A jornalista Miriam Leitão, do jornal O Globo, escreveu em sua coluna na última terça-feira (29) sobre uma entrevista realizada com Marco Lucchesi, Presidente da Academia Brasileira de Letras. Lucchesi tem um olhar atento para a população carcerária e acredita na literatura como potencial transformador dentro das prisões. Leia na íntegra:
O professor entra na prisão de segurança máxima, Bangu 3, e os guardas o trancam. Dois jovens prisioneiros tomam conta dele e de outros professores que foram lá para falar de livros, ou qualquer outro assunto. O visitante é o presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi. Ele faz isso há muito tempo: visitar as prisões e falar de livros, que hoje também ajudam na redução das penas.
O que o escritor, poeta, tradutor, ensaísta e professor tira desse contato, do qual ele diz não querer abrir mão? Uma sensação de urgência do que o Brasil precisa fazer para evitar que mais brasileiros cruzem aqueles portões.
— Nós temos condição de reverter essa situação. Como? Através do acesso à universidade, às escolas, dando condições eficazes a uma infância feliz. Esse é um tema poucas vezes levado adiante: a preocupação com a infância, com o futuro das crianças. É preciso haver uma revisão das leis em relação às licenças dos pais e das mães, porque as crianças precisam dos pais por mais tempo. Quanto mais a sociedade puder amparar o futuro desses meninos e meninas, mais fácil será. Porque, senão, eu vou encontrá-los na prisão.
Lucchesi tem muitas histórias de encontros na prisão. Conta que, uma vez, entrou e viu aquela imagem da menina afegã fotografada pela “National Geographic” muito bem pintada por um menino de 19 ou 20 anos e perguntou: “isso é muito bom, onde aprendeu?” O jovem respondeu que foi ali na prisão. Encontrou outro tocando violão e a resposta também foi que aprendera ali.
— Aí vem a raiva. Eles têm a capacidade de aprender, mas enfrentam o abandono. Eles são quase um milagre.
A entrevista que o escritor me concedeu, na GloboNews, faz pensar no que parece impossível. Não existe melhor momento para as utopias do que o período eleitoral. Vivemos uma briga no espaço político que, às vezes, parece não fazer muito sentido. Sabe-se pouco dos projetos e sonhos que os candidatos vão oferecer ao país, se é que vão oferecer. Por isso uma conversa como essa, que parece ser sobre uma tema fora da pauta, mostra que a urgência pode estar desentendida.
Dessa convivência com detentos, ele concluiu que o estado brasileiro tem sido “madrasta” e que é preciso ampliar o acesso à educação e aos livros, inclusive nas prisões. Hoje existe a ideia da remissão da pena, o preso lê um livro, demonstra que leu, e ganha um dia de pena a menos.
— Não sei se vai melhorar alguém, mas isso é minimamente humano. E a luta não é apenas para a remissão da pena.
Ele acha fundamental que o país discuta o combate às desigualdades, que têm sido a marca do Brasil, mas não tem que ser o seu destino.
— Temos a responsabilidade, em todas as nossas áreas, de trabalhar pela cultura da paz. Só que o elemento-chave é atenuar, cada vez mais rapidamente, as desigualdades. Sem isso, não há intervenção que resolva, não há diálogo possível porque serão partes assimétricas.
Lucchesi começou a ir às prisões quando um detento em São Paulo o chamou, porque havia conseguido montar uma biblioteca.
— Ele dizia que era o Olimpo do sistema prisional, porque lá havia três mil livros. Ele me dizia que os mais experientes na prisão ensinavam aos menos experientes de modo que houvesse uma engenharia da leitura. Uma coisa muito sofisticada.
Lucchesi é acostumado ao que parece difícil alcançar. Quando criança, pedia ao pai para levá-lo à rua da Alfândega porque ele queria aprender árabe.
— Tinha um fascínio por aquelas letras que fazem um movimento do nascente para o poente.
Aprendeu árabe. E também persa, para traduzir um poeta do século oitavo. Domina quase duas dezenas de idiomas, uma capacidade herdada. O avô de Lucchesi ficou preso num campo de concentração em Mauthaussen. Aprendeu alemão tão rapidamente que acabou sendo libertado.
— Para mim a língua é a forma de chegar ao outro. Pode estar na prisão ou num texto literário do século oitavo. É a abertura para a alteridade.
E é o outro que não se vê no Brasil conflagrado como está, mas Lucchesi aposta numa solução que venha pela urgência do momento.
— Estamos numa crise tão aguda e tão intensa que as respostas virão. Um filósofo, citando um poeta alemão, dizia que onde há perigo cresce também o socorro.