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Por uma mudança no padrão de consumo em saúde – Artigo Ligia Giovanella

Ligia Giovanella *

Foto: arquivo Abrasco

A pandemia de Covid-19 foi resultado de um colapso na interação entre a sociedade e a natureza, refletido na deterioração acelerada do meio ambiente e nas mudanças climáticas. Tal colapso, determinado pelos processos produtivos, extrativistas e comerciais do capitalismo global, acirra-se pelas políticas neoliberais de redução dos direitos sociais e do trabalho, com aprofundamento das desigualdades sociais, e representa forte ameaça à vida na Terra.

A América Latina, permeada por essas desigualdades, tornou-se um dos epicentros da crise global de saúde e humanitária que afeta cada vez mais as populações em piores condições socioeconômicas dos países em desenvolvimento e as populações mais vulneráveis do planeta.

Nesse contexto, que escancarou mais uma vez as relações entre saúde e meio ambiente, a pandemia deixa como um de seus legados a necessidade de se ampliar o olhar sobre os sistemas de saúde.  É hora de defender, com mais força, a proposta institucional, política e social de um sistema único de saúde, público e universal. E que este seja orientado por uma visão da epidemiologia crítica, na qual é sublinhada a determinação social da saúde e da vida, assim como a determinação dos diferentes modos de produção sobre a vida, não apenas humana, mas do planeta. 

É importante considerar uma concepção ampliada de direitos também dos demais seres vivos, em uma nova inter-relação com a natureza, que irá requerer um novo projeto de sociedade, e novos padrões de produção e consumo.

Para alcançarmos um modelo de desenvolvimento mais harmônico com a natureza, como nos preceitos de buen vivir dos povos originários da América Latina, é necessário ainda estruturá-lo com base em uma visão mais abrangente do conceito de sustentabilidade, que inclua a defesa da diversidade sociobiocultural; valores de solidariedade, ética, justiça social e equidade. 

É fundamental para a saúde e, especialmente, para a atenção primária no SUS, a compreensão do território com suas comunidades como centro do processo de desenvolvimento, no qual diferentes políticas devem se encontrar de forma coordenada e interagindo entre si, tendo como foco o fortalecimento dos serviços públicos de acesso universal 

A Estratégia Saúde da Família, no Brasil, nosso modelo de APS integral de orientação comunitária, funda-se na vigilância em saúde e no território. Nesse modelo, uma equipe multiprofissional é responsável pela saúde da população em uma determinada área, organizando o trabalho da saúde em diferentes ambientes da comunidade, a partir de necessidades e problemas de saúde em si, mas, considerando, também, sua determinação social para o planejamento das ações de atenção, prevenção e promoção da saúde. Isso implica mediar inciativas intersetoriais para promover a saúde, incentivar e fortalecer a participação social.

O modelo assistencial oferecido pelo SUS, nos serviços de atenção primária à saúde, da Estratégia Saúde da Família, com sua equipe multiprofissional, inclui atributos para garantir acesso ao serviço de primeiro contato a cada necessidade de saúde; cuidado longitudinal ao longo da vida; abrangência das ações (prevenção, promoção e cuidado); coordenação e integração na rede integral do SUS; orientação familiar e  comunitária.

Uma importante dificuldade observada na implementação desse modelo é o equilíbrio entre a garantia da necessária atenção individual e a abordagem coletiva, territorial, comunitária. As dificuldades, mas, também, as potencialidades desse trabalho estão nos resultados da pesquisa sobre o enfrentamento da Covid-19 nos serviços de APS do SUS, com amostra representativa das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do país por grande região, que recém-finalizamos. Esta pesquisa é uma iniciativa da Rede de Pesquisa em APS da Abrasco e Maria Helena Magalhães de Mendonça e eu participamos da equipe de coordenação. 

Quatro dimensões principais foram analisadas na pesquisa: vigilância em saúde; organização do trabalho para o cuidado das pessoas com Covid-19; iniciativas para garantir a continuidade das ações rotineiras de cuidado, para além da Covid-19; e ações comunitárias de apoio social no território.

