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Planos de saúde populares, desmonte do SUS e a arapuca Qualicorp

Um acontecimento marcante na história de nosso país, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, completa trinta anos. Realizado em Brasília em março de 1986, o evento reuniu políticos, gestores, profissionais e usuários do sistema de saúde e discutiu melhorias para o setor e mudanças no seu panorama. O relatório final, produzido pelos participantes, serviu de embasamento para que os parlamentares que compuseram o Processo Constituinte Brasileiro de 1987 elaborassem o capítulo da Constituição de 1988 que abrange o direito à saúde, que vai dos artigos 196 ao 200. A partir disso, convido os leitores a fazer a seguinte reflexão: Se a nossa constituição traz a saúde como um direito de todos e dever do Estado, devendo este fornecer condições para o seu total acesso, por que existe o mercado de planos de saúde?

Em 1998, o Estado legitima essa prática através da Lei n. 9.656 e cria uma agência para regular e fiscalizar o setor, por meio da Lei n. 9.961 de 2000.A mesma lei que cria a agência prevê em seus artigos 6 e 7 que a diretoria do órgão será composta por indicação política. Segundo dados do TSE, nas eleições de 2014, os planos de saúde doaram em torno de R$ 52 milhões, contribuindo para 131 candidaturas, desde deputado estadual até presidente da República. Empresa líder no segmento de planos de saúde, com cerca de 5 milhões de usuários em sua carteira de clientes, a Qualicorp doou R$ 6 milhões. Qual seria a contrapartida de tantas doações?

O governo Temer nomeou para comandar a pasta da saúde o engenheiro civil e deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), que vem demonstrando total desconhecimento em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS), e já deixou claro a partir de suas “gafes” para quem irá trabalhar em sua nova função: o mercado de planos de saúde. O atual ministro e seu partido tiveram suas campanhas financiadas por empresários e operadoras de saúde e, no dia 4 de agosto de 2016, por meio da Portaria n. 1.482, instituiu um grupo de trabalho para discutir e elaborar projeto de criação de planos de saúde populares. Tal medida, que visa aumentar o lucro dos empresários de um setor que apresenta um faturamento anual na casa dos R$ 100 bilhões, funcionará como uma verdadeira “armadilha” para seus usuários, uma vez que será oferecida uma cobertura menor por meio da alteração da lei que regula os planos (Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998), com o objetivo de modificar ou anular a exigência de cobertura mínima. Ressaltamos que, mesmo diante dessa cobertura obrigatória, a população tem seus direitos e garantias violados diariamente, o que gera preocupação diante de uma cobertura ainda mais reduzida. Outro ponto importante é que, diante de uma crise orçamentária, o Estado deixará de arrecadar ainda mais por conta da renúncia fiscal com o aumento do número de detentores de planos de saúde. Segundo dados de 2013 sobre gasto tributário efetivo, o país deixou de arrecadar mais de R$ 25 bilhões com renúncia fiscal oriunda de gastos com saúde.

No mercado de planos de saúde existem as modalidades pessoa física e jurídica. A modalidade por pessoa jurídica classificada como coletivo por adesão merece uma atenção especial, pois um de seus traços é a livre negociação entre as partes sem regulação da ANS. Quando uma pessoa física procura os planos coletivos por adesão, atraída pelo preço abaixo do mercado e ampla oferta de redes hospitalares credenciadas, ela necessariamente precisa ser incorporada a uma associação ou entidade de classe, de acordo com as resoluções normativas n. 195 e 196 da ANS. Contudo, por vezes, ela é incorporada pelos corretores da empresa Qualicorp, maior beneficiária de tais resoluções, a uma determinada associação que se enquadre no perfil do cliente sem qualquer vínculo entre eles. Vale ressaltar que no ano em que tais resoluções foram geradas pela ANS, o empresário Maurício Ceschin, advindo da Qualicorp, assumiu cargo na diretoria da agência reguladora, e ao final de seu mandato retornou para a presidência da empresa. Atualmente, o empresário é presidente da empresa Gama Saúde, que assim como a Administradora Aliança, é pertencente ao grupo Qualicorp. Em 2014, o diretor-presidente e fundador da Aliança, Elon Gomes de Almeida Barros, foi o maior doador individual da campanha para deputado federal do ministro Ricardo Barros, disponibilizando a quantia de R$ 100 mil.

