Quando Gastão Wagner, presidente da Abrasco, iniciou sua fala na abertura do 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o tom político e a emoção tomaram conta do auditório Marielle Franco bem como os demais auditórios auxiliares nas grandes tendas montadas para o Abrascão 2018, num total de mais de 4 mil pessoas numa celebração de força política, memória e poesia.
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Ao chamar Anielle Franco, irmã da vereadora assassinada em março, Gastão Wagner contou que a escolha de Marielle foi unanimidade como homenageada no Abrascão 2018. Com um coro de mais de três mil vozes gritando “Marielle, presente!”, Anielle subiu ao palco e iniciou sua fala com recordações de infância dela e da irmã, moradoras da Maré, nas ações de vacinação da Fundação. “A gente se vacinava aqui, e ainda hoje trago aqui a minha filha para se vacinar”, disse ela, ligando a lembrança à veia política de Marielle, que se consolidou ainda na infância e com o fundamental apoio da mãe. Anielle salientou que falar para tantas pessoas era desafiador, mas acalentador ao ver o sorriso da irmã no telão. “É disso que tiramos forças todos os dias”.
Gastão Wagner de Souza Campos deu a abertura oficial e iniciou sua fala agradecendo os 7.572 inscritos, ressaltando o papel da comunidade da Saúde Coletiva na realização do evento. “Cerca de 70% de financiamento desse congresso se deu com as anuidades e contribuições de associadas e associados. Em grande medida, esse 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva tem o papel de fazer avançar tanto a democracia na saúde, do movimento da Reforma Sanitária Brasileira e também da Abrasco, em particular”.
Ele destacou a natureza híbrida dos congressos da Abrasco, que junta o componente científico, fruto das investigações, estudos e pesquisas desenvolvidas em Saúde Coletiva com o caráter político. “A gente vem ao Abrascão para trocar ideias, discutir, aprender e tirar diretrizes e plataformas para nossa ação nos próximos anos em cada local, em cada sala de aula, em cada serviço de saúde e nos nossos movimentos sociais. A gente vem para carregar nossa energia e confirmar para nós e para a sociedade que a esperança somos nós.”
O presidente remontou os motivos que levaram à Associação a escolher a cidade do Rio de Janeiro, bem como a UERJ para sede do pré-congresso e a Fiocruz. “Há um ano, quando começamos, fizemos reuniões desoladoras em meio à greve da UERJ, paralisada e com professores sem salário. Anteontem e ontem encontramos uma UERJ viva e cheia de vida. O mesmo vale para a Fiocruz, que com sua autonomia frente aos inúmeros governos reforça o compromisso com a saúde da população brasileira, a ciência e a tecnologia. Estamos sendo atacados nos últimos dois anos por esse governo federal e é por isso que estamos aqui” ressaltou Gastão.
Mesmo com os retrocessos impostos nos últimos dois anos de golpe parlamentar-jurídico-midiático, Gastão ressaltou os avanços conseguidos na sociedade pelos movimentos das mulheres, que avançaram “acima de tudo no cotidiano, não deixam para fazer amanhã, ainda que no micro, suas formas de luta nos espaços institucionais”, e pelos movimento negro e das populações indígenas. “Temos de ter capacidade de dar voz a nós mesmos e aos oprimidos nessa sociedade. Saber como vocalizar essas pautas foi uma preocupação da atual diretoria da Abrasco e será da próxima. Na atual gestão não havia nenhuma pessoa negra. Agora, a nova chapa traz duas pesquisadoras negras e um pesquisador negro, na busca desse aperfeiçoamento.”
Para valorizar a esperança necessária às transformações, Gastão citou Antonio Candido, “pensador da Saúde Coletiva e da literatura”, que ao comentar as atitudes da sociedade em relação ao atraso e autoritarismo, destacava as ditas “consciências amena e agônica do atraso” que passam a mensagem de que a opressão e a degradação vão durar eternamente. “Trago Candido para que nos ajude a não cair nesses lugares, a não ficar no lado de opressores, no discurso que não há nada, e nem ao lado do criticismo, da lamentação, como se o SUS não existisse, como se não tivéssemos fechado 50% dos leitos psiquiátricos, alcançado 70% de cobertura da APS, como se não tivéssemos milhões de estudantes cotistas nas universidades públicas. A gente tem projeto. Precisamos reconhecer nosso projeto, e nós da Saúde Coletiva o temos.