No centro do processo de trabalho coletivo de enfrentamento da Covid-19 pela equipe da APS, além da vigilância, para que as populações mais vulneráveis possam, efetivamente, seguir as recomendações preventivas relacionadas à Covid-19, há necessidade de todo tipo de apoio (sanitário, financeiro, psicológico e social). Isso implica uma ação coordenada da equipe de saúde no território com implementação de ações comunitárias em parceria com lideranças, instituições e organizações locais, além de ações integradas governamentais de diversos setores. 

Ainda que as atividades de apoio social nos territórios das Unidades Básicas de Saúde apresentem-se, nesta pesquisa, como a dimensão com menor desenvolvimento no enfrentamento da pandemia, cabe ressaltar que os resultados das iniciativas de articulação com movimentos sociais e com outras organizações, instituições e setores atuantes nesses territórios, mostram a potencialidade dessa atuação mais articulada das equipes das UBS nesses locais. Entre 30 e 40% das UBS tomaram iniciativas neste sentido, tendo os agentes comunitários de saúde um papel fundamental nestas ações. 

No enfrentamento da pandemia, ficou claro a importância da sinergia e parceria entre as organizações e a rede da atenção básica, para o sucesso das ações solidárias, mostrando claramente a necessidade da abordagem territorial, populacional. No entanto, essa abordagem, que integra o modelo assistencial da ESF, está gravemente ameaçada pelo desmantelamento atual das políticas de APS do governo federal, com mercantilização, seletividade e ênfase no cuidado individual de pronto atendimento, assim como pela abolição das prioridades para Estratégia Saúde da Família e extinção dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF).

Na perspectiva das políticas públicas, é fundamental ampliar a participação social para a formulação e implementação de programas e serviços que melhor respondam às necessidades e, ao mesmo tempo, produzam autonomia dos sujeitos, com vista a melhorar as condições de vida das populações em seus territórios. Importante, ainda, que as políticas respondam às diversidades geográficas econômicas e socioculturais de cada território.

Precisamos defender a ampliação de estratégias para priorizar a territorialização dos problemas de saúde, com ampliação do objeto e espaços de intervenção para famílias, comunidade e meio ambiente. É preciso, tambémdefender o fortalecimento da gestão participativa dos serviços de saúde, envolvendo a população e suas organizações como sujeitos ativos na definição das ações de saúde e no planejamento de intervenções no território junto com às equipes de saúde.

Na discussão sobre as iniciativas comunitárias inovadoras, dos movimentos sociais insurgentes, quando falamos em participação social emancipadora, produtora de sujeitos democráticos, essa participação não pode se confundir com a desresponsabilização do Estado na garantia dos direitos sociais. É preciso deixar sempre claro que defender a ampliação da participação social local não significa que a comunidade precise assumir responsabilidades de serviços que o Estado deveria suprir. 

Por fim, reafirmamos a perspectiva da APS integral, da ESF, na rede de atenção do SUS como a maneira mais efetiva e mais eficiente para alcançar melhores resultados em saúde, porque envolve ações de promoção, prevenção e cuidado individual e coletivo, e pode ser menos iatrogênica, menos medicalizante, e usar os recursos de forma mais racional, tornando-se, portanto, mais sustentável. 

A garantia do direito universal ao acesso a serviços de saúde de qualidade conforme necessidade, ademais de financiamento público suficiente, exige mudar os processos de produção e cuidado em  saúde.  Reconhecer a inseparabilidade entre sociedade e natureza, entre saúde, economia e meio ambiente, exige mudar o padrão de consumo em saúde! 

 

Ligia Giovanella é Integrante do comitê coordenador da Rede de Pesquisa em Atenção Primária da Abrasco e pesquisadora do CEE/Fiocruz. Texto produzido a partir da participação da pesquisadora no XXXIV Webnário Redesist: Saúde, Desenvolvimento e Território, realizado no dia  2 de fevereiro e transmitido pelo Youtube. Originalmente publicado no CEE. 

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