É evidente que grande parte das associações cadastradas não possui qualquer compromisso em defender seus associados, mas têm interesse sim no valor de repasse referente ao convênio firmado entre as associações e a administradora de benefícios Qualicorp, os chamados royalties. Segundo dados da própria Qualicorp, no primeiro trimestre de 2016 foi repassado a essas associações o valor de R$ 42,3 milhões por conta dessas “parcerias”. Não à toa, a modalidade coletivo por adesão, mesmo representando apenas 36% da carteira de clientes da Qualicorp, é responsável por mais de 90% do faturamento da empresa, desbancando a modalidade empresarial, que representa os outros 64% da carteira de clientes. A empresa obteve lucro de R$ 198,3 milhões só no primeiro trimestre de 2016, apresentando um avanço de 343,6% em relação ao mesmo período de 2015; quando comparado ao trimestre anterior, o avanço apresentado foi de 222,7%. Note-se que a Qualicorp segue na contramão da crise econômica que aflige o país. Como pode, diante de um cenário de recessão econômica, uma empresa anunciar aumento nos lucros? Isso é justificável em razão da falta de regulamentação por parte da agência que regula esse mercado, a ANS, que permite reajustes abusivos aos clientes que estão enquadrados na modalidade coletivo por adesão, com índices muito acima da inflação. Em alguns casos, o aumento do plano por adesão chega a 40%, lembrando que a inflação, pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), fechou o ano passado em 10,67%. Ou seja, tal modalidade apresentou reajuste quase três vezes maior que a inflação. Visando coibir tais abusos praticados pelo setor privado, tramita no Congresso o Projeto de Lei do Senado (PLS) 152/2016, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que determina que o índice máximo de reajuste dos planos de saúde em todas as modalidades seja o índice nacional de preços ao consumidor (INPC). Contudo, a proposta não tem previsão de votação.

Essa complexa prática funciona como uma verdadeira “arapuca” e vira um “prato cheio” para os corretores que, antes de informar detalhadamente sobre esses procedimentos, estão preocupados acima de tudo em vender o plano de saúde. A falta de transparência e de informação nesse procedimento nebuloso acarreta em uma enorme demanda de clientes lesados, pois os mesmos são levados a erro pelos corretores. A dinâmica do negócio se faz com a venda do plano por parte do corretor ao cliente atraído pelo preço abaixo do mercado e ampla rede credenciada; o corretor, preocupado somente em vender, não informa os deméritos do serviço vendido; o cliente contrata o serviço por vezes sem saber que foi incorporado a uma associação; o cliente não é informado que o contrato pode sofrer até três aumentos progressivos, um por mudança de faixa etária, outro anualmente por variação de custos na data do aniversário do contrato e outro na data da celebração da parceria entre a administradora de benefício (Qualicorp) e a determinada associação. Resultado: o cliente contrata por um preço X abaixo do mercado e no ano seguinte estará pagando um valor acima do mercado, o que configura prática totalmente condenável pelo Código de Defesa do Consumidor em quase integralidade de seus capítulos, pela Política Nacional de Relações de Consumo, nos direitos básicos do consumidor, das práticas comerciais, da proteção contratual etc. A modalidade de plano que mais pratica o aumento abusivo é a de coletivo por adesão. Repetindo: não à toa, tal modalidade corresponde a 90% do faturamento da empresa Qualicorp, líder do segmento. A partir de tais fatos, poderíamos questionar se as ditas associações funcionariam como “laranjas” nesse esquema criminoso orquestrado pela Qualicorp?

As estatísticas do setor são claras, por conta dessa brecha na regulação, atualmente apenas 20% dos planos de saúde oferecidos no mercado são da modalidade pessoa física, pois o reajuste anual é tabelado e anunciado pela ANS, que estipula um teto percentual de maneira a conter os reajustes abusivos das mensalidades dos clientes por parte das operadoras de plano de saúde, pois essa modalidade, diferente dos planos coletivos, é regulamentada pela agência. Vale frisar que nos últimos dez anos, o percentual de reajuste tabelado pela agência apresentou valores acima da inflação. No plano coletivo empresarial contratado por uma empresa, é recorrente que anualmente as operadoras convoquem uma reunião para negociar reajustes. Diferente das associações, no caso dos planos coletivos, a empresa tem interesse em negociar um valor compatível ao mercado, pois, afinal, a empresa paga parte dos planos para seus funcionários.

Outra questão preocupante é o fenômeno da “verticalização”, no qual empresas de plano de saúde constroem e adquirem unidades de atendimento próprias. À primeira vista, pode parecer uma excelente notícia para o cliente, pois significaria aumento do número da rede de atendimento. Porém o que está em jogo aqui é o lucro, pois através de unidades próprias, as empresas cortam custos, por meio de mão de obra mal remunerada e escassa, e na centralização da realização de procedimentos onerosos. Em relação a este último faço um alerta. Um cliente que, atendido em uma unidade de saúde e com diagnóstico, teve atestada a necessidade de realizar um procedimento de urgência oneroso corre o sério risco de aguardar por uma transferência da unidade em que recebeu o diagnóstico para uma unidade própria do plano de saúde, visando contenção de gastos, mesmo que a primeira unidade tenha capacidade técnica para a realização do procedimento. Durante a espera pela transferência, as pessoas correm o risco de agravamento de seus quadros. Tudo em razão da “sanha por lucro” das operadoras.

