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Prevenir a crueldade – por Ligia Bahia

Vilma Reis

Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco, Ligia Bahia publicou neste sábado 6 de outubro no jornal O Globo o artigo Prevenir a crueldade onde aborda democracia: – “SUS teve continuidade, mas não foi ampliado e modernizado. Restrições orçamentárias e censura a atividades voltadas a grupos LGBT, deficientes, negros, mulheres e com sofrimento mental o tornarão incapaz de responder às necessidades acumuladas e futuras”.

Eleitores brasileiros são a favor da saúde pública. Muitos votarão num candidato a presidente que propõe cortar gastos para o SUS. Outros irão escolher defensores de políticas sociais expansionistas. Como não há rejeição ao direito à saúde, pelo contrário, a confusão é grande. Na porta do hospital da UFRJ, um paciente declarou: “Só o PT dará jeito nessa bagunça, é uma vergonha esse descaso.” Segundos depois, outro disse: “Minha mãe foi atendida aqui, era uma beleza, atendimento de primeira, tenho vontade de chorar vendo como está, voto no Bolsonaro, ele vai ter força para recuperar isso.”

Programas dos candidatos e o que se tem falado nos debates parecem ser menos importantes do que a potência atribuída ao futuro presidente e a seu partido para mudar o que não está certo. A divergência básica sobre saúde — quem paga e quem usa serviços — ficou submersa na polarização sobre soluções para economia, corrupção, segurança e costumes. Porém, a preocupação dos eleitores com o SUS não é consenso entre os dirigentes políticos. Nos salões dos fóruns empresariais e das reuniões entre candidatos e pessoas influentes no setor predominam as ideias de deixar “isso” como está. Quem paga relativamente mais impostos e apresenta condição clínica grave continua atrás na fila e sem assistência de qualidade.

Um hospital deteriorado pouco comove quem supõe que jamais “cairá no SUS” e aqueles cujos salários, comissões e dividendos são pagos por empresas setoriais privadas. Candidatos se acostumaram a misturar esses distintos valores e experiências. Os palanques ecoam juras de fidelidade ao SUS, para seu próprio atendimento recorrem aos hospitais filantrópicos de excelência, e nos encontros reservados ensaiam acordos para alavancar negócios e apoios políticos. Historicamente, sociais-democratas e liberais contornaram olimpicamente os conflitos sobre desigualdade na saúde. Na retórica, prevaleceu o SUS universal; na vida cotidiana, a preservação de discriminações e privilégios. No entanto, esse padrão ambíguo não se adapta automaticamente a um confronto entre direita e esquerda, permeado por traços de autoritarismo e fascismo.

A medicina e a saúde pública modernas são contemporâneas à democracia. Não existe hipertensão indígena ou diabetes gay, seria impossível realizar obras particulares de saneamento, despoluição ou mesmo campanhas para evitar o uso de tabaco. Diagnósticos, tratamentos e intervenções ambientais de proteção a riscos são aplicáveis para toda a população. Para justificar desigualdades na saúde, é necessário afirmar hierarquias de superioridade étnico-racial e de gênero. Nos EUA e em alguns países europeus, os inferiores são os estrangeiros. Entre nós, os outros, os estranhos, os menos merecedores, são brasileiros.

A oposição entre concepções igualitárias sobre saúde e doença e a estratificação social preconceituosa resulta em indicadores sociais negativos. Políticas de segurança equivocadas, machismo, homofobia e racismo matam. Crianças mexicanas separadas de suas mães ou mortas em função de fugas das guerras no Oriente Médio e o assassinato de Marielle chocaram o mundo. Carnificinas, somadas a mortes decorrentes de má qualidade da atenção, são moralmente injustificáveis e representam um enorme desperdício.

A Academia Nacional de Ciências dos EUA estimou que a perda de produtividade por mortes evitáveis situa-se entre US$ 1,4 e US$ 1,6 trilhões em países de baixa e média renda. Sistemas de saúde eficientes são democráticos, permitem interações entre profissionais e usuários para a solução de problemas nos locais de atendimento, estimulam o aprendizado com erros e acertos, promovem pesquisas e inovações. O SUS teve continuidade, mas não foi ampliado e modernizado. Restrições orçamentárias e censura a atividades voltadas a grupos LGBT, deficientes, negros, mulheres e com sofrimento mental o tornarão incapaz de responder às necessidades acumuladas e futuras. Mais investimentos são necessários, mas não suficientes. Alterar a rota de uma instituição que completou 30 anos — em direção a uma trajetória incremental que permita antecipar alternativas para a melhoria da saúde — exige reconhecimento de diferenças e adoção de práticas democráticas.

 

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