Ao anunciar a (requentada) proposta de criação de planos de saúde populares, Ricardo Barros, deputado atualmente à frente do Ministério da Saúde, quer seguir os mesmos caminhos já trilhados por tantos outros políticos. Exemplos não faltam, como mostra Leandro Farias, farmacêutico sanitarista do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), e coordenador do Movimento Chega de Descaso, em artigo Lobby Suprapartidário, publicado originalmente na revista Le Monde Diplomatique Brasil.
Barros inspira-se no ex-governador do estado do Rio de Janeiro Sergio Cabral Filho, que teve sua campanha financiada por grandes planos de saúde e promoveu com a destruição do Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ); e no governador do estado de São Paulo Geraldo Alckmin, também beneficiado por polpudas ajudas das operadoras, que oficializou a dupla porta de acesso aos serviços de saúde na unidade da Federação a qual (des)governa. Barros segue os passos de Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara de Deputados agora acuado em denúncias e escândalos e que foi um dos mais beneficiados por doações da saúde suplementar na campanha de 2015. No auge de sua força política, Cunha tentou emplacar a PEC 451/2014, que pretende instituir planos de saúde como uma obrigatoriedade às empresas, acabando na prática com a universalidade do SUS. Seja qual for a sigla – PP, PMDB, PSDB – não importa: os planos de saúde cobram suas doações e vão continuar a fustigar o SUS por meio dos políticos que representam seus interesses. Acesse o artigo na publicação original e leia abaixo na íntegra.
“Nos últimos meses, temos observado uma total falta de comprometimento com a área da saúde por parte do governo federal, tratando-a como moeda de troca, uma vez que o setor detém a pasta de maior orçamento da esplanada. O engenheiro civil e deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) é mais um exemplo de gestor sem a menor capacidade técnica, fruto do conchavo político para ocupar o Ministério da Saúde. Assim como o seu antecessor, o deputado federal Marcelo Castro (PMDB-PI), revela sinais de total desconhecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Mesmo o Brasil apresentando um sistema universal de saúde, responsável por atender mais de 150 milhões de cidadãos, não impediu que o atual ministro da Saúde declarasse que o aumento de detentores de planos de saúde permitiria que o baixo orçamento da saúde pública fosse melhor aplicado, uma vez que diminuiria o número de usuários no setor público. Porém, o ministro não deve ter sido informado de que procedimentos onerosos como transplantes, vacinas, políticas de acesso a medicamentos como HIV/AIDS, vigilância sanitária, entre outros, são custeados pelo SUS. O fato de deter plano privado não é garantia de assistência à saúde. O número de queixas e processos movidos contra as operadoras de plano de saúde vem crescendo vertiginosamente, e uma prova disso é a dívida das operadoras com os cofres públicos. Atualmente os planos de saúde devem mais de 2 bilhões ao Estado por conta de multas e ressarcimento ao SUS, em razão do não cumprimento da legislação frente aos seus consumidores.
Ao se deparar com um mau funcionamento de certas unidades do SUS, por causa da má gestão, subfinanciamento e corrupção, setores da sociedade optam por acessar a saúde privada, via planos de saúde, porém constatam que a realidade desse segmento é totalmente diferente da demonstrada durante o processo de aquisição. Diversas irregularidades são praticadas pelo setor como: o descumprimento do prazo máximo para marcar consultas por parte das operadoras; a precariedade em relação à disponibilidade de profissionais na rede credenciada; presença de cláusulas abusivas nos contratos, que excluem ou limitam a cobertura de uma série de procedimento, além dos aumentos abusivos e acima da inflação; não autorização e glosa de procedimentos médicos e laboratoriais; descredenciamento unilateral de médicos, clínicas e hospitais; processos de auditoria que visam inibir médicos e pacientes; cruzamento de propriedade, em que algumas das empresas e instituições privadas de planos de saúde são detentores de toda cadeia econômica que os cercam, incluindo hospitais, redes de laboratórios de análises clínicas e de imagem e rede de médicos credenciados. Segundo o Procon-SP, os planos de saúde permaneceram, na última década, no topo do ranking de reclamações dos consumidores. Entre as reclamações que têm chegado à justiça, 88% obtêm ganho de causa a favor do consumidor, comprovando a descumprimento das operadoras com suas obrigações contratuais.
