As doenças não são entidades democráticas. Pelo contrário, elas têm incidências determinadas pela renda, pela idade, pelo gênero e pela raça. Diante da pandemia provocada pelo coronavírus (SARS2- CoV2), diversos segmentos da sociedade estão mais expostos e são identificados como grupos de risco, por conta de comorbidades específicas. A população negra, em sua diversidade, também é um dos grupos de risco, obviamente com gradações internas, variando tanto por comorbidades que atingem negras e negros em maior número, caso da hipertensão e da diabetes e, principalmente, a anemia falciforme, ou mesmo pela letalidade social, motivada por questões históricas, políticas e sociais estruturantes de nossa sociedade. A Abrasco ouviu pesquisadores e lideranças sociais para entender esse cenário e ser um canal dessas demandas.
Altair Lira, professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA (IHAC/UFBA) e integrante do Grupo Temático Racismo e Saúde (GT Racismo/Abrasco), aponta que o racismo estrutural dificulta a vida de negros e negras, e não seria diferente durante a pandemia “Estamos falando de um grupo que carrega dificuldades estruturais no seu viver, provocada por um racismo estrutural e estruturante, que começa desde a informação que chega a essa população até o acesso a exames para detecção do vírus, principalmente no que chamamos de casos suspeitos”.
Se as desigualdades sociais já são relevantes para o agravamento de outras doenças, no caso da Covid-19, o cenário não é diferente. Deivison Faustino, professor e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo e integrante do Instituto Amma Psique e Negritude, aponta que esse debate é urgente para as ações para lidar com o coronavírus: “ É preciso abrir um debate urgente sobre o quanto as desigualdades sociais agravam ou até impedem as possibilidades de prevenção de adoecimento e morte pela Covid-19. Graças a um histórico escravista de nossa sociedade, mas, sobretudo, por um racismo que se atualiza em descaso e violência de Estado contra a população negra, nós somos a maioria absoluta nas favelas, nos cortiços, nas palafitas, na população de rua nas cadeias, nos empregos precários”. Além da questão relacionada à moradia da população pobre no país, composta por uma maioria de negras e negros, Deivison aponta as dificuldades de se fazer quarentena: “Somos a maioria entre as pessoas que continuam pegando trem ou ônibus lotado para poder ir trabalhar. A pergunta que fica é: como fazer a quarentena nessas condições? Ele vai se isolar aonde? No seu barraco de dois metros quadrados, com filhos, avós, esposa? Como ele vai se cuidar? É urgente que as autoridades sanitárias e as autoridades políticas em geral desenvolvam estratégia de contenção da Covid-19 nesses grupos, ou a gente vai presenciar uma carnificina sem precedentes”.
Epidemiologista e uma das coordenadoras do GT Racismo e Saúde da Abrasco e docente da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Edna Araújo complementa, ressaltando a negação de direitos vivenciada cotidianamente pela maioria dos negros e negras no país: “No Brasil, o enfrentamento à pandemia da Covid-19 tem desvelado não somente a insuficiência do nosso sistema de saúde, aliás condição comum a muitos sistemas de saúde do mundo frente a uma pandemia, mas também a desigualdade social oriunda da alta concentração de renda e do racismo nas suas mais variadas formas, que fazem com que o nascer, viver, adoecer e morrer da população negra sejam mediados por condições de miserabilidade, de privação de direitos, de moradia e de emprego formal”.
Desafios para lidar com a doença das células falciformes: O cenário para portadores da anemia falciforme já é bastante difícil em períodos normais e, com o cenário de pandemia, alguns problemas podem ser agravados. A doença falciforme é hereditária e a estimativa é de atinja mais de 70 mil pessoas em todo o país. Dentre as principais causas de morbimortalidade nos indivíduos com essa enfermidade está a síndrome torácica aguda (STA), termo usado para uma constelação de achados que incluem dor no peito, tosse, febre, hipóxia (baixo nível de oxigênio) e infiltrados pulmonares. Alguns desses sintomas podem facilmente ser confundidos com a Covid-19 e levar as pessoas à emergência dos serviços de saúde. Altair Lira alerta para a agilidade que os unidades de assistência precisam ter para lidar com esse quadro: “Precisamos garantir o seu atendimento dentro de protocolos de classificação de risco, dando a prioridade necessária para seu atendimento e tomando as medidas necessárias para que, caso seja coronavírus, ações ainda mais imediatas e específicas sejam adotadas, pois o curso da infecção nesses pacientes imunodeprimidos será efetivamente grave.”
A Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) publicou um documento com recomendações para a redução de morbidades em pacientes que lidem com a doença falciforme. O documento destaca “uma preocupação significativa de que a sobreposição de doença pulmonar da Covid-19, no cenário pulmonar em doença falciforme marcados pela síndrome torácica aguda, possa resultar em complicações significativas e na ampliação da utilização da assistência médica”.
Para se entender o racismo estrutural nas políticas públicas de saúde para população negra, Altair aponta ainda os dados sobre a descoberta do primeiro relato de anemia falciforme no país e a primeira política elaborada: “A anemia falciforme é um retrato do racismo no Brasil. Entre o primeiro relato da doença e a primeira política pública se passou quase um século. Isso não é um dado gratuito quando identificamos que a doença é predominante entre negros”.
