Para comemorar o dia da Luta Antimanicomial, celebrado neste 18 de maio, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas – rede para a atuação conjunta de organizações não governamentais, coletivos e especialistas de diversos campos de atuação que busca debater e promover políticas de drogas fundamentadas na garantia dos direitos humanos e na redução dos danos – entrevista Paulo Amarante, pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Doutor Honoris Causa da Universidad Popular Madres de Plaza de Mayor, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).
Na conversa, Amarante fala da importância da celebração do dia 18, do significado político que representou a saída de Valencius Wurch Duarte Filho da Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (CGMAD/MS) e do cenário atual dos novos ocupantes do Executivo em Brasília. Confira abaixo na íntegra ou leia diretamente no site da PBPD.
PBPD: O que é a reforma psiquiátrica?
Paulo Amarante: A reforma psiquiátrica é o processo de transformação da mentalidade da sociedade em relação ao transtorno mental. Implica na mudança de um modelo assistencial – que hoje é predominantemente de segregação – para um modelo de inclusão e de participação territorial. Mas não é só isso. Mais do que a mudança desse modelo, é preciso também uma mudança de mentalidade: as pessoas têm que entender de outra maneira o que é o sofrimento, o que é a loucura, o que é o transtorno mental e conviver com esses sujeitos de outra forma, com uma abordagem solidária e inclusiva.
PBPD: Dia 18 de maio é dia da Luta Antimanicomial. Qual o impacto da guerra às drogas nesse cenário?
Paulo Amarante: O dia 18 de Maio foi eleito com referência à Lei nº 180 de 1978, na Itália, que foi a primeira lei de cunho antimanicomial de caráter nacional existente no mundo. E até hoje, é a lei mais bem executada, a mais completa e a mais radical: ela proibiu a construção de novos leitos psiquiátricos em manicômios e determinou um prazo para a extinção dos leitos manicomiais. Por essa razão, nós no Brasil decidimos comemorar essa lei e decidimos o dia 18 de maio como data para a celebração – um dia próximo à aprovação da Lei, que foi no dia 13 de maio. A partir de então, todo ano se comemora o dia 18 de Maio. Não é só o dia 18, mas existe a Semana do dia 18 de Maio e um mês todo dedicado a essa pauta.
As drogas se tornaram um ponto importante quando a visão nacional começou a encarar essa questão não apenas como segurança nem tampouco como tratamento terapêutico da pessoa com dependência, mas como uma questão social. Esse novo olhar envolve todo um projeto nacional relacionado às condições de ingresso social, político, universitário, de trabalho, de moradia. A política de drogas ganhou uma nova forma quando a SENAD – a partir da questão do crack, por meio programa federal Crack: é possível vencer – deu um salto de qualidade, porque começou a pensar políticas intersetoriais para o campo das drogas – e não apenas políticas de tratamento e muito menos de repressão. Isso foi um avanço que pôs em xeque uma das orientações dominantes no campo: o absenteísmo imposto. A partir daí, nós começamos a discutir outras estratégias de redução de danos e de tratamento. Repensamos a prevenção do uso de drogas e a promoção de vida e de saúde que, evidentemente, combatem a questão das drogas de outra forma. Nesse sentido, o debate sobre as drogas entrou de maneira muito importante no campo da luta antimanicomial, à medida que pautava a luta contra a repressão e contra a violência institucional.
PBPD: Tivemos até pouco tempo um ex-diretor de hospital psiquiátrico na coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Como o senhor avalia esses meses de gestão de Valencius Wurch?
Paulo Amarante: A saída do coordenador Valencius já ocorreu há algum tempo, mas eu reputo como um ganho muito importante do movimento antimanicomial que, desde o primeiro momento em que soube da nomeação de um notório inimigo do campo da luta e um notório defensor das práticas manicomiais, teve uma atitude decisiva ao ocupar por quatro meses inteiros a Coordenação Nacional de Saúde Mental. Deu o exemplo da importância e da resistência que essa frente tem. Mostrou que é possível lutar e que é possível vencer. Não sabemos agora qual será a nova orientação nacional da Saúde Mental, mas o movimento teve uma importante possibilidade de exercício de união e de organização como há muitos anos não se via num movimento social no Brasil. Portanto, a avaliação da saída do Valencius Wurch é muito positiva. Foi um ganho para esse frente.
PBPD: Estamos diante de um novo redesenho político, com um novo elenco ministerial. Quais as perspectivas para a Saúde Mental nesse novo governo?
Paulo Amarante: As perspectivas são bastante negativas. E não apenas para a Saúde Mental, mas para a Saúde como um todo, para a área social, econômica, do trabalho. Nós sabemos que esse projeto político que assumiu a coordenação do país – essa tal da Ponte para o Futuro – é uma ponte para o atraso, uma ponte para práticas que podem ser muito conservadoras, elitistas e excludentes. É o projeto de anulação de todos os ganhos e de todos os avanços que a sociedade brasileira construiu a partir da Constituição de 1988. Certamente, nós teremos muitos enfrentamentos e dificuldades, porque os ganhos sociais no campo da Educação, da Cultura, dos Direitos Humanos, do Trabalho, da Saúde vão ser destruídos por essa gestão nacional. A questão que estava por trás desse golpe não era a corrupção de um grupo ou de outro, mas sim a condução do projeto nacional, para redirecioná-lo a um projeto conservador.
PBPD: Como o senhor avalia a crítica de que a luta antimanicomial demorou a perceber que a política de drogas era importante na desinstitucinalização?
Paulo Amarante: O campo antimanicomial entrou com atraso na questão das drogas. Mas isso não foi só aqui no Brasil. Por causa da hegemonia norte-americana do combate às drogas, essa pauta esteve mais ligada ao campo da segurança do que ao campo da saúde, da promoção da qualidade de vida. Mas, desde o momento em que os setores ligados à reforma psiquiátrica perceberam que na questão das drogas estava uma das lutas mais importantes de defesa dos direitos e da vida, a entrada desse tema na luta antimanicomial trouxe muitos avanços no campo assistencial, social, na intersetorialidade.