O volume de recursos doados oficialmente pelas operadoras de planos de saúde durante os processos eleitorais tem aumentado exponencialmente. Nas eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014 foram repassados os respectivos valores: R$ 839 mil, R$ 7 milhões, R$ 11 milhões e R$ 54 milhões. Os partidos do atual e do ex-ministro da saúde, PP e PMDB, nas eleições de 2014 receberam doações de campanha de empresas de planos de saúde, nos valores de R$ 1.133.500,00 e R$ 13.732.000,00, e ambos os parlamentares, Barros e Castro, antes de assumirem o cargo no Ministério e demonstrarem preocupação com o orçamento e gestão do SUS, enquanto deputados votaram à favor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 358/2013 que gerou a Emenda Constitucional (EC) 86 e assim alterou a forma do cálculo que define a quantidade de recursos a serem destinados para o orçamento da saúde pública. Tal medida instituiu o chamado Orçamento Impositivo, diminuindo o financiamento da saúde, por parte da União, gerando uma perda estimada em R$ 10 bilhões para 2016. Além do fato de que parte dos recursos serão repassados para as emendas parlamentares individuais, diminuindo ainda mais o orçamento de um sistema subfinanciando. Não obstante, Barros e Castro se demonstraram favoráveis ao Projeto de Lei (PL) 5.735/2013 que trata da minirreforma eleitoral, e que trazia dispositivos que visavam regulamentar o financiamento empresarial de campanha. Porém, os dispositivos foram vetados pela presidenta Dilma Rousseff após o Supremo Tribunal Federal ter declarado inconstitucional essa modalidade de doação, resultado do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.4.650 movida pela OAB.
Na última eleição, Barros teve como seu maior doador individual de campanha para deputado federal o senhor Elon Gomes de Almeida, diretor-presidente e fundador da administradora de planos de saúde Aliança, que disponibilizou a quantia de R$ 100 mil. Elon também doou R$ 600 mil para a campanha de Vital do Rêgo (PMDB), candidato derrotado ao governo da Paraíba, R$ 200 mil para o deputado federal Carlos Sampaio (PSDB-SP), que foi eleito, e R$ 100 mil para Eliana Calmon (PSB), que se candidatou ao Senado na Bahia, mas não conseguiu se eleger. Recentemente, Elon foi alvo da Operação Acrônimo da Polícia Federal. Segundo a investigação, Elon teria por meio de sua empresa, a Support Consultoria, repassado R$ 750 mil ao empresário Benedito de Oliveira, o Bené, empresário ligado ao governador do estado de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), às vésperas das eleições de 2014. Coincidência ou não, a empresa Aliança, que conta com cerca de 140 mil clientes, possui forte presença no estado. A Qualicorp, líder do mercado no segmento de planos de saúde e detentora de 75% da empresa Aliança, doou na última eleição R$ 6 milhões; destes, R$ 2 milhões foram destinados ao PSDB. Qual seria a contrapartida de tamanhas doações de campanha?