O racismo estrutural e o Sistema de Saúde: Para além das doenças diretamente relacionadas ou que atingem em maior número a população negra, a sobrecarga que a pandemia pode causar ao sistema de saúde do país pode expor ainda mais o racismo estrutural que atravessa o atendimento da saúde. Edna Araújo aponta que é neste cenário de racismo, desigualdade social e subfinanciamento do SUS “que a Covid-19 encontra ambiente propício para produzir o caos aos corpos negros, tendo em vista que 80% dos usuários se autodeclaram. Neste sentido, Deivison aponta que, “o racismo estrutural na saúde se revela por uma divisão desigual de acesso, pelo tratamento desigual dentro do sistema e também, principalmente, pela invisibilidade das desigualdades raciais na hora do planejamento das políticas e ações de saúde”. Para ele, apesar dos problemas vivenciados ali, é fundamental a defesa do sistema: “O sucateamento do SUS nos atinge diretamente, já que somos maiores dependentes do sistema no país. Então, a primeira luta de todas para a população negra é o fortalecimento do SUS”.
Lucia Xavier, da organização Criola, destaca a importância de que as ações emergenciais possam dialogar com políticas de longo prazo: “Os movimentos sociais negros e de mulheres negras, buscam conjugar ações emergenciais e políticas que ampliem as condições sanitárias da população negra e também ações políticas de largo prazo que garantam o futuro dessa população em um país tão desigual e violento”. Foi nesse sentido que a Coalizão Negra por Direitos lançou uma nota reivindicando a adoção imediata de medidas de proteção da população negra e demais outras afetadas ou em vulnerabilidade ao Coronavírus. Dentre as medidas estão os cuidados com pessoas infectadas; prevenção, promoção e atenção à saúde; e assistência social.
Pensar como lidar com a situação na crise requer também o pensamento em formação dos profissionais e da ciência. Neste sentido, a atuação de cientistas e a formação de profissionais que lidem com tais questões sociais e raciais que fazem parte do nosso cotidiano de atendimento em saúde devem ser reforçadas ainda mais nos períodos especiais. “Cientistas negras e negros tem uma importância muito grande neste período, pois foram elas e eles que, para além dos sinais e sintomas, buscaram as causas e efeitos do racismo na saúde da população negra. A participação dos movimentos sociais negros transformou-se em mola propulsora destes estudos e políticas de atenção, medidas estas que precisam ser tomadas também no contexto do coronavírus”.
Diante deste cenário que se revela e pode aprofundar ainda mais as desigualdades raciais e sociais do país, o Grupo Temático Racismo e Saúde (GT Racismo/Abrasco) destaca 12 pontos para reduzir impactos negativos da Covid-19 em grupos vulnerabilizados. Confira os pontos:
1. Estabelecer um novo pacto social no qual TODAS AS PESSOAS possam viver com dignidade;
2. Reconhecer a importância e a necessidade do SUS para contenção da Covid-19;
3. Aportar recursos para o pleno funcionamento do SUS, em todas as suas instâncias de formulação, planejamento e gestão de políticas, financiamento, regulação, coordenação, controle e avaliação (do sistema/redes e dos prestadores, públicos ou privados) e prestação direta de serviços;
4. Orientar prefeitos e gestores para aplicar recursos da saúde, considerando o quantitativo e perfil da população negra, de modo a impactar positivamente na melhoria controle e redução de transmissão da Covid-19;
5. (Re)contratar profissionais para atuar na Atenção Primária à Saúde, uma vez que 80% dos casos da Covid-19 são manejados e necessitam de cuidados neste nível que é, reconhecidamente, hábil e capaz de lidar com grupos vulnerabilizados;
7. Orientar agentes comunitários de saúde para fazer busca ativa de idosos, pessoas com Hipertensão Arterial, Diabetes, Doenças Pulmonares Obstrutivas Crônicas, Doenças Falciformes e outras doenças consideradas de risco para a Covid-19;
8. Realizar ações de educação em saúde, utilizando materiais educativos (em português, inglês e francês) e levar informações sobre a Covid-19 em parceria com organizações, grupos e coletivos negros nos territórios prioritariamente ocupados por população negra – quilombos, favelas, bairros periféricos, terreiros, assentamentos, populações do campo, escolas públicas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, e em situação de rua, entre outros;
8.1. No que tange à população em situação de rua é crucial:
Disponibilizar banheiros públicos abertos e água potável em garrafas descartáveis;
Manter restaurantes populares abertos com horário mais amplo e entrega gratuita de alimento;
Priorizar pessoas em situação de rua nas campanhas de vacinação;
Aumentar os recursos e ampliar as equipes para os Consultórios na Rua;
Distribuir kits com sabão, álcool gel e outros produtos de higiene;
Acomodar em imóveis apropriados às pessoas em situação de rua que precisam de isolamento;
Disponibilizar abrigo protegido para pessoas, suas carroças e animais de estimação.
9. Ampliar as condicionalidades nos programas de renda familiar mínima para contemplar: os grupos em contexto de maior vulnerabilidade socioeconômica, risco de adoecimento e morte como: refugiados e migrantes, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, marisqueiras, geraizeiros, povos ciganos acampados, travestis, prostitutas e outros trabalhadores do sexo e população em situação de rua.
10. Inserir a variável raça/cor nas fichas de registro e notificação da Covid-19, divulgar boletins e outras estatísticas oficiais apresentando dados desagregados também por esta variável.
11. Envolver setores como Defensoria Pública, prestadores de serviços, terceiro setor e Organizações não Governamentais para atuarem na mitigação dos impactos negativos da Covid-19 nas populações de maior vulnerabilidade.
12. Convocar e engajar instituições e pessoas de alta renda, para financiar ações de curto, médio e longo prazos voltados para estes grupos.
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