional e que colabore com a perseguição política de entidades e indivíduos. “O PL também é uma oportunidade perdida de ouvir um Comitê que já existe, tem corpo técnico altamente qualificado, e poderia ter sido interlocutor de uma maneira mais institucional. Houve conversas de senadores com alguns conselheiros, mas nada institucionalizado, tudo muito na correria e remendando um texto que já nasceu ruim [o projeto original, proposto pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) ]”, pontuou o professor.
Eleições não são justificativa para urgência na votação
A justificativa de alguns senadores para agilizar o processo de votação é a aproximação das eleições municipais em 2020, já que acreditam que o projeto de lei pode ser usado para coibir a disseminação em massa de desinformação durante o processo eleitoral. Segundo Bia Barbosa, essa não deve ser a justificativa para votar um texto que ainda apresenta pontos problemáticos e que coloca os cidadãos em risco: “A gente espera que algumas medidas possam de fato contribuir para desmontar a fábrica de desinformação que está funcionando no Brasil. Mas é bom a gente lembrar que a Polícia Federal, o Ministério Público e o judiciário já têm mecanismos para investigarem esses grupos articulados, que usam muitas vezes dinheiro público para produzir e espalhar notícias falsas massivamente”.
Barbosa apontou ainda que a lei eleitoral já aborda a questão das fake news – e que os crimes de injúria, calúnia, difamação, racismo e ameaças já estão tipificados no código penal, e podem ser usados em casos de crimes digitais. Viviane da Rosa corroborou com a ideia de que a legislação já possui dispositivos para o combate à desinformação, que deve ser encarado como força-tarefa entre os órgãos públicos e a sociedade. A jornalista reivindica que se o Marco Civil da Internet fosse respeitado pelo Judiciário, além da Polícia Federal e demais instituições públicas, não seria necessário estabelecer mais legislações sobre combate às notícias falsas: “Precisamos centrar as atenções em quem produz a desinformação, e já é sabido que são organizações estruturadas e preparadas para tal. Não podemos cair no erro de seguir a linha mais fácil de culpabilização do usuário e a criminalização como única solução de combater a indústria das chamadas fake news“.