Nas eleições de 2010, o então governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral Filho (PMDB) recebeu R$ 100 mil da empresa de planos de saúde Amil. Após eleito, de forma unilateral, ele autorizou a desativação e posterior demolição do Hospital Central do Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ), que, segundo informações, possuía em seu cadastro cerca de 80 mil pacientes, mais de 50 leitos ativos, sendo dezesseis de CTI, realizava a cada mês cerca de 9 mil atendimentos, 35 mil exames laboratoriais e 1.500 diagnósticos por imagem. Posteriormente, Cabral apresentou como suposta solução a celebração de uma parceria com a administradora Aliança para o fornecimento de planos de saúde e odontológicos com valores promocionais aos servidores do estado do Rio. O governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) recebeu em 2014 cerca de R$ 1,6 milhão da Amil, em 2014. Alckmin é redator da Lei Complementar n° 1.131/2010, conhecida como “Lei da Dupla Porta”, que permite aos hospitais da rede estadual, administrados por Organizações Sociais, destinar até 25% dos leitos do SUS para particulares e planos e seguros de saúde.
Sendo verdadeiro ou não, cabe ressaltar aqui um trecho do depoimento do senador Delcídio do Amaral para a Operação Lava Jato, em que o mesmo fala da existência de um esquema de propina na saúde, por meio de planos de saúde e laboratórios, com a nomeação de diretores nas agências reguladoras: “Especial atenção deve ser dada à ANS e Ansiva, cujas diretorias foram indicadas pelos senadores do PMDB. Jogaram pesado com o governo para emplacar os principais dirigentes dessas agências. Com a decadência dos empreiteiros, as empresas de plano de saúde e laboratórios tornaram-se os principais alvos de propina para os políticos e executivos do governo”.
Nos últimos três anos, os planos de saúde aumentaram 36,2% de acordo com os limites máximos de reajustes autorizados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para os planos individuais e familiares. Para os contratos que fazem aniversário no período entre maio de 2015 e abril de 2016, o reajuste pode ser de até 13,55%. No período anterior, o aumento autorizado foi de 9,65%. No caso dos planos coletivos por adesão, contratados por intermédio de uma associação de classe ou sindicato, não existe limite para o aumento. As operadoras definem o reajuste de acordo com a sinistralidade (relação entre a receita com as mensalidades e os custos com a utilização dos planos). Em alguns casos, o aumento do plano por adesão chega a 40%. A inflação, pelo IPCA, fechou o período em 10,67%. Ou seja, os planos tiveram reajuste quase três vezes maior que a inflação. Cabe aqui uma pergunta: se o SUS funcionasse da maneira como fora idealizado, alguém pagaria por um plano de saúde?
Cerca de 95% do faturamento da empresa Aliança provém de planos coletivos por adesão, que foram regulamentados pela ANS, órgão do governo federal responsável por regular e fiscalizar a atuação das operadoras de planos de saúde. A grande questão é que tal modalidade apresenta legislação “frouxa”, contribuindo para que irregularidades como aumentos abusivos e recisão contratual sejam praticadas pelas operadoras para com seus clientes. As Resoluções Normativas n.195 e 196, que tratam da questão dos planos coletivos, foram editadas no ano em que o empresário Maurício Ceschin, advindo da Qualicorp, assumiu cargo na diretoria da ANS; após cumprir mandato no órgão, ele retornou para a Qualicorp no cargo de presidente. Depois da criação das resoluções, ganhos da Qualicorp cresceram vertiginosamente. Segundo relatórios, a empresa atingiu receita líquida de R$ 454 milhões, obtendo lucro de R$ 198,3 milhões só no primeiro trimestre de 2016, apresentando um avanço de 343,6% em relação ao mesmo período de 2015, em pleno cenário de recessão e crise econômica no país. Mais de 90% do lucro da empresa advêm dos planos coletivos por adesão.
Diante da crise econômica que acomete o país é inaceitável colocar a culpa nos gastos realizados com os direitos sociais. Estamos diante de um crime institucionalizado que é o serviço da dívida pública, que consome em torno de 50% do imposto que é arrecadado no país para o pagamento de juros. Enquanto isso, gastos com políticas sociais como o SUS não oneram nem 5% do PIB. Cabe ressaltar que países desenvolvidos com sistema universal de saúde aplicam em torno de 10% do PIB. Outra polêmica é a questão dos benefícios concedidos ao setor privado, como a renúncia fiscal. Levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em conjunto com a Receita Federal sobre gasto tributário efetivo demonstra que em 2013 o Estado deixou de arrecadar mais de R$ 25,4 bilhões com renúncia fiscal oriunda de gastos com saúde. Se a nossa Constituição traz a saúde como um direito de todos e dever do Estado, devendo este fornecer condições para o seu total acesso, por que existem planos de saúde?