No entanto, ele frisou que as inúmeras dificuldades do SUS percebidas pela população não podem ser desprezadas. “Temos de saber como comunicar à população onde é necessário usar o dinheiro e de que forma e com efetividade. Podemos reduzir o poder clientelista dos prefeitos e governadores. O SUS pode ser uma organização pública com grau de autonomia do Poder Executivo e com controle social e prestação de contas.
Ao final, comentou do cenário eleitoral de outubro. “É muito incomodo que o candidato de maior apoio popular não possa fazer campanha por um processo arbitrário e arbitrário. A garantia da participação de Lula nas eleições deve ser um compromisso de todos os democratas”.
Falas marcadas pela política e poesia: Joaquín Molina, representante da OPAS/OMS no Brasil, convidou Michelle Bachelet, ex-presidenta do Chile e representante da Organização Mundial da Saúde (OMS), para proferir a conferência de abertura “Direitos e democracia: sistemas universais e públicos de saúde”.
“Nunca devemos perder o foco, e o foco sempre serão as pessoas” iniciou assim Michelle Bachellet, reafirmando também sua ligação sentimental com o Brasil e a música brasileira. A líder reafirmou a necessidade de sistema público forte e que seja capaz de garantir direitos iguais a todos, destacando o aniversário de 40 anos de Alma-Ata e os avanços da Atenção Primária em todo o mundo.
Relembrou, ainda, que as políticas públicas integrais não funcionam de forma unidirecional, destacando que o exercício da democracia e seu caráter de direito público é fundamental para a efetivação das políticas. “O estado atual de nossos sistemas públicos de saúde é estruturado de acordo com a evolução demográfica e econômica, mas, sobretudo, pela ação política de nossos países”, afirmou. “É preciso marcar os limites do tolerável e do remediável. Falar sobre saúde publica é falar sobre o tipo de país que temos, podemos e devemos construir”, ressaltou.
Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, saudou o público e destacou a emoção que tomou conta dos presentes ao cantarem o hino nacional. “Esse congresso, o Abrascão, é como um grande abraço que nós damos, reunidos hoje, nessa manifestação pela saúde, pela democracia, não só no Brasil, mas em todos os povos, principalmente os latino-americanos”.
A importância e o desafio da Fiocruz sediar o evento em Manguinhos em meio à piora nos indicadores depois da intervenção militar na cidade do Rio de Janeiro estiveram na fala de Nísia. No momento em que se comemoram os 30 anos da constituição cidadã, os 30 anos do SUS e os 100 anos do castelo mourisco, sede e símbolo da Fiocruz, ela destacou ainda que 2018 é ano de eleição e que é preciso lutar pelo SUS, pela democracia e por direitos. “É preciso lutar pelo direito à cidade e seus equipamentos urbanos, na configuração como espaço público realmente democrático nesse território, o direito à cidade por todos”, afirmou.
Ao fim, a presidente da Fundação ressaltou a importância da reconstrução democrática. “Precisamos avançar, pensar nos novos e nos antigos desafios do ponto de vista da saúde coletiva. Não podemos ficar isolados, saúde é democracia e também desenvolvimento, é parte essencial do processo de reconstrução democrática. Nesse espaço de convivência, de debate, de propostas, para novos sonhos e novas lutas por um novo projeto de liberdade. Um excelente congresso a todos, Marielle vive, Saúde é democracia”.
Representantes das demais universidades e dos movimentos sociais parceiros deste Abrascão também compuseram a mesa de abertura. Roberto Leher, reitor da UFRJ, ressaltou a importância da realização do evento. “É muito bom estarmos juntos num momento difícil e complexo do país, sei que para muitos foi muito difícil chegar ao Rio para participar, o comparecimento aqui é um ato político”.
Além do assassinato de Marielle, Leher destacou a ameaça aos espaços públicos que produzem conhecimento, citando como exemplos a operação da Polícia Federal que resultou no suicídio do reitor da UFSC Luiz Carlos Cancellier de Olivo, e as ameaças a professores, como as recebidas por Débora Diniz, antropóloga da UnB, defensora de direitos de mulheres e minorias.