Apesar de haver legislação e uma agência reguladora para o setor, diversas irregularidades são praticadas pelas operadoras: descumprimento do prazo máximo para marcação de consultas; precarização em relação à disponibilidade de profissionais na rede credenciada; presença de cláusulas abusivas nos contratos, que excluem ou limitam a cobertura de uma série de procedimentos, além de aumentos abusivos e acima da inflação; não autorização e glosa de procedimentos médicos e laboratoriais; descredenciamento unilateral de médicos, clínicas e hospitais; processos de auditoria que visam inibir médicos e pacientes; cruzamento de propriedade, em que algumas das empresas e instituições privadas de planos de saúde são detentores de toda cadeia econômica que os cercam, incluindo hospitais, redes de laboratórios de análises clínicas e de imagem e rede de médicos credenciados. Segundo o Procon, os planos de saúde permaneceram, na última década, no topo do ranking de reclamações dos consumidores. Entre as reclamações que chegam à justiça, 88% dão ganho de causa para o consumidor, comprovando o descumprimento das operadoras com suas obrigações contratuais.

O usuário que se sentir lesado tem a opção de entrar em contato com a ANS e abrir uma Notificação de Intermediação Preliminar (NIP). A empresa é notificada para que se resolva o problema no prazo entre cinco a dez dias. Porém, após a resposta da empresa o usuário deve, em um prazo de dez dias, reforçar a reclamação. Se passado o prazo e o usuário não entrar em contato com a agência, por diversas razões, como esquecimento ou até por desconhecimento da norma, absurdamente a demanda é declarada como resolvida. E assim tal medida põe em dúvida o percentual de demandas solucionadas publicado pela agência, que em dados atualizados ultrapassaram os 95%. Lembrando que em relação a infrações cometidas por parte dos planos de saúde, convertidas em multas, a dívida das operadoras com o Estado passa de R$ 1,5 bilhão. Vale frisar que determinados valores de multas estão defasados, pois a legislação que trata dessa questão é a Resolução Normativa n. 124/2006. Ou seja, dez anos se passaram e determinados valores estão congelados, necessitando de reajustes. A penalidade conhecida como ressarcimento ao SUS, presente no artigo 32 da Lei n. 9.656, é uma prova da falta de comprometimento por parte das operadoras diante de seus usuários, que ao obterem negativa de cobertura são atendidos pelo SUS: tal dívida ultrapassa os R$ 500 milhões.

As reclamações por parte dos usuários dos planos apresentaram um crescimento considerável, e segundo dados da ANS, apenas em 2014, o órgão que regula e fiscaliza o setor recebeu mais de 90 mil reclamações por parte dos usuários. Como resposta às reclamações, a agência inicia processos investigativos e quando confirmada a existência de infração são geradas multas às operadoras. Entretanto, as operadoras infratoras recorrem sucessivamente da punição visando à prescrição da mesma, ou até a anistia da dívida ou a sua renegociação através do chamado Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta (TCAC), possibilitando a redução do valor, como dispostos nas Resoluções Normativas n. 372 e 388, que trazem alguns “benefícios” a essas operadoras como o desconto de até 80% sobre o valor da multa. Com o objetivo de sustar esse mecanismo, o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) apresentou o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 322/2016, que se encontra em tramitação.

A proposta de criação de planos populares apresentada por Barros vai na contramão do modelo elaborado pelo movimento da reforma sanitária, que originou o SUS, pois a ideia de saúde como bem de consumo ao adentrar pela sociedade, se sobrepondo a proposta de saúde como um direito fundamental, promoverá o processo de segmentação de um sistema que fora criado para ser universal, integral, equânime, público e de qualidade. Tal medida, atrelada à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016 que por um prazo de vinte anos visa reduzir consideravelmente o investimento em saúde pública, podendo gerar uma perda em torno de R$ 700 bilhões a partir de um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), e à PEC 143/2015 que permite a desvinculação das receitas da União, estados e municípios e que segundo entidades ligadas ao setor saúde geraria uma perda de recursos para o custeio do SUS estimada em R$ 80 bilhões, funciona como um verdadeiro golpe à saúde pública. Lembrando que gastos com políticas sociais como o SUS não oneram nem 5% do PIB, enquanto em países desenvolvidos com sistema universal de saúde é aplicado em torno de 10% do PIB. Em 2013, o investimento per capita do setor público em saúde foi de US$ 523, enquanto em países que também possuem um sistema público universal, como Reino Unido e França, foram investidos U$$ 2.766 e US$ 3.360, e o investimento per capita médio nas Américas foi de US$ 1.816.

Mesmo diante dessa discrepância, em 2015, o atual ministro e seu antecessor, o deputado federal Marcelo Castro (PMDB-PI), enquanto deputados votaram à favor da PEC 358/2013, que gerou a Emenda Constitucional (EC) 86 e assim alterou a forma do cálculo que define a quantidade de recursos a serem destinados para o orçamento da saúde pública. Tal medida instituiu o chamado Orçamento Impositivo, diminuindo o financiamento da saúde, por parte da União, gerando uma perda estimada em R$ 10 bilhões para 2016. Porém, no dia 22 de setembro de 2016, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a ação de inconstitucionalidade n. 5.595, contra dispositivos da EC 86, sob a alegação de que “tais mudanças são intensamente prejudiciais ao financiamento do SUS, por implicarem redução drástica no orçamento para ações e serviços públicos em saúde, o qual já é historicamente insuficiente”.

* Leandro Farias é farmacêutico Sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz) e coordenador do Movimento Chega de Descaso – publicado originalmente no site Le Monde Diplomatiqueacesse a publicação original.

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