Ao analisarmos o retrospecto podemos observar que o SUS vem sofrendo duros golpes desde a sua criação. José Sarney ao sancionar a Constituição Federal de 1988 alegou que o Brasil seria ingovernável, por conta da Carta Magna conter apenas de direitos, e não havendo deveres, tornando impossível a sustentação dos direitos determinados por ela. O SUS foi regulamentado pela lei 8.080/1990 durante o governo de Fernando Collor, porém ouve a necessidade de criação, por meio de mobilização popular, da lei 8.142/1990, em razão do presidente Collor ter vetado os artigos que tratavam das questões cruciais ao sistema, como o financiamento e a participação social em sua gestão. No governo de Fernando Henrique Cardoso, através da lei 9.656/1998, foi legitimado o mercado dos planos de saúde e posteriormente criou-se uma agência para regular e fiscalizar o setor, por meio da lei 9.961/2000. Porém desde que foi criada a diretoria do órgão é composta por representantes dos empresários dos planos de saúde, uma vez que a nomeação ocorre por indicação política. O governo Temer lançou como proposta de governo o documento chamado: uma ponte para o futuro. Uma das propostas é o fim das vinculações de receitas da saúde e da educação definidas na Constituição, ou seja, eliminar o compromisso do governo com um patamar mínimo de recursos para as duas áreas. E assim, o governante poderá realizar cortes ou realocar, retirando sua responsabilidade com a aplicação de recursos para os setores.
Vale lembrar que, no apagar das luzes, próximo ao recesso de final de ano, em 17 de dezembro de 2014, foi votada no Congresso a permissão de entrada de capital estrangeiro na assistência à saúde. Essa medida é inconstitucional de acordo com o artigo 199 da Carta Magna. O autor do “jabuti” incluso na Medida Provisória 656/2014 que tratava da taxação de tributos foi o deputado federal Manoel Junior (PMDB-PB). E, ao alterar o artigo 23 da lei orgânica da saúde (8.080/1990), grupos internacionais de investimento já estão adquirindo unidades hospitalares no país, e se favorecendo com o desmantelamento orquestrado do sistema público de saúde.
Parlamentares como Eduardo Cunha (PMDB-RJ) estão apenas seguindo à risca a cartilha criada por entidades que representam o capital internacional, como o Banco Mundial e a Fundação Rockefeller. Estas estabeleceram a proposta de “cobertura universal da saúde” que vai na contramão do “direito universal à saúde” elaborado pelo movimento da reforma sanitária e definido na Constituição Federal de 1988. E assim observamos PECs, MPs, PLs, votações, entre outros, que nitidamente contribuem para o aumento do lucro do setor privado atrelado ao processo de atrofiamento e sucateamento do público. Como exemplo dessa atuação temos a Agenda Brasil, Uma ponte para o futuro, PEC 143/2015, PEC 451/2014, MP 627/2013, MP 656/2014, Veto à CPI dos Planos de Saúde, Regularização do financiamento empresarial de campanha etc.
Acredito que não haverá discordância ao pensarmos que a saúde pública “vai mal das pernas”, porém estamos diante de um processo de desmantelamento do setor visando à garantia do lucro dos empresários da saúde. Precisamos nos conscientizar de que saúde é um direito, e devemos lutar em defesa do SUS. O setor privado atua como um verdadeiro parasita do setor público. Não tenho dúvidas que estamos diante de uma luta árdua em defesa dos direitos sociais conquistados a duras penas, e um deles é o SUS”.