Maria Georgina Muniz Washington, reitora em exercício da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), destacou a situação da universidade, que enfrentou dificuldades financeiras nos últimos anos. “Nós resistimos, a UERJ resiste, pois cada vez que a gente ia sucumbir, pessoas e entidades nos seguraram, pessoas como Marielle, entidades como a Fiocruz e a Abrasco, que acreditou que a UERJ poderia abraçar esse congresso. Já destruíram o ensino público básico e agora querem destruir o ensino público superior, mas nós vamos resistir”. Ao final de sua fala, a plateia mais uma vez se manifestou gritando “UERJ resiste”, lema da universidade diante da crise.
Para Aluísio Gomes da Silva Júnior, diretor do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (UFF) e representante da reitoria dessa Universidade, freisou que é na crise que temos possibilidades de construção e de apresentar ideias inovadoras. “Somos os malucos que propusemos fazer o Abrascão 2018 em meio à crise das universidades públicas, ao caos do Rio de Janeiro, nesse ambiente hostil. É um desafio, mas é um momento de aliança”.
Ana Maria Wandelli, diretora do Instituto de Saúde Coletiva da Unirio agradeceu a parceria no Abrascão, salientando que sua entidade é a caçula entre as instituições parceiras, já que o Instituto foi criado em outubro de 2015, e que aposta na união de todos para enfrentar o desafio de produzir ciência. “Precisamos não só impedir o retrocesso, mas viver intensamente o presente com vistas a um futuro melhor, em uma construção coletiva, pela mesma causa”.
Ronald Ferreira dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), fez um chamamento ao público para prosseguir o espírito do Abrascão na 16ª Conferência Nacional de Saúde, a ser realizada em 2019. Com coro da plateia pedindo “Lula livre”, Santos enfatizou a luta de todos para que possamos nos reerguer diante do “massacre do SUS, dos nossos direitos e da democracia”. O representante do controle social afirmou que “emergir da crise é urgente e necessário, para nossos sonhos e nossas lutas. Não estamos vencidos, precisamos de reflexão e não de ódio e de resistência contra a ascensão do fascismo, para um Brasil melhor e mais justo e isso será no nosso voto nas eleições gerais que se aproximam”. Ronald Ferreira dos Santos disse que precisamos de combatentes como Marielle Franco para reconquistarmos nossos sonhos. “Temos que discutir democracia e saúde, trazer o povo para defender a saúde como direito e não como mercadoria. Viva o SUS, o SUS é nosso, ninguém tira da gente, Lula livre”, finalizou.
Patrícia Evangelista, da Organização Mulheres de Atitude (OMA), moradora da favela de Manguinhos e trabalhadora do SUS, ressaltou a importância da realização do Abrascão 2018 na Fiocruz. “Gostaria de enfatizar a extrema violência que esse lugar tem vivenciado todos os dias, a intervenção militar, e falando aqui de todas as formas de violência, o machismo, o racismo, a opressão do sistema capitalista. Nós não nos reconhecemos como uma sociedade violenta e isso dificulta e complica instituir a democracia”. Patrícia Evangelista criticou as ações do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, no desmonte do SUS, “diminuindo o acesso da população ao sistema público de saúde, na redução de recursos e no número de Agentes Comunitários de Saúde (ACS)”. Para Patrícia Evangelista, é preciso unir a ciência, as políticas públicas e o movimento popular de massa. “Espero que tenhamos um produtivo congresso. O SUS é nosso! A favela resiste, Marielle vive”, afirmou.
Por fim, Guilherme Franco Netto, coordenador da Comissão Organizadora Local e dirigente da Abrasco e da Fiocruz, concluiu a cerimônia de abertura com a recitação do poema “E agora José”, de Carlos Drummond de Andrade, sintetizando que o espírito do Abrascão 2018 deve juntar consternação com o inadmissível e coragem frente às adversidades.
* Cobertura colaborativa do Abrascão – participaram Bruno C. Dias e Maria Thereza Reis (Abrasco); Renata Moehlecke (Agência Fiocruz de Notícias) e Camila Lima (colaboradora Abrasco)