Leia abaixo na íntegra o artigo de Ligia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e conselheira da Abrasco, publicado no jornal O Globo, na edição de 9 de junho de 2014, no qual trata, a partir da lembrança da recente perda de quatro importantes homens comprometidos com a saúde brasileira, destaca os debates do setor neste ano eleitoral. O texto também pode ser conferido aqui.
“Em pouco tempo morreram quatro brasileiros dedicados à saúde. O mais conhecido é o arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé), que criou os belos e adequados espaços para o tratamento e pesquisa sobre reabilitação e foi tratado e faleceu em um dos prédios da Rede Sarah. Os outros três — médicos sanitaristas Ciro de Quadros, Sergio Koifman e Eleutério Rodriguez — ergueram monumentos com outro tipo de material. O primeiro foi um herói da campanha de erradicação da varíola, o segundo um brilhante professor e pesquisador das causas e riscos do câncer e o terceiro um dos formuladores e responsáveis pela aprovação do SUS na Constituição de 1988. O traço comum dessas distintas trajetórias profissionais é a compreensão profunda e extensa das dificuldades e possibilidades de mudar o padrão injusto do sistema de saúde no Brasil. Nada do que fizeram foi fácil, a dissuasão, os conselhos para comer o mingau pela beirada atravessaram, mas não entortaram seus projetos. Para quem acha que está revolucionando a saúde com meias medidas e muito marketing fica o exemplo de gente que pensou, se emocionou, não fez cálculos sobre o sucesso da carreira e passou grande parte da vida aprendendo, ensinando e dividindo conhecimentos e méritos.
Conhecer um pouco a história dos reais sucessos da saúde pública brasileira ajuda também a desconfiar das desculpas em voga que atribuem às coalizões políticas o retardamento da estruturação definitiva do SUS. As articulações político-partidárias são certamente chaves mestras para abertura de muitas portas. Mas não servem para justificar, por exemplo, que a hanseníase ainda não tenha sido erradicada no Brasil. A indevida politização de ações e tarefas, que a princípio seriam obrigatórias para qualquer administração independentemente de quem ganha ou perde a eleição, provoca mais confusão do que esclarecimento porque contém ameaças falsas e oculta os verdadeiros conflitos. Nesse momento em que as chapas para concorrer à Presidência e aos governos estaduais estão sendo articuladas, as conversas com empresários, igrejas, sindicatos e candidatos ao Congresso Nacional estabelecem uma agenda de compromissos, que, em geral, nada alteram as promessas genéricas apresentadas nas campanhas, porém embaraçam, vetam ações simples e complexas que, se não forem executadas, impedem a melhoria da situação de saúde.
A mais tóxica questão sobre a saúde pública no Brasil é o aborto. Mesmo o expressivo aumento da participação das mulheres no governo Dilma não foi suficiente para exorcizar a maldição que recobre o tema e encarar o fato de o aborto inseguro ter se transformado em um fatídico e usual método contraceptivo. A omissão sobre uma das mais importantes bandeiras da agenda emancipatória do século XIX termina por empurrar a discussão sobre saúde para fora do eixo. A disposição para combater o machismo, a violência física, a cesariana, entram e saem da pauta. Mas a rendição completa à proibição do debate sobre a interrupção voluntária da gravidez estimula a imposição de vetos com motivação religiosa ao programa de Aids e orientação dogmática no de álcool e drogas. Como se as reais divergências fossem relacionadas com a permissão para o genocídio de fetos, banimento de partos cirúrgicos, estímulos à promiscuidade, ao vício e não com as elevadas taxas de mortalidade materna e prematuridade, as preocupações com a incidência do HIV e as evidências sobre tratamento da drogadição.
Outro tema muito polêmico no dia a dia, mas que tende a desaparecer nas plataformas eleitorais dos campeões de voto é a privatização da saúde. A orientação para direcionar discursos à maioria da população, àquela que precisa que o SUS funcione direito, abre a porteira para negociações ad hoc com os setores empresariais, que repercutem direta e indiretamente na rede pública. Os candidatos a cargos majoritários, em pleno uso de suas faculdades mentais, agem como se um tópico fosse diferente do outro, fingem ignorar as correlações entre o atendimento e morte de um paciente por infarto em frente ao hospital público de cardiologia na Zona Sul do Rio de Janeiro neste mês e de um negro integrante dos quadros dirigentes de Brasília que, mesmo com plano de saúde, não conseguiu entrar nos estabelecimentos exclusivos para as classes superiores há dois anos. A má qualidade e as barreiras de acesso são comuns a um sistema que desvaloriza e subfinancia o SUS e aloca cada vez mais recursos públicos a uma privatização selvagem. O que chama atenção é que as normas para o ingresso de pacientes, seja em órgãos públicos ou privados, não protegem quem precisa de cuidados, e sim as instituições, quem nelas trabalha. A prática de permitir o desmonte da rede pública, seja por falta de verbas, seja pela entropia corporativista e a utilização indiscriminada da saúde para a realização de grandes e pequenos empreendimentos estatais-dependentes, não é apresentada ao debate. Portanto, dizer que “em meu governo o SUS vai ter isso tudo e aquilo mais”, e de quebra subir o tom na pronúncia da expressão “regular os planos privados”, é muito pouco.
A probabilidade de ambos ou de um desses temas polarizar as próximas eleições é próxima de zero. Dedicar grande parte do tempo em conversas com quem só vê na saúde uma fonte para aumentar rendimentos e prestígios individuais e não com quem tem o que propor, arriscar, ousar, potencializa o processamento da insatisfação com a saúde para cuspir respostas do tipo já fiz tanto e farei mais. No modelo queixas como input e soluções endereçadas como output, ideais e idealizadores são considerados valores e personagens de um passado já superado. No entanto, a história não acabou, os herdeiros da boa cepa dos sinceros formuladores e executores de projetos estruturantes para a saúde estão por aí. Quem ouvir pessoas do Tribunal de Contas, que acabam de conseguir instaurar um inquérito civil público sobre o sub-financiamento do SUS; Domingos Sávio, inspirador e incentivador atento de uma política de saúde mental internacionalmente reconhecida; estudiosos e ativistas da área de saúde da mulher e tantos outros batalhadores da saúde pública terá subsídios de sobra para devolver à política seu estatuto de protagonista de mudanças e não o de culpada pelas promessas não cumpridas.”