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Plasma humano e hemoderivados não são mercadoria : artigo de Rosana Onocko

Rosana Onocko

Aprovação de PEC no Senado seria imenso retrocesso na civilidade brasileira

Imagine que estamos num romance distópico: nesse mundo no qual vigora a lei do mais forte, pessoas pobres perambulam pelas ruas sem olhos, cheios de cicatrizes e anêmicos. Nesse cenário assustador, os pobres vendem seus órgãos e seu sangue, já que não têm mais como vender sua força de trabalho. Eles morrem aos montes! Não podem pagar pelos tratamentos, pelas transfusões, nem pelos transplantes.

Agora voltemos no tempo. A venda do sangue foi interrompida pela Constituição de 1988, que no seu artigo 199 inciso 4 proíbe a comercialização de plasma sanguíneo humano. Até então muitas pessoas em extrema pobreza vendiam seu sangue para aplacar a miséria.

A PEC 10/2022, que alguns parlamentares pretendem aprovar, significará um retrocesso paleolítico na civilidade brasileira, abrindo a possibilidade de comercialização de tecidos humanos. Plasma humano e hemoderivados não podem ser tratados como mercadoria. A doação de sangue (assim como a de órgãos, que ficou tão evidente nestes dias) é um gesto humano de solidariedade e empatia.

A política pública de manejo de sangue e hemoderivados brasileira é um exemplo mundial. Em 2004, foi criada a Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) para garantir a autossuficiência do país em relação aos hemoderivados. A empresa tem se mostrado competente e precisa ser fortalecida, em claro alinhamento às políticas de estímulo do Complexo Econômico Industrial da Saúde (Ceis). Nada indica que seja necessária sua privatização ou a criação indecente de concorrência na área. Os hemoderivados brasileiros são seguros e adequados ao desenvolvimento científico moderno e às necessidades de saúde. Toda a gestão de processamento e distribuição de hemoderivados é feita pelo sistema público.

Quais são os interesses escusos que pretendem alavancar um retrocesso tão imenso? Quanto dinheiro e quais são os interesses comerciais de grandes empresas farmacêuticas que advogam pela PEC 10/2022?

O Brasil procura se recuperar a duras penas das feridas que uma pandemia administrada com crueldade e incompetência lhe deixaram. Mais de 700 mil mortos em uma cena que dantescamente já nos demonstrou aonde nos leva o “salve-se quem puder”. O peso das mortes e do sofrimento sempre recai nos mais vulneráveis. Apesar do descalabro, o SUS emergiu da pandemia com maior legitimidade do que nunca. Quais são as forças que querem fazê-lo retroceder?

O país tem inúmeros problemas gravíssimos para enfrentar: violência policial, desigualdade, gargalos de acesso na saúde e na educação, para citar alguns. Enquanto isso, alguns parlamentares ofendem nossa inteligência e sensibilidade inventando uma pauta com uma PEC absolutamente esdrúxula e desnecessária.

Apelamos aos parlamentares com bom senso para que a PEC 10/2022 seja derrotada definitivamente! Sob pena de começarmos a habitar na distopia logo a seguir. Tomara que não nos transformemos em uma nação de zumbis.

*Rosana Onocko-Campos é presidente da Abrasco, médica, professora, chefe do Departamento de Saúde Coletiva da FCM da Unicamp. Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, em 4 de outubro de 